O documentário “Democracia em Vertigem”, produzido pela cineasta Petra Costa, lançado no dia 19 de junho no serviço de streaming Netflix — aparecendo inclusive no radar como possível nome para o Oscar — trouxe à tona não somente a relação do indivíduo com o governo, perspectivas e reflexões sobre cenas da política brasileira, mas também bastidores dos principais eventos da democracia brasileira.
Tendo uma mulher como responsável pela idealização e realização de um documentário com tamanha força e relevância no contexto político, também é possível trazer para o diálogo algo que percorre todo o espaço onde obras como essa nascem e se desenvolvem: a democracia de vozes.
Ou seja, a necessidade de uma produção múltipla e diversa, com conflito de posições sobre o mundo e a garantia de igualdade de acesso e espaço, onde mulheres possam ter a estrutura e o suporte garantido para tirar suas ideias do papel e enriquecer o cinema nacional.
A representatividade feminina é necessária em todos os lugares. Especialmente, nesse reportagem, trataremos da importância da presença das mulheres nas produções audiovisuais, destacando o cinema. Essa importância se dá de maneira pertinente, já que a participação das mulheres na direção de filmes hollywoodianos corresponde apenas a 4% do total de diretores.
Como o ambiente do cinema ainda é predominantemente masculino, o resultado são roteiros e personagens criados a partir de uma visão machista e patriarcal. “Ter diretoras, escritoras e produtoras mulheres é fundamental porque torna as personagens femininas melhores, mais realistas, e afeta também a maneira como a sociedade nos enxerga”, enfatiza a diretora e produtora Amanda Sayeg.
Nesse sentido, quando uma criança mulher – ou qualquer pessoa – consome filmes que reforçam um papel machista, ela crescerá com uma visão de mundo deturpada. É o que ocorre também com a falta de representatividade da criança negra, por exemplo, que é representada em suma a partir de papéis secundários ou considerados de menor importância.
A importância do cinema não acaba aí. No combate contra a cultura do estupro, a forma como essa arte representa a mulher pode acabar reforçando para o público a tal ideia de que a mulher é um objeto de desejo e satisfação do homem, sem qualquer papel ativo. A cultura de massa é aliada para mostrar a diversidade das mulheres e das funções ocupadas na sociedade por elas.
Além disso, um estudo produzido pela Dra. Martha M. Lauzen, do Centro de Estudos da Mulher em Filmes e Televisão, traz dados alarmantes sobre a influência do gênero para a conquista do papel de protagonista. De acordo com esse estudo, quando um filme tem mulheres roteiristas ou diretoras, as chances de ter uma protagonista feminina são 50% maiores; já em filmes com exclusivamente homens no papel de roteiristas e diretores, somente 13% dos papéis de protagonistas são para mulheres.
A produtora Mariana Zani, que reside em São Paulo, conta sua experiência como sócio-proprietária da RZP Filmes. Há 15 anos inserida no mercado audiovisual, Mariana sempre pensou em trabalhar com arte. Aos nove anos de idade, seu maior sonho era ser apresentadora de TV, mas, ao longo do tempo, foi o cinema que conquistou seu coração. “Me formei em 2005 em Rádio e TV. Confesso que, durante minha caminhada, duvidei da minha aptidão ou se era isso que eu queria mesmo. Mas foi na faculdade que a RZP Filmes aconteceu e, depois da primeira exibição de um curta-metragem nosso, minhas dúvidas acabaram”, ela relembra.
Atuando principalmente como produtora, Mariana tem oportunidade de trabalhar em diferentes áreas do audiovisual, desde a atuação até a escrita dos roteiros. Contudo, ela conta que, desde a faculdade, as mulheres são poupadas de certas funções, principalmente as que exigem força física, mas não só isso. “Em reuniões de trabalho já percebi que, quando acompanhada pelo meu sócio, eu era deixada de lado, mesmo quando o assunto era inerente à minha função”.
Segundo a análise sobre a participação feminina na produção audiovisual da ANCINE — Agência Nacional do Cinema — em relação a obras audiovisuais que emitiram Certificado de Produto Brasileiro (CPB) nos anos de 2017 e 2018, com uma base de dados contendo longas-metragens lançados, comercialmente ou não, além das obras produzidas para televisão e os curtas e média-metragens, apenas cerca de 20% de mulheres ocuparam a direção, 25% o roteiro, 40% a produção executiva, 12% a direção de fotografia, e apenas na função de direção de arte a presença feminina ultrapassa a masculina, com 57%.
