Por Ana Raquel Mangili, Jorge Salhani e Tamiris Volcean
Os pratos de um país ou região dizem muito sobre o povo que ali habita, por isso, é importante entender essa relação tão íntima entre gastronomia e cultura. O ser humano não se alimenta simplesmente com o objetivo de saciar a sua fome ou para manter seu corpo em ordem. Cada refeição vem acompanhada de uma carga de outros sentimentos, dependendo de quais alimentos são utilizados, quais temperos são escolhidos e qual é o modo de preparo.
A alimentação, no âmbito da gastronomia e da culinária, é parte da identidade de cada indivíduo ou grupo populacional. Isso acontece, segundo a doutora em Ciências Sociais Talita Roim, desde os primórdios da humanidade: todos os processos, da agricultura e pecuária ao modo de preparação, demarcam diferentes formas de sociabilidade, independentemente da localização ou cultura dos povos.
Guilherme Bonamigo, coordenador da pós-graduação em Gastronomia do Senac Aclimação, em São Paulo, acrescenta que a alimentação se torna expressão cultural e passa a ter cunho simbólico com a divisão geográfica dos povos e o início do comércio entre eles. Com isso, cria-se a noção de pertencimento a um lugar específico ou grupo social, fazendo com que os indivíduos fortaleçam seus laços. A culinária e a gastronomia, consequentemente, somadas a diversos outros elementos, constituem as identidades nacionais.
Talita comenta que a gastronomia é importante para, inclusive, diminuir o preconceito entre as pessoas. “Ela contribui para uma aproximação cultural e até mesmo para minimizar a falta de conhecimento entre diferentes populações”.
O ser humano não se alimenta simplesmente com o objetivo de saciar a sua fome ou para manter seu corpo em ordem.
Quando comemos um prato ou alimento específico, podemos nos lembrar de um ente querido que o preparava, de uma viagem marcante ou de um jantar com uma pessoa especial. Essas conexões são ainda mais fáceis de serem encontradas atualmente, em um mundo globalizado, onde há menor dificuldade para se obter alimentos e maior facilidade para se encontrar um restaurante de uma cultura em particular.
Bonamigo ressalta que os sistemas culinários são dinâmicos, do ponto de vista cultural: após as grandes fusões culinárias nas décadas de 1960 e 1970, quando foram inseridos elementos da cozinha oriental na ocidental, “as pessoas têm uma facilidade maior de abraçar uma nova cultura a partir da boca”, diz.
Na atual configuração do mundo, entretanto, a falta de tempo livre demanda que as pessoas se alimentem de forma cada vez mais rápida, resultando no avanço das redes de fast food e do consumo de alimentos pré-prontos. Talita Roim comenta que, apesar dessa tendência, de caráter global, existem movimentos culturais, de áreas como nutrição, gastronomia ou antropologia, que oferecem outras possibilidades.
Restaurantes intimistas
Gastronomia e afeto se entrelaçam também através do conceito de “restaurante intimista”, ou “Supper Clubs”, onde o que conta é a experiência individualizada e a interação entre quem cozinha e quem consome, como se fosse um jantar na casa de amigos. Aliás, a maioria desses estabelecimentos é montada nas próprias residências dos chefs, e podem alcançar o status de melhores lugares turísticos secretos da gastronomia local. Foi o caso do Supper Club parisiense “Chez Nous Chez Vous” (CN CV) (em português, “Nossa Casa, Sua Casa”), estabelecimento de culinária francesa que é propriedade de uma brasileira.
Jorge Clemente Diego é graduado em gastronomia pela Faculdade de Tecnologia Intensiva de Fortaleza, Ceará. Tem especialização em gestão de qualidade e segurança dos alimentos e em gastronomia e nutrição. Desenvolve pesquisas sobre os diálogos entre a gastronomia, a psicanálise e a antropologia. É, também, chef e proprietário do restaurante El Molino, em Fortaleza, especializado em culinária espanhola.
Jornalismo Especializado Unesp: O prazer gastronômico sempre existiu, desde os primórdios das civilizações, ou é algo que foi criado culturalmente?
Jorge Clemente Diego: Acho importante diferenciar/explicitar alguns termos antes de dar uma resposta. Se pensarmos em termos de “civilização”, ou seja, em processos civilizatórios de uma determinada sociedade, em um determinado tempo histórico, com todas as suas regras morais e éticas de comportamento e convívio social, não podemos dizer que o “prazer gastronômico” existe desde os primórdios das civilizações, mas que é anterior aos processos civilizatórios. Tomando como perspectiva a tese de Lévi Strauss em conjunto com a proposição psicanalítica de Freud, podemos pensar que o “prazer gastronômico” (o prazer de comer) surge quando o homem se apropria do ato de temperar e descobre o desejo (no caso, o desejo de comer pelo sabor, pelo paladar, e não apenas pelo instinto de sobrevivência).
Jornalismo Especializado Unesp: O prazer pela alimentação mudou, de alguma maneira, com o passar das gerações?
Jorge Clemente Diego: Com relação às evoluções do prazer gastronômico, sim. Se a cultura é algo mutante, e os povos são diferentes em todos os sentidos, porque não no caso da cultura alimentar? O prazer em si é algo subjetivo: o gosto de comer determinado alimento é da ordem do sujeito em uma determinada cultura.
Jornalismo Especializado Unesp: A psicanálise explica, de alguma forma, os sentimentos que temos ao comer algum alimento (além das sensações, gostos e cheiros)?
Jorge Clemente Diego: As sensações prazerosas, de acordo com a psicanálise, estão ligadas a vivências anteriores, em épocas primeiras do desenvolvimento de uma pessoa que assumem uma significância positiva. Quantas vezes escutam-se comentários de comensais que associam o sabor de um determinado alimento à doçura, a cheiros, à lembrança de uma infância feliz? É clássica a cena do crítico gastronômico no filme Ratatouille (2007) rendendo-se ao prazer quando degusta o prato servido. Na verdade, o que está sendo prazeroso, para além de um prato bem elaborado, bem apresentado, feito com ótimos ingredientes, é o calor, a felicidade rememorada pelo crítico. A comida transporta o sujeito para outro tempo, para outro espaço. Neste sentido, a gastronomia é transporte, é veículo.
Jornalismo Especializado Unesp: Em um de seus artigos, o senhor comenta sobre a importância dos chefs ligarem suas técnicas culinárias com o amor. Por que isso é importante? O que o afeto acrescenta na gastronomia?
Jorge Clemente Diego: O prazer que o chef gastrônomo quer proporcionar ao seu comensal vem do amor embutido no prato, do amor da arte gastronômica oferecida subjetivamente, não do amor técnico. Em gastronomia, o verbo é sentir, emocionar-se. Para isso, estão os cozinheiros, chefs e gastrônomos que, unindo técnicas e cuidados aliados à culinária com seu amor, são capazes de produzir prazer que, com certeza, norteará o deleite final do comensal. Na verdade, isso é uma proposta. Uma sugestão de perspectiva ou uma constatação de nossa experiência. Não se trata de uma regra. Quantos cozinheiros cozinham sem alma, sem prazer, sem libido, sem arte? Dar de comer a uma pessoa é definitivamente mais que nutrir, mas muitos podem pensar de forma diferente.