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A influência do dinheiro nos jogos online

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Priorização da habilidade questiona modelos econômicos no cenário competitivo de games

Victor Dantas de Maio Martinez
Vitor José Azevedo

O mundo dos games, como são chamados na contemporaneidade os jogos eletrônicos ou de videogame, tem se tornado um espaço de interações sociais cada vez mais profundas, com o desenvolvimento do setor e principalmente em razão da cultura conectada da sociedade em rede, como argumenta o sociólogo espanhol Manuel Castells, na obra “A sociedade em rede”, de 1996.

A internet tem possibilitado novas significações culturais para o ato de jogar videogame, estabelecendo complexas relações sociais online entre jogadores no mundo virtual. Um exemplo disso são as avançadas negociações que acontecem nos jogos online, tanto dentro e fora dos jogos, comercializando recursos virtuais (como itens equipáveis pelos personagens) em um game.

De acordo com uma reportagem publicada na revista Fortune, o dinheiro fictício do famoso jogo World of Warcraft (WoW) – chamado oficialmente no game de “ouro” – tem mais valor de mercado do que a moeda Venezuelana. A revista Superinteressante também fez uma análise das cotações entre as duas moedas e concluiu que o bolívar vale “menos que a metade do valor da unidade monetária de um dos games mais populares da atualidade [WoW]  – 42% para ser mais exato”.

A crise financeira pela qual passa a Venezuela também permite outra exemplificação da complexidade dos jogos online: o jornal venezuelano Versión Final publicou uma notícia falando de cidadãos que abandonaram seus empregos naquele país para se dedicarem exclusivamente a jogar games e fazer dinheiro real com isso, vendendo recursos virtuais adquiridos nos jogos por dinheiro no mundo real – prática que vai contra os termos dos grandes games multiplayer (para vários jogadores) online.

Esses fatores ilustram a realidade elaborada e complexa que permeia o mundo dos games – e, em especial, como esse cenário se relaciona com o dinheiro. Outro cenário que mostra o status cultural dos jogos eletrônicos na atualidade é a categoria dos chamados eSports, jogos competitivos que ascenderam ao status de esporte virtual, fenômeno ocorrido especialmente nos últimos cinco anos, angariando multidões que assistem presencialmente aos campeonatos e ganhando reconhecimento mundial enquanto categoria competitiva; os eSports até ganharam cobertura midiática especializada em veículos de comunicação esportivos, como na ESPN ou na SporTV.

Na atualidade, alguns games são inclusive feitos para serem eSports, tentando alcançar tal classificação para poder explorar os mercados de transmissão de jogos e bilheteria em eventos competitivos. Segundo a Redbull, esse é o caso do jogo para celular Clash Royale, que está sendo “construído” para ser um jogo competitivo tido como eSport. Já o site Engadget argumenta que o mesmo está sendo feito pelo jogo Overwatch, de computador.

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Clash Royale permite assistir a replays de partidas; a estratégia favorece a transmissão televisiva do jogo, fortalecendo-o como eSport

Nessa tentativa de serem reconhecidos como eSports, os principais jogos da categoria tentam adotar medidas que favorecem a competitividade – como o estímulo à participação em competições e torneios; a eliminação de fatores randômicos nos jogos; e a limitação de quanto o dinheiro pode ser usado nos jogos para favorecer a jogabilidade, de modo a priorizar a habilidade dos jogadores. Esse último fator é o caso do jogo Counter Strike: Global Offensive (CS:GO), um dos maiores do cenário competitivo, em que a única coisa que o dinheiro real pode comprar é a customização da aparência das armas no game, que não interferem de qualquer maneira na jogabilidade.

Essa limitação do quanto o dinheiro pode trazer vantagens para um jogador é uma ação que vai ao contrário daquilo que a indústria dos games tem buscado nos últimos dez anos – novas formas de capitalizar os games. Para compreender essa assertiva, se faz necessária uma recapitulação dos modelos econômicos que sustentaram os videogames, desde seu surgimento até nos últimos dez anos, quando a internet favoreceu a criação de novas formas de comercialização.


A história do mercado de jogos


A indústria dos jogos de videogame é relativamente recente na história do capitalismo moderno: de acordo com o
TecMundo, portal especializado em notícias sobre tecnologias, o primeiro console de videogame foi lançado em 1972. o Odyssey 100. Porém, foi apenas no final dos anos 1970 e início da década seguinte que o mercado de jogos eletrônicos começou a se popularizar, como ressalta o site.

