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Ainda existe racismo?

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A humanidade evoluiu em muitos aspectos, mas em questões básicas como o respeito à dignidade humana ainda há muito o que aprender.

Por Lucas Alonso

“Você é homem, mulher ou um macaco?”
Este foi o comentário em uma rede social que levou a fisioterapeuta Lívia Guimarães a procurar a polícia para registrar um boletim de ocorrência por injúria. Mulher e negra, aos 28 anos Lívia se viu pela primeira vez procurando as autoridades para não ser a vítima passiva de uma realidade que, infelizmente, transcende a história e se configura como uma chaga no coração do país: o racismo.
“Eu já fui vítima de racismo várias vezes, principalmente na escola, quando eu era mais nova. Fazia já bastante tempo que eu não vivia uma situação semelhante. Das outras vezes eu não tinha tanta informação sobre a importância de denunciar, mas quando aconteceu de novo, eu não pensei duas vezes. Eu não poderia deixar passar”, conta a fisioterapeuta.
Livia é mais um número dentro de uma estatística que só cresce no Brasil. Um levantamento da Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial mostra que, de 2011 a 2015, houve um aumento de aproximadamente 186% nas denúncias de injúria racial e racismo recebidas pelo órgão. A Ouvidoria, que pertence à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e integra o Ministério da Justiça e Cidadania, atribui o aumento do número de denúncias ao encorajamento da população. As vítimas do racismo, portanto, estariam cada vez mais cientes da gravidade dos crimes raciais e mais dispostas a não deixá-los impunes.
 

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Lívia é mais uma das vítimas do racismo: o número só cresce. (Reprodução/Facebook)


 
Para o advogado Antônio Carlos da Silva Barros, presidente da Comissão do Negro e Assuntos Antidiscriminatórios da OAB-Bauru, o aumento do número de denúncias não se deve somente à coragem das vítimas. A mídia tradicional e as redes sociais também colaboram para esse crescimento. “Nos últimos anos, os meios de comunicação auxiliaram na reflexão e no modo como as questões raciais são discutidas. Antigamente, a discussão acerca do racismo estava muito atrelada apenas a aspectos socioeconômicos, mas hoje, outros pontos estão sendo considerados, como por exemplo, os altos índices de mortalidade da população negra, a representatividade do negro e até a presença do negro em obras de ficção como as novelas”, explica o advogado.

Redes Sociais

Se, por um lado, as redes sociais fomentam a discussão sobre as causas e efeitos do racismo, por outro, tornam-se terreno fértil para práticas discriminatórias, justamente pela sensação de anonimato vivida pelos internautas. Greice Luiz é primeira secretária do Conselho da Comunidade Negra de Bauru e já sentiu na pele a realidade racista das redes.
“Na verdade existem racistas em todos os lugares, mas nas redes sociais eles se sentem à vontade para propagar os seus julgamentos. A ‘opinião’ se torna discurso de ódio quando alguém ataca e ofende pessoas de outra etnia, colocando-as em situações vexatórias, como se uma etnia fosse superior à outra, e expondo-as de maneira a reduzir sua autoestima, cultura, religião e dignidade”, comenta Greice.

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Um usuário “fake” foi o agressor no caso de Lívia. (Reprodução/Facebook)


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Nas redes sociais, a reação de Livia foi imediata. (Reprodução/Facebook)


 
No cerne de todo preconceito, racial ou em qualquer outra de suas vertentes, está o conceito de que uma determinada raça, etnia, credo, orientação sexual é superior ou melhor que outra. Discriminar um ser humano não pelo que faz, mas pelo que é, pode ser um problema muito difícil de lidar.
A própria Greice Luiz, hoje ativista em prol do movimento negro, demorou algum tempo para compreender que o conformismo não é nem de longe o melhor caminho a ser seguido pelas vítimas. “Hoje sou militante por ter sido diversas vezes vítima do racismo, inclusive dentro da universidade. Antes eu escrevia cartas e documentos formais cobrando providências, mas hoje entendo a importância da denúncia. Eu não tinha a mesma cabeça de hoje”, explica Greice.

