Tradição e hábito cultural são fatores a favor da televisão tradicional em face da ascensão do uso de smartphones e serviços de streaming
Por Amanda Moura, Ana Oliveira e Giovanna Hespanhol
Na memória das pessoas mais velhas, os almoços e jantares eram, além de refeições, o momento do encontro familiar. Reunidos ao redor da mesa, todos compartilhavam seus dias ou apenas a companhia dos entes queridos. Porém, há mais de 50 anos, as salas das casas ganharam uma nova importância e se tornaram palco para outro encontro de família. Este ao redor de uma “caixa” de imagens: preta e branca ou colorida, chuviscada ou HD, pequena ou grande. Durante esse rito de assistir TV muita coisa aconteceu nas famílias e no mundo, dentro e fora da caixa. Muros caíram, filhos nasceram, vilões morreram e uma tal de internet surgiu. Com ela, os hábitos de acesso ao conteúdo audiovisual mudaram e novos serviços estão em ascensão. No Brasil, questões de política – tecnológica, social e cultural – fazem com que a televisão não seja descartada em detrimento do streaming.
Hoje, qualquer conteúdo está na internet. Seja um filme lançado nas semanas anteriores ou o último álbum do artista preferido: com apenas alguns cliques, esses arquivos estão à disposição dos internautas. Com os avanços tecnológicos e a ampliação de possibilidades em rede, a necessidade de acesso rápido e de qualidade às informações se acentua. Nesse cenário, surgem os serviços de streaming. Aquele filme cujo lançamento era aguardado por meses nas locadores, em poucos dias ou semanas é disponibilizado online.
Em pesquisa realizada pela empresa Ericsson, estima-se que os brasileiros passam cinco horas por dia, em média, consumindo conteúdos via streaming. 66% dos usuários entrevistados afirmaram a preferência por serviços oferecidos pela internet porque não encontram o que gostariam na TV. A pesquisa confirma a tendência de que o público de streaming é conquistado pela praticidade de uso e pelo preço “acessível”. Em contrapartida, pesquisa de julho de 2015 realizada pelo IBOPE Inteligência aponta que 29% dos brasileiros nunca teve acesso à tais serviços.
As mensalidades do Netflix, um dos serviços mais disseminados entre o público que consome conteúdos online, vão de R$ 19,90 a R$29,90, valor menor que o de pacotes de TV a cabo ou, muitas vezes, que o de ingressos para um filme no cinema. No Brasil, a empresa começou a operar em 2011, mas levou algum tempo para se firmar. Em 2013, o número de assinantes teve um crescimento maior do que o dos anos anteriores, chegando a 1,9 milhões de pessoas. Este ano, são mais de 2,2 milhões de assinantes. Com esses índices, o Netflix conquistou a liderança no segmento de OTTs na América Latina.
O mercado nacional recebeu em junho deste ano a empresa Looke, que funciona de forma parecida com o Netflix. Os planos têm valor de R$18,90, dão acesso aos produtos em HD e dão a opção de utilizar até três telas. A diferença do serviço brasileiro com relação à concorrente americana é que, além da opção pela assinatura mensal do serviço de streaming, os usuários têm a possibilidade de alugar ou comprar filmes digitais. Há também o recurso de execução offline para usuários de Android. Tendo em vista a ampliação de mercado, a empresa adquiriu a marca concorrente Netmovies (que tem cerca de 500 mil assinantes cadastrados e mailing superior a 2,4 milhões de emails).
A estratégia da empresa não é competir com gigantes como a Netflix, como afirmou Luiz Guimarães, diretor de Business Affair, em entrevista ao portal Convergência Digital. “Ao contrário, serei complementar. Cada vez mais OTTs vão surgir no mercado. Nós queremos ter o conteúdo nacional, que eles não têm”, explica.
