A vida profissional e os caminhos percorridos de Jefferson Luís Lascalla, auxiliar pedagógico do Colégio Athena de Bauru
Por Gabriel Fioravanti
Depois de um “vai e volta” frenético, Jefferson começa a carregar algumas caixas e vai colocando-as em cima de sua mesa, onde eu estava logo em frente, sentado na cadeira onde ele geralmente fica, apenas observando a situação. Retira as apostilas que haviam chegado de São Paulo, da qual fazem parte do material didático utilizados pelos alunos. Eram duas, uma vermelha e outra azul, cada uma dividida por área de conhecimento, Exatas e Humanas, respectivamente. Logo em seguida, desloca-se até as salas do ensino médio chamando os alunos para irem recebê-las. Um grupo do primeiro ano do ensino médio, meninos com estatura mediana e que saíram da sala com feições de alívio, se aproximam da mesa. Um por um vão assinando a lista de comprovante de recebimento das apostilas e quando terminam ficam nas redondezas esperando os amigos assinarem também. Enquanto um deles assinava, o outro começa a fazer brincadeiras e o atrapalha no momento da escrita de seu nome. Prontamente ele solta um palavrão, seguido de ordens para que pare a brincadeira. O auxiliar pedagógico se espanta com o que havia ouvido e rebate com um simples “Olha!”, bem longo, para demonstrar sua indignação pelo que o aluno acabara de falar. Outro menino que já havia assinado a lista e se encontra perto de Jefferson diz, “Olha a boca, você está na presença do Jefferson”. Há um momento de silêncio seguido por, “Nossa Jeffs, verdade, foi mal, esqueci que você tava aqui”. Quase todos que estavam perto durante o ocorrido começam a rir de forma bem disfarçada da situação, inclusive eu. Depois que o último integrante do grupo termina de assinar seu nome e de receber suas apostilas, todos partem para o banheiro, que ficava logo ao lado. Jefferson, quase que instantaneamente impede-os com os dizeres de que eles estavam em aula e que depois poderiam ir. Sem nenhum questionamento, os meninos dão meia volta e rumam de volta à sala de aula, acompanhados. No retorno à mesa Jefferson, ou Jeffs, como prefere ser chamado, olha em direção a mim, dou-lhe um simples sorriso e em troca ele levanta suas sobrancelhas muito bem feitas e delineadas e sorri como se dissesse apenas por gestos faciais, “Missão cumprida!”.
Durante o tempo em que acompanhei Jefferson Luís Lascalla, muitas pessoas me perguntavam o que estaria eu fazendo lá. Minhas respostas eram sempre diretas, “Vim entrevistar o Jefferson”, para ver a reação das pessoas. A professora do ensino infantil, Roseli Matheus (que por incrível que pareça havia sido minha professora da segunda série e ainda trabalhava lá), quando me questionou o porquê da minha presença, ficou surpresa com minha resposta e disse: “Olha só que chique heim, Jeffs! Você merece!”. Ao falar isso, Jefferson não disse uma palavra, apenas abriu um enorme sorriso e entrou na sala da direção que ficava ao lado da sua mesa. Roseli é uma mulher loira, de estatura mediana e que anda sempre com um sorriso no rosto, mas também demonstra enorme seriedade. Várias vezes durante o dia pude ouvir a voz dela, tanto na sala de aula, quanto no corredor. Quando ia falar com os alunos, seja dando broncas, seja ministrando suas aulas, seu tom de voz aumentava. Mas quando falava com as outras pessoas, inclusive comigo e com Jefferson, transparecia uma serenidade de se espantar. Sua relação com Jefferson parecia ser uma amizade muito boa, sempre que se encontravam cumprimentavam-se e quando tinha tempo, paravam para conversar nem que fosse por apenas alguns segundos. Não somente com Roseli, mas também com as outras professoras do ensino infantil, Jefferson possui uma relação muito próxima. Um de seus sonhos era poder estar junto das crianças. “Pude observar atentamente as crianças durante uma semana, para um trabalho”, disse considerando isso como sendo uma grande experiência profissional. Há um tempo atrás fez estágio na prefeitura de Bariri – cidade em que nasceu – dando aulas como professor substituto. Sempre quis estar perto da educação.