Após as tímidas vendas dos primeiros consoles, que não ganharam tanto espaço no mercado, o primeiro modelo econômico que prosperou no mundo dos games foi o de arcades, ou fliperamas, nos quais os jogadores usavam moedas para jogar de forma limitada – ou até vencerem o jogo ou, caso mais comum, perderem e receberem o “game over”. Segundo Danilo Amoroso, repórter de cultura geek no TecMundo, “as moedas ficaram em falta no Japão como consequência do sucesso” desse tipo dos fliperamas no final dos anos 1970.

Esse modelo de negócio sofreu uma grande crise no meio da década de 1980, quando a indústria precisou se reinventar. Como argumenta Danilo, foi a partir da invenção do personagem heroico e carismático Mário, da Nintendo, é  que o mundo dos games voltou a prosperar, com a venda de consoles e jogos, na forma de cartuchos, em separado (diferentemente dos primeiros consoles, nos quais havia apenas um jogo embutido na memória sem possibilidade de jogar games diferentes).

A venda separadamente de consoles, acessórios e jogos foi o modelo de negócio que regeu a indústria dos games desde o meio da década de 1980 até meados dos anos 2000. Apesar das grandes inovações tecnológicas, como lembra o TecMundo, a forma de comercialização continuou a mesma. A partir de 2006, uma nova maneira de capitalizar dinheiro dos gamers foi criada: as microtransações, que são pequenas compras que os usuários podem fazer dentro do jogo, para adquirir alguns recursos ou vantagens momentâneas.

As microtransações ganharam muita relevância a partir dos anos 2010, com o aprimoramento dos smartphones, quando elas também foram inseridas nos games mobile. Nos consoles, aliadas às microtransações estão os DLCs (“downloadable contents”, conteúdos adicionais baixáveis), que são expansões criadas para incrementar a jogabilidade de certos games, pelas quais o jogador paga um valor extra para poder jogar. Uma análise do site cultural CinemaBlend mostra que o mercado de DLCs faturou, apenas nos Estados Unidos, a marca de 875 milhões de dólares em 2011, chegando em 1 bilhão em 2012 e superando o comércio de venda de jogos usados.

Já o portal especializado em games, US Gamer, argumenta que as microtransações e os DLCs se tornaram tendência fortemente definida para o mercado de jogos a partir de 2013. Com esses tipos de capitalização, o mercado de games tem oferecido vantagens para os jogadores que fazem pequenas compras dentro do jogo e adquirem pacotes de expansão.

É por essa razão que a tentativa dos eSports de limitar a influência do dinheiro na jogabilidade vem na contramão histórica dos meios de capitalização da indústria. Após cerca de 30 anos seguindo o mesmo modelo de negócio, quando o mundo dos games encontra novas formas de fazer os jogadores pagarem mais dinheiro – por jogos que eles já adquiriram -, o cenário competitivo busca garantir que o dinheiro não possa desnivelar a competição.

Para tentar conferir se esse discurso dos eSports se efetiva na prática, fica o questionamento apurado nesta reportagem: de que formas o dinheiro ainda pode influenciar a jogabilidade nos games online? As respostas encontradas seguem nos parágrafos a seguir.


O papel do dinheiro dentro dos jogos online


Com o desenvolvimento da indústria de games, novas e variadas formas de capitalização foram surgindo, lícita e ilicitamente. Antigamente, o mercado se restringia apenas à compra da plataforma e do próprio jogo, mas, depois, a capitalização começou a acontecer dentro dos próprios games.

Os MMORPG (jogos de RPG massivos, multijogadores e online) foram os principais responsáveis pela implementação do novo modelo de negócio, das microtransações. Esses jogos, que são feitos em sua maioria para computadores, criam verdadeiros mundos online, onde vários jogadores convivem e buscam ascender: conseguem itens, melhoram de nível, batalham, etc. No Brasil, o jogo Perfect World (PW) chegou a alcançar o número de 22.231 pessoas jogando simultaneamente no mesmo “mundo”, segundo notícia do G1.

Nos servidores de MMO, quase sempre circulam dois tipos de moeda: a que é trocada por dinheiro real, geralmente chamada de “cash”, e aquela que se ganha fazendo as missões do jogo. A maioria das produtoras não comercializam itens que alteram o desempenho do jogador no game por dinheiro “real”, porém, vendem itens extras.