Já o percentual de participação feminina voltada para os filmes brasileiros lançados nos últimos cinco anos, entre 2014 e 2018, o ano de 2018 apresentou o maior número: de 184 títulos, 22% são de mulheres. Em comparativo com os outros anos, 2014 (10%), 2015 (15%), 2016 (20%) e 2017 (15%), o número infelizmente continua pequeno, mas representa a resistência das mulheres, em que apesar de todos os desafios, se mantém de pé e avançando aos pouquinhos. Vale dar destaque nos percentuais de produção executiva, onde a presença feminina é maior que a masculina desde 2015. Enquanto o público desses filmes, que vinha sendo maior até 2017, apresentou uma forte queda no ano de 2018.
Esses dados, portanto, demonstram que o mercado cinematográfico brasileiro ainda é dominado por homens, e pesquisas como essa da ANCINE são extremamente importantes para o processo de se pensar em políticas públicas afirmativas para a promoção da inclusão das mulheres no mercado, com ações concretas para melhorar esse quadro.
As mulheres sempre estiveram participando das produções cinematográficas, mas o glamour e o prestígio se resumiam aos homens. “Infelizmente sofremos um apagamento histórico imenso e a nossa importância e relevância foram esquecidas, assim como em tantas ou talvez todas as áreas”, reforça Mariana Zani. Paraela, suas principais referências de trabalho e inspiração são os outros tipos de expressão artística (dança, música, teatro), assim como suas colegas de trabalho e o próprio movimento feminista.
Devido a uma distinção de gêneros que, de maneira equivocada, se encontra também na hora de consumir os produtos audiovisuais, pode-se perceber que grandes profissionais têm que lutar duas vezes mais por seu espaço: lutar por espaço na arte independente brasileira e lutar por um ambiente em que suas produções tenham visibilidade independente do sexo que carregam.
Rana Tosto, fotógrafa e produtora audiovisual em Salvador, enfrentou situações grosseiras em seu trabalho, que nascem da visão de superioridade que os homens têm. “Minha área é dominada por homens que acham que apenas eles têm músculos suficientes para segurar uma câmera”, conta Tosto. Ela reforça que é extremamente hostil estar em um set só com homens. Por esse motivo, Rana procura trabalhar somente com outras mulheres, sempre que possível. “Faço questão de mostrar isso para que as pessoas vejam que tem, sim, mulher no audiovisual e que somos muito capazes”, ela afirma.
Em um desses episódios de machismo dentro do set, Rana estava responsável pela direção de fotografia e arte da produção. Ao ver que o combinado com o diretor da cena não estava funcionando naquele momento, Rana mudou o ângulo da câmera e o diretor discordou. Para “convencê-la” disso, ele gritou, a xingou e “praticamente tomou a câmera da minha mão”, ela mencionou em um relato.
Em 2018, a diretora e roteirista Greta Gerwig tornou-se a quarta cineasta a concorrer ao prêmio de melhor direção da Academia, o Oscar, desde 1927. A indicação ocorreu pelo filme Lady Bird — A hora de voar. A questão é que, embora mais indicações e marcos na história do Oscar tenham ocorrido, os número não são representativos, pois ainda são muito baixos.
Para Amanda Sayeg, “o cenário nunca foi tão positivo para nós mulheres, mas o que estamos vivenciando hoje é apenas o começo da revolução. Ainda existe uma diferença muito grande entre homens e mulheres na indústria. De acordo com as estatísticas, em 2017 as mulheres representaram 52% das pessoas que foram ao cinema, mas o número de mulheres por trás das câmeras é bem diferente”.
Para aumentar a visibilidade e levantar mais o debate sobre o assunto, a produtora Mariana Zani acredita que um caminho está sendo os coletivos, cine clubes, festivais direcionados para mulheres ou só de mulheres: “Damos umas às outras credibilidade e apoio profissional necessário para o nosso desenvolvimento. Somos protagonistas, estamos em todas as funções e, devagar, as equipes estão estendendo e respeitando o trabalho das mulheres”.
Com o objetivo de ajudar a reverter o cenário de desigualdade no âmbito do setor audiovisual, Mariana termina dizendo que é a partir dessa troca de experiências em tais espaços que acaba se criando novos projetos e parcerias. “Espero que cresçam e continuem se multiplicando. São importantes para quem está começando e para quem está a tempos no mercado”, ela finaliza.
Como ressalta Amanda Sayeg, essas desigualdades não refletem um problema atual. “Muito pelo contrário, o problema sempre existiu, mas o apoio que existe hoje entre as mulheres criou um espaço mais seguro e trouxe a esperança de que quanto mais falarmos sobre o assunto, maior a chance da situação mudar”.