Crime

Racismo é crime, previsto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Não é uma questão de opinião ou interpretação pessoal. O inciso XLII coloca o assunto de forma bastante clara: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.” Tanto a Comissão do Negro e Assuntos Antidiscriminatórios da OAB-Bauru quanto o Conselho da Comunidade Negra de Bauru trabalham junto a outros órgãos para combater o racismo e conscientizar vítimas e a sociedade como um todo a respeito da problematização que envolve o preconceito racial.
“Registrar o boletim de ocorrência é só o primeiro passo. Em Bauru, as vítimas têm a possibilidade de procurar a Comissão e o Conselho. Faz parte das nossas atribuições pedir cópias dos registros da Polícia Civil ou Federal – dependendo do caso – e acompanhar de perto todo o andamento dos inquéritos, cobrando das autoridades as providências cabíveis. A mensagem mais importante que queremos passar é que a vítima não está sozinha”, explica Antônio Carlos.

Racismo e injúria

O caso de Lívia foi registrado pela Polícia Civil como injúria, crime previsto pelo artigo 140 do Código Penal. Configura-se crime de injúria racial se as condições forem as mesmas dispostas no parágrafo 3º da lei: “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. A pena prevista é reclusão de um a três anos e multa.
É importante entender a distinção entre os crimes de injúria e racismo.  De acordo com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a principal diferença está no elemento subjetivo. O praticante do racismo age com o intuito de menosprezar, inferiorizar, de forma genérica, determinado grupo étnico, raça ou cor. Não há um destinatário específico. A injúria por sua vez consiste em ofender a dignidade e o decoro de uma determinada pessoa, exatamente como no caso de Lívia. Em suma, a distinção entre os dois crimes está no objetivo do agressor: ofender a parte ou o todo.
Além disso, as punições também são bastante diferentes. A injúria racial é crime de ação penal pública condicionada à representação, afiançável e prescritível, podendo o acusado responder em liberdade.
Já o delito de racismo é de ação penal pública incondicionada, sendo necessário apenas que sua ocorrência chegue ao conhecimento das autoridades (Polícia ou Ministério Público). Além disso, a Constituição Federal prevê que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei.

INJÚRIA RACIAL RACISMO
Prescritível Imprescritível
Afiançável Inafiançável
Atinge determinada(s) pessoa(s) Atinge um nº indeterminado de pessoas
Ação penal pública condicionada à representação Ação penal pública Incondicionada
Penas mais brandas Penas superiores
Lesão da honra subjetiva da vítima. Lesão do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

“Quando falamos em injúria como ação penal condicionada, isso quer dizer que a vítima tem que se manifestar publicamente, ou seja, ela tem que representar contra o agressor. Após seis meses, caso não seja feita a representação, a vítima perde o direito à manifestação. Diferente do racismo, cuja ação é incondicionada. Assim que ocorre o fato, as autoridades têm o dever de ação, que é a prisão do agente e, ao mesmo tempo, o Ministério Público não precisa aguardar a manifestação da vítima. Ele pode agir de maneira efetiva em razão da existência do crime”, explica Antônio Carlos.

Celebridades

Nos últimos anos, casos de preconceito racial sofridos por celebridades nas redes sociais tiveram grande repercussão no noticiário nacional e no cotidiano das pessoas. Em 2015, a jornalista Maria Júlia Coutinho, famosa por apresentar a previsão do tempo no Jornal Nacional, da TV Globo, foi vítima de uma enxurrada de comentários de cunho racista em seus perfis nas redes sociais.
A atriz Taís Araújo, também em 2015, passou pela mesma situação. Em suas fotos houve comentários como: “Já voltou da senzala?”, “Cabelo de bombril”, “Cabelo de esfregão” e “Quem postou a foto desse gorila?”.
Mais recentemente, a filha do casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank também foi vítima de ataques racistas. Chissomo, apelidada de Titi, tem 2 anos e foi adotada pelo casal no Malauí. Em uma foto postada por Bruno, na qual ele aparece com a esposa e a filha no mar, uma internauta comentou que o ator deveria devolver a criança para a África ou jogá-la no lixo.