Durante sua infância, Jefferson brincou muito pouco, “como uma criança normal, brincaria”, assim definido por ele. Teve que ajudar sua mãe durante boa parte dessa fase. Seus pais são separados e ele possui um irmão mais velho. Morou com sua avó paterna e aos cinco anos teve que mudar para Bauru. Mesmo com uma infância considerada por ele como difícil, Jefferson diz que sempre arranjava tempo para brincar de “escolinha”, simulando uma escola, ele sendo o professor. Já logo cedo, percebe-se que nele existe uma semente chamada “educação” e que estava pronta para germinar ao longo dos anos. Começou a faculdade de Pedagogia em 2011 na cidade de Bariri e, mesmo com dificuldades financeiras, devido à perda de seu avô, não conseguiu completá-la. Em 2013 recomeçou do zero o mesmo curso, porém na cidade de Bauru. Seus dentes cobertos por um aparelho rosa tornam-se perceptíveis, transparecendo a felicidade que ele tinha ao trazer à tona essa lembrança.
Ao sair da sala de direção eu o questionei, “Então Jeffs, parece que você não para mais, não é mesmo?” – levei em consideração nessa fala o fato de ter convivido com ele por um curto período, durante o terceiro ano do ensino médio que fiz nessa escola. “Não é mais como antigamente. Hoje nem consigo ficar mais sentado como antes. Aí onde você está consigo ficar uma vez ou outra durante o dia. A todo o momento tô andando pra lá e pra cá.”, disse ele. Realmente em pouco tempo, Jefferson teve um grande desafio de poder atuar como “substituto de coordenação pedagógica”, já que ele se via dessa forma e não como um coordenador propriamente. Quis passar uma imagem de que estava apenas “quebrando um galho”, já que, como ele mesmo diz, “Nós todos começamos lá de baixo”. A coordenadora do ensino fundamental, Renata Bersi teve um acidente, caindo da escada e quebrando o pé, há alguns meses atrás, fazendo com que Jefferson ocupasse temporariamente o cargo dela.
Dois professores durante nossa conversa se aproximam e nos cumprimentam. Minha fala continuava basicamente a mesma. O professor de Química, chamado Rodrigo, carinhosamente apelidado de “Galera” pelos seus alunos por falar demasiadamente essa palavra durante suas aulas, é um homem alto, magro, pardo e que, segundo a diretora da escola “é um grande boca aberta” – dizeres esses carregados de tons de humor, já que existe um clima de descontração naquele ambiente. “Boa Gabriel, você tá entrevistando o coordenador Jefferson”, disse ele, quando lhe disse porquê havia ido até lá. O outro professor presente, Tiago, que ministra aulas de Biologia, apenas confirmo a fala de Rodrigo e distribui elogios para Jefferson, fazendo com que ele ficasse vermelho – sua pele é bem branca, realçando a vermelhidão -, um momento de vergonha, como se aquelas qualidades fossem exageros. “Então, o Jefferson, primeiro é um cara muito gente boa. Super atencioso, se você precisa de alguma coisa, pode chamar que ele ajuda. Teve uma vez que eu tinha se esquecido de imprimir as listas de exercício pro cursinho e como a aula começava às 18h30 e eram 18h00 e eu não tinha nada, entrei em desespero. Liguei na escola, mas sabia que nesse horário não havia ninguém lá. Pra minha surpresa, o Jeffs atendeu e disse que imprimia pra mim. Cheguei lá, ele tava super cansado, mas tava lá. Daí ele me disse que ele curtia ficar lá na escola, mesmo estando cansado”, comentou Tiago. O horário de saída do trabalho de Jefferson é às 16h30. Mas nesse horário há um grande fluxo de crianças saindo, pois é quando os pais começam a buscá-las. Como não há ninguém que fique na portaria, ele se prontificou a ficar lá até por volta das 18:30, quando o fluxo diminui. E o principal, diz ele, é fazer isso com amor.
Um mês internado. Tinha seis anos. Ficou entre a vida e a morte. “Foi uma das piores dores da minha vida. Tudo doía. Foi antes da minha formatura do pré. Saí do hospital e fui pra formatura”. Mas dor maior foi quando seu avô faleceu. Teve algumas dificuldades financeiras depois do falecimento e logo sua avó é diagnosticada com a doença de Alzheimer. “Ela é minha vida… Nossa… meu tudo”. Tem ela como maior inspiração e sempre vai até sua cidade natal, Bariri, com intuito de ajudá-la. Em termos profissionais, as duas maiores inspirações de Jefferson são a coordenadora do ensino fundamental, Renata Bersi, e Márcio, professor da banda marcial da qual fazia parte. “Foi amor a primeira vista”, comentou em relação à Renata. “Ela sempre permitiu que eu fizesse o que estava além do meu alcance. Ajudou-me muito e principalmente me ensinou muito”. Esse amor que Jefferson mantém pela coordenadora pode ser exemplificado no calendário que estava sobre sua mesa, marcando a data de aniversário dela, com os dizeres “Aniversário da melhor coordenadora”. Observando a forma de trabalhar dos dois, realmente ambos parecem estar sempre na mesma sintonia, na mesma direção. Profissionalmente,foram feitos um para o outro. Márcio, o professor de dança, foi fundamental em sua vida. “Lá na banda, o bom de participar, é que você aprende a trabalhar em grupo, ser líder, ajudar as pessoas. É o que acontece no trabalho do dia a dia, então devo muito a eles”. A gratidão estende-se para o professor também, não somente pelos ensinamentos, mas pelo fato de ter colaborado financeiramente para que Jefferson pudesse pagar as primeiras parcelas da faculdade de Pedagogia em Bariri. Além disso, havia sido Márcio quem arrumou um estágio na prefeitura de Bariri, onde ele pode trabalhar como professor e à tarde participar do corpo coreógrafo da escola. A maior dificuldade era ter ensaios todos os dias, o que o deixava exausto, mas sabia que ali eram os primeiros passos em busca de seu objetivo.