No caso do PW, por exemplo, não se pode comprar uma espada melhor, que melhoraria a performance nas lutas, com o cash, mas se pode comprar uma montaria. Não se pode comprar uma armadura, que aumenta a defesa, mas existe como comprar roupas mais bonitas. Em outras palavras, são recursos secundários e que não afetam diretamente a jogabilidade do jogo.

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A categoria “normal” (seta verde) é dos itens que influenciam nos atributos do personagem, já as “roupas” (seta vermelha) nada alteram

Entretanto, com a evolução dessa possibilidade de capitalização, o cash começou a influenciar no desempenho dos jogadores. Mesmo  que os itens que alteram a jogabilidade não fossem, originalmente, trocados pelo cash, criou-se um mercado de câmbio entre a moeda conseguida dentro do game por aquela que era comprada com dinheiro real.

Dessa forma, as pessoas que compravam o cash eram beneficiadas e esses jogos passaram a serem conhecidos como “pay to win”, em tradução livre “pague para ganhar”. Se comprava o cash e, posteriormente, trocava-se as mercadorias adquiridas com dinheiro real pelas moedas do jogo e pelos itens que alteram a jogabilidade.

Mesmo jogos que buscaram não ter nenhuma influência do dinheiro real acabaram sendo corrompidos. O World of Warcraft, que também é um MMO, por exemplo, lançou servidores com a premissa de barrar o influxo do dinheiro real dentro do jogo. O game buscava se capitalizar pela cobrança de mensalidade dos usuários, e não pela venda de itens. O modelo ficou conhecido como “play to win” (jogue para ganhar). Porém, o dinheiro, mesmo que ilegalmente, continua influenciando: existem até sites que fazem a troca de dinheiro real pela moeda do jogo, o ouro.

Os eSports, como já mencionado, passaram a sustentar a proposta de não sofrer influência do dinheiro, mas, por enquanto, também estão sendo atingidos pela “corrupção” online. O Clash Royale, por exemplo, permite que jogadores comprem baús que oferecem uma chance aleatória de se conseguir melhor seus personagens no jogo.

Quando novos personagens são lançados, eles são extremamente raros, mas podem ser obtidos também nesses baús. Em agosto deste ano, por exemplo, foi lançado o personagem Megacavaleiro; usuários do Reddit oficial do Clash Royale fizeram uma investigação e concluíram que os principais jogadores do game, que já possuíam o Megacavaleiro no nível máximo à época de lançamento, gastaram em torno de US$ 22 mil para conseguir tal feito. Os cálculos foram realizados com base na probabilidade de se conseguir o personagem nos baús, multiplicando o número de vezes que os baús foram comprados pelo preço de abertura em dólares dos baús.

Jogos como o citado CS:GO e League of Legends não vendem itens que alteram diretamente a jogabilidade. Enquanto nos MMO o desempenho é alterado de modo progressivo (ele vai sendo acumulado de acordo com o tempo e o investimento que você faz), nos eSports toda partida começa do zero. Não existem itens que, adquiridos anteriormente, agem no desempenho dentro da partida. A única coisa que se acumula é a habilidade e a experiência: quanto mais você joga, melhor você fica, e, dessa forma, vai jogando com pessoas de níveis maiores.

Outros eSports geralmente só comercializam o que é conhecido como “skins”. Essas nada mais são que roupas, que deixam o personagem mais bonito, mas que nada alteram dentro do jogo. No CS:GO, jogo de tiro em primeira pessoa, por exemplo, existe a possibilidade de comprar uma arma com desenhos. A mesma arma, porém, estará disponível com os mesmos atributos para quem nunca gastou dinheiro, mas sem o desenho.

As skins, porém, se tornaram forma de diferenciação e de ostentação dentro do jogo. Mesmo não alterando a jogabilidade, algumas delas alcançam valores bem expressivos – no mercado oficial da Steam, empresa que vende o CS:GO, o preço de várias skins chega perto dos US$ 2.000,00. Os jogadores mais empenhados e aficionados acabam gastando mais no jogo, para serem reconhecidos em meio aos melhores.

 

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Lista das negociações públicas mais caras de recursos vendidos nos games mais jogados. Fonte: Megacuriosidades / Infografia: Vitor Azevedo.