Nos três casos, a Polícia Civil e o Ministério Público agiram rapidamente no intuito de rastrear e identificar os agressores, visando seu enquadramento nos crimes de racismo e injúria racial. No caso de Maju, por exemplo, depois de identificados, os quatro homens acusados de planejar e executar ataques racistas contra a jornalista foram indiciados pelos crimes de racismo, injúria, falsidade ideológica, corrupção de menores e associação criminosa na internet. Se condenados, suas penas podem chegar a 20 anos de prisão.
Em relação ao caso de Taís Araújo, quatro homens foram presos e um menor foi apreendido. Durante o cumprimento dos mandados de prisão, os policiais descobriram que eles estavam envolvidos em vários outros casos de racismo e um deles também armazenava arquivos de pornografia envolvendo crianças e adolescentes.
Quanto ao caso de Titi, a polícia conseguiu identificar os responsáveis em uma ação batizada de “Operação Gagliasso”. O fato que chocou as autoridades é que um dos autores das ofensas racistas era uma menina de 14 anos, negra, que usava um perfil falso nas redes sociais e tinha plena certeza de que permaneceria impune.
“No Brasil temos as leis que definem os crimes de racismo e injúria racial. Ambos os crimes podem ser cometidos na Internet através de postagens em redes sociais ou até mesmo envio de mensagens privadas, e-mails ou pelo WhatsApp. Atualmente se encontra na Comissão de Constituição e Justiça do Senado o Projeto de Lei 80 de 2016, que dispõe sobre a prática de crime de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional por intermédio da Internet ou de outras redes de computadores de acesso público. Caso aprovada, a lei será ainda mais gravosa em delitos cometidos pelos meios virtuais, haja vista o alcance inestimável de pessoas”, afirma Leonardo Góes de Almeida, advogado especialista em Direito Digital.
E no caso de Lívia? As autoridades conseguem trabalhar com a mesma agilidade e eficácia? Ela foi até a Central de Polícia Judiciária, em Bauru, no dia 12 de janeiro de 2017 e conta que demorou quase cinco horas só para conseguir registrar a ocorrência. “Eu cheguei às duas da tarde na delegacia e só saí depois das seis. Eram poucos funcionários para atender dezenas de pessoas”, conta a fisioterapeuta.
Ela foi orientada pelos investigadores a acompanhar de perto o caso, voltando à delegacia todos os meses até que o caso seja finalizado. E é exatamente isso o que ela pretende fazer. “Ainda não tive nenhum retorno da polícia, mas vou voltar lá todos os meses pra acompanhar o caso de perto, até o fim.”

A voz da vítima

“Na minha casa, eu sempre tive a consciência de que, independente da minha cor, eu era igual a todos. Minha mãe sempre me lembrava: ‘não deixa ninguém te humilhar, não deixa ninguém ficar te xingando, falando do seu cabelo ou da cor da sua pele, porque você é linda!’. Meus pais sempre deixaram muito claro que eu era normal como qualquer criança e, sim, eu pensava exatamente assim. Mas quando eu sofri preconceito a primeira vez na escola, me senti muito mal, porque não era apenas uma pessoa falando. Um grupinho se reunia e me massacrava. Diziam que eu era feia, que meu cabelo era horrível e que minha mãe tinha me esquecido no forno. Isso afetou muito a minha autoestima. Eu já era bastante tímida e fiquei ainda mais retraída. Até que não aguentei e pedi pra mudar de escola. Eu tinha uns onze ou doze anos, na época. Saí da escola pública e entrei em uma escola particular, onde eu era a única pessoa negra da sala. Por incrível que pareça, lá eu nunca sofri preconceito e construí grandes amizades.
Sobre o caso desse comentário no Facebook, quando eu li ‘macaco’ quase cheguei a achar a situação engraçada. ‘Sério? Eu tô sofrendo racismo de novo?’ Só no dia seguinte, quando fui à delegacia é que a ficha caiu e me deu um estalo: ‘Nossa, isso ainda existe, realmente. Que bizarro! É algo surreal, que coisa ridícula, essa ignorância, essa idiotice ainda existe!” Mas não deixei isso abalar minha autoestima e minha dignidade. Essa não foi a primeira vez e pode ser que não seja a última, mas eu já decidi: não importa quantas vezes eu sofra (racismo), em todos os casos eu vou denunciar!”

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“Passei a infância isolada, reclamando do meu cabelo e me sentindo feia. Hoje eu sei que eu sou linda e meu cabelo é maravilhoso.” (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Redação

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