Depois da partida dos professores, uma mulher alta, também professora, vai até a sala da direção. Ela percebe que estamos conversando, olha para as vestes de Jefferson e elogia a calça da qual estava vestindo. Era de cor marrom, bem justa em seu corpo e possuía um tom de cor parecido com as botas – eram do estilo mais moderno, casual, não aquelas utilizadas pelos peões ou por pessoas que moram na zona rural. “Olha, eu queria muito uma dessa para mim”, disse ela, com olhares diretos para calça. Silêncio, acompanhado de sorrisos e olhares.
O sinal podia ser ouvido de longe. Era um barulho ensurdecedor e longo. Os alunos abriam as portas e começavam a sair em peso. Hora do intervalo. Jefferson me avisa que deve ficar com eles no pátio e que era preferível minha presença lá no corredor onde estive durante grande parte do dia. Alguns alunos remanescentes nas salas de aulas começam a sair correndo para descer para o horário de descanso. Jefferson começa a dar diversas broncas para que eles parem de correr pelos corredores, inclusive uma ameaça de que iriam retornar para seus lugares de origem, “Para de correr, ou vão voltar”. Uns obedeciam, outros continuavam, porém de uma forma mais devagar. Durante o dia, as principais advertências verbais do auxiliar pedagógico eram para que parassem de correr e para que voltassem para sala. Nada muito além disso. A grande maioria não possuía muitos problemas relacionados à disciplina.
A mulher trabalhava tranquilamente e carregava algumas cadeiras quebradas. Um aluno, que vinha do local onde se encontravam as salas do ensino infantil, viu que ela estava com dificuldades de carregar aqueles objetos e subitamente a ajuda. A escola havia implantado em 2013 um programa onde os valores de liderança eram trabalhados, como altruísmo, força de vontade, pró-atividade, entre outros. Jefferson faz parte de um grupo de “coordenadores” do projeto e atua como redator, fazendo a ata de tudo que é dito nas reuniões. Porém, antes de chegar a esse programa, muitas mudanças ocorreram na escola. Primeiro era chamada de “Colégio La Salle” – seu nome é inspirado em um sacerdote e pedagogo francês, João Batista de La Salle, declarado patrono de todos educadores pelo Papa Pio XII –, uma instituição tradicionalmente católica, já que ficava ao lado de uma Igreja Católica e tinha como diretor principal e dono, um padre. Posteriormente foi comprada por dois empresários que mudaram o nome para “Colégio Dinâmico Centro”. Em 2013, houve uma ruptura desses dois empresários e apenas um continua como dono, mudando o nome novamente, agora para “Colégio Athena”. Jefferson estufa o peito ao falar que trabalha no Colégio Athena, já que quando começou a trabalhar ali essa instituição já havia recebido esse nome. Sabe decorado o dia que teve sua carteira assinada. “Dia 16 de outubro de 2013”. “Mandei o currículo, por mandar, não tinha esperanças. Daí a Rê me ligou e me chamou para estagiar aqui. Comecei em setembro. Um mês depois fui registrado”.