Contudo, nem todas as bandas recebem a mesma qualidade de conteúdo desse serviço. Internet com menores velocidades, por exemplo, dificilmente conseguem rodar filmes ou séries em HD. Pesquisa da empresa americana Akamai confirma que a banda larga no Brasil não oferece um serviço de qualidade aos usuários. Em um ranking proposto pela empresa, foi apontado que os brasileiros têm acesso a internet com velocidade de 2,7 megabits, o que garante o 89º lugar para o país. Quando se trata de conectividade móvel, a média chega a 1,8 Mbps.
Por mais vantagens que tenham e mesmo com os altos números de público que as plataformas streaming têm alcançado, é questionável se seus serviços se tornarão unanimidade no futuro do país. Nem todos os brasileiros têm acesso ao Netflix como têm à televisão, em especial à TV aberta. Os dados que apresentam o uso de serviços on demand e acesso à internet comprovam que essa popularidade está centrada entre as regiões mais ricas do país: Sul e Sudeste. Para grande parte da população brasileira, é viável ligar a TV e ter acesso ao conteúdo aberto, mas não é possível pagar por um serviço que requer o uso da internet e o pagamento de mensalidades.
Os números gerais do país mostram que a TV tem perdido força, grande parte disso em razão do crescimento do uso de smartphones no Brasil. Segundo dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), em pesquisa realizada em 2014, há cerca de 148 milhões de usuários de aparelhos celulares no Brasil, e desses, aproximadamente 85 milhões acessam internet em smartphones. Ainda segundo a pesquisa do Cetic, 58% dos usuários usam a internet para assistir a filmes ou vídeos no Youtube ou no Netflix.
O ramo de televisão à cabo também sofre com as alternativas de vídeo on demand. De novembro para dezembro de 2015, os acessos à TV paga reduziram em 226,6 mil, de acordo com dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Em entrevista ao Diário do Nordeste, Carina Gonçalves, analista industrial da consultoria Frost & Sullivan comenta sobre o que os canais têm feito para superar a queda de números e a ameaça dos novos serviços. “Concorrentes também estão lançando suas próprias plataformas de vídeo on demand e aumentando sua line-up de canais HD, melhorando a experiência geral dos consumidores e a interatividade do serviço”.
As emissoras de televisão, por sua vez, têm investido em estratégias para acompanhar os novos hábitos de consumo do brasileiro. A Rede Record decidiu disponibilizar todos os capítulos de seu grande sucesso, a novela “Os Dez Mandamentos”, no Netflix. Porém, a emissora age com cautela em relação ao novo panorama de televisão e consumo audiovisual no Brasil. Em entrevista à revista Exame, o diretor de mídias da Record, Antonio Guerreiro diz que tudo depende de ter um modelo de negócios para essas novas plataformas. “Não acredito que a internet canibalize a TV. Mas não podemos entregar nosso conteúdo pela internet sem ter um modelo de receitas claro”, posiciona-se.
Já a Rede Globo foi mais longe e está investindo na plataforma Globo Play, na qual fornece toda sua programação, bem como a de todos os canais de TV pertencentes ao grupo Globosat, online na rede para assinantes desse serviço. Por enquanto, apenas moradores das regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro poderão acompanhar a programação em tempo real, mas a equipe trabalha para ampliar esse cenário.
Em menos de um mês, o VOD da empresa conquistou 2 milhões de downloads. Na coletiva de apresentação da Globo Play, Carlos Henrique Schroder, diretor geral da Globo, ressaltou a importância desse mercado em expansão e tomou como exemplo a quantidade de visualizações que um capítulo de “Verdades Secretas” atingiu na internet (190 milhões de views). “Não adianta ter o conteúdo se ele não chegar às pessoas. Há uma mudança permanente de hábitos, temos que nos atualizar na forma de entregar”, completa.
Em outras revoluções e migrações tecnológicas, a conclusão apocalíptica não deu resultados. Livros versus jornais, rádio versus televisão, impresso versus digital: a coexistência têm se mostrado possível e pertinente. Streaming e TV tradicional também podem conquistar seus espaços, desde que quem consume e quem produz não esqueça que o Brasil inteiro é mais do que um nicho e inclui uma população diversa e ainda distante do total acesso à internet.