Fora esse  mercado legal que existe dentro dos eSports, passaram a existir também os serviços ilegais. O chamado elojob é um serviço ilegal que rende o banimento em todos os eSports. Nele, um jogador mais experiente entra na conta de alguém com level menor para jogar e colocá-la em uma melhor posição, ou deixá-la em um nível maior, em troca de dinheiro. Existe até mesmo uma empresa que oferece esse serviço para o League of Legends no Brasil, mesmo sendo ilegal e rendendo a expulsão do jogador. A empresa conta com jogadores que foram campeões brasileiros do game na sua lista de prestadores de serviço.

O account sharing (compartilhamento de contas) também é contra as políticas e termos de uso dos principais jogos online. Nos MMORPGs, o serviço de “up pago” (quando um jogador paga um terceiro para este melhorar a conta daquele) é bastante comum, anunciado ilicitamente até mesmo dentro do jogo. Outros serviços ilegais também são comercializados, como a realização de objetivos in-game, o intermédio de trocas de itens, venda de moeda fictícia dos jogos, entre outros.

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O site de ecommerce NeshaStore, famoso no meio gamer, vende profissionalmente produtos de Ragnarök Online sem autorização da desenvolvedora

A comercialização de recursos in-game (dentro do jogo) por dinheiro real atende, inicialmente, aos interesses comerciais das desenvolvedoras de jogos, quando realizada por meios lícitos, nas lojas oficiais e autorizadas das desenvolvedoras. É por isso que as atividades que envolvem transações em dinheiro real terceirizadas, aquelas não feitas pela desenvolvedora em si, vão contra os termos de uso dos jogos, são consideradas ilícitas e passíveis de banimento dos jogadores envolvidos.

 

As consequências do dinheiro no cenário gamer


Os reflexos da influência do dinheiro nos jogos online são claramente perceptíveis no mundo dos games. O primeiro deles é a nítida estratificação da playerbase (jogadores de um game), de acordo com o poder aquisitivo: os melhores gamers quase certamente gastaram mais dinheiro no jogo. Isso é muito comum em jogos de MMORPG, como Perfect World, Ragnarök Online ou Priston Tale, mas também acontece em jogos de âmbito competitivo, como Clash Royale ou League of Legends.

Uma clara exemplificação é percebida entre os finalistas da última edição do torneio mundial de Clash Royale (Clash Royale Crown Championship). Dos 27 milhões de jogadores que participaram das eliminatórias, chegaram às últimas etapas 16 finalistas, dos quais apenas um nunca havia gastado dinheiro com o jogo (estilo de jogo conhecido como “free to play”). Por essa razão, o jogador japonês Fuchi recebeu o apelido de “the treasure hunter” (“o caçador de tesouros”, em tradução livre), sendo até usado como propaganda e enaltecido pela desenvolvedora do Clash Royale:

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=iOSoilIc77Y&w=854&h=480]

Outro aspecto acaba evidenciando o poder do capital no momento de influenciar a habilidade e a competitividade: as capacidades técnicas do hardware utilizado; isto é, jogadores com melhores equipamentos têm desempenhos melhores. De acordo com uma reportagem do TecMundo, existe de fato essa alteração, porém as diferenças de performance não são tão bruscas, de modo que sendo um processador minimamente capaz de rodar um jogo, melhorar esse processador não vai alterar muito a jogabilidade.

No entanto, as questões de hardware ainda se expandem para outros acessórios, como mouses, teclados, monitores ou cadeiras, todos especializados para gamers. Todo esse mercado é explorado por diversas indústrias: a Dell, marca famosa de notebooks e computador, possui uma seção para gaming em seu site de vendas, na qual os preços de notebooks para gamers superam em até 50% os produtos mais caros para não gamers.

Nos âmbito dos serviços ilícitos comercializados nos jogos online, muitos jogadores podem adquirir vantagens pagando em dinheiro real, como ao comprar um personagem de nível elevado ou pagar para que um terceiro faça objetivos do jogo em seu lugar.

Esses fatores sugerem que o dinheiro ainda possui um relevante papel no mundo dos games, afetando direta e indiretamente o desempenho dos jogadores, mesmo em cenários competitivos como o dos eSports. Nesses casos, a habilidade no âmbito da competição é gradualmente deixada de lado, sendo o poder aquisitivo quase sempre definitivo na ascensão dos players – o que resulta em um verdadeiro desequilíbrio na jogabilidade.

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