Várias vezes era possível ouvir “Oi, tio Jeffs” ou então simples “Oi Jeffs” e “Eae Jeffs”. Passavam por defronte a ele e subitamente ouviram-se cumprimentos, nem que fossem os mais simples possível. Regularmente, também, era procurado para ajudar os alunos. Alguns pediam ajuda ou queriam conversar apenas com as duas principais coordenadoras, Renata Bersi – já recuperada, porém não totalmente, do acidente – e Beatriz Meirelles. Mas Jefferson não passava despercebido e muitos assuntos que poderiam ser considerados fora de seu alcance são resolvidos por ele quando é acionado. Três meninas do 6º ano começam a conversar em particular com Jefferson para reclamar de alguns meninos que as atrapalham nas aulas. Dois alunos são retirados da sala pela professora de literatura chamada Paula, de estatura baixa, mestiça e com um visual bem único, que o chama para resolver a situação. A pequena menina loira de olhos azuis e com aparência meiga adentra ao banheiro e por lá fica durante um tempo. Alguns minutos depois ela é vista novamente e cutuca Jefferson pelas costas. “Tio Jefferson… éééé… eu fui dar descarga, daí a água começou a subir e o negócio… puf, caiu no chão… Você pode me ajudar?”. Sua reação foi de entrar juntamente com a menina no banheiro para averiguar a situação. Profissionalismo é a palavra que o rege. “Se a Cris (dona da escola) pedir para eu limpar o chão, eu limpo, tô aqui para isso”. “Não entrei aqui apenas para ser mais um e sim um que faça a diferença, que queira aprender e, além disso, ajudar naquilo que for preciso”.
Muita gesticulação, muitos sorrisos. Ao falar de seus gostos, notei uma certa pressa, não só porque estava atarefado, mas também por considerar algo superficial para o contexto da entrevista, mas sempre com muita educação e sempre pausando para que eu pudesse anotar as informações. Baladas, músicas eletrônicas, dance eram alguns dos gostos. Agora diz que tem sua preferência em sertanejo, MPB, músicas mais clássicas. Salientou diversas vezes que possui opinião própria e nunca foi “alguém que fazia o que os outros faziam”. Considerava-se católico, mas disse ser adepto da Umbanda, uma religião com raízes africanas. Ele não frequentava nenhuma instituição religiosa, apesar de ter religião, por dois motivos: falta de tempo e um lugar que ele considere bom para frequentar.
Mas teve uma coisa que, segundo ele, não pode escolher, já nascera assim: orientação sexual. Não o questionei em nenhum momento sobre isso, quis que ele mesmo pudesse dizer para mim sobre essa questão. E foi assim. Naturalmente. Jefferson é homossexual. Convive com crianças e adolescentes praticamente o dia inteiro e nunca sofreu nenhum tipo de preconceito por parte deles e nem dos pais. A mãe de uma das alunas que preferiu não se identificar disse ter total confiança nele. “Certa vez liguei perguntando da minha filha. Ela tinha um namoradinho do ensino médio e eu ficava preocupada se o namoro atrapalhava os estudos. Liguei e conversei com o Jefferson. Ele me garantiu que iria ficar de olho neles. O que eu achei legal é que foi rápido e direto, senti firmeza. Daí, uns dias depois minha filha chega em casa e diz que o Jeffs não desgrudava dos dois. Ele sabia de todos os planos que eles tinham pra namorar escondido. Achei isso o máximo. Ele ganhou minha confiança. O melhor é que minha filha não pegou raiva dele, apesar de poder considerar ele um chato por ficar atrás deles”. Jefferson tinha valores bem claros.“Meu profissionalismo sempre me guiou. É isso que eu quero mostrar para as pessoas, nada além. Sou amigo dos alunos também, mas nada que interfira no lado pessoal. Eles não precisam saber disso. E mesmo se souberem, ou desconfiarem, eu quero que me vejam como o profissional e amigo Jefferson ,e não como o homossexual Jefferson”.
“Existe preconceito, obviamente. Trabalho com educação, sei que estou propenso a essas coisas. Mas meu profissionalismo e ética estão acima. Eles não quebram o preconceito, mas o afastam cada vez mais.” É essa a ideia que finaliza sua explanação sobre educação. Jefferson levanta e vai ajudar uma menina que estava se preparando para uma sessão de fotos. Em sua mesa estava um calendário que ele havia recebido quando fora em uma excursão para o “Sítio do Carroção”. Nela estavam marcadas datas e alguns compromissos. Em cada mês era possível ver uma palavra escrita – era de sua autoria, já que sua grafia era fácil de reconhecer – na parte superior. Dentre elas, havia “Absorver”, “Refletir”, “Incidir”. Perguntei depois quando havia retornado o que significavam. “São apenas as senhas para acessar o portal do sistema, elas mudam todo mês”. Inconscientemente, Jefferson escrevera palavras que significavam não somente simples senhas. Ali era sua essência como profissional. Sua busca incessante em aprender, fazer a diferença onde ele trabalhava, em prol de uma educação melhor e em inspirar as pessoas, mesmo que sem perceber.