Escreva para pesquisar

Bauru, a casa grande entre senzalas urbanas

Compartilhe

A quem se destinam as fronteiras da cidade ‘sem-limites’?

Ana Carolina Moraes
Giovana Amorim
Laura Botosso
Yuri Ferreira

Nos dias de chuva o centro de Bauru parece se desfazer. Enquanto as calçadas enchem com a água das enxurradas, as ruas e praças ficam vazias, com poucas possibilidades de abrigo para quem quer passar. O único coreto da praça Rui Barbosa é uma delas, junto com as marquises do Calçadão da Batista, lugar reservado para lojas grandes ou pequenas, onde os carros não entram.

Ao contrário de dias como esses, o constante movimento nas quatro ruas que marcam o contorno da praça central da cidade é uma amostra da funcionalidade do espaço. Raras árvores, bancos expostos ao sol e chuva e a falta de chamadores culturais reduziram a vastidão do lugar à uma passagem.

Os pedestres tiram pouco ou nenhum tempo para aproveitar o lugar; a maioria apenas cruza o pavimento para chegar às lojas, ao banco, aos estacionamentos. Quem utiliza mesmo o espaço são os moradores e moradoras em situação de rua que vão até o centro da cidade para trabalhar cuidando de carros, embaixo do sol escaldante, ou para encontrar seus conhecidos, espalhados por alguns bancos nos cantos. Grupos de idosos aposentados – já conhecidos por morarem na região – se sentam sob as poucas sombras para jogar baralho ou dominó. Alguém às vezes recita a bíblia.

Essa disposição vem de pouco tempo. A Rui Barbosa e o centro da cidade mudaram de forma constante desde sua criação e ao longo do desenvolvimento. Estritamente ligado à chegada e desenvolvimento da ferrovia, esse espaço recebeu grande variedade de experiências daqueles que passavam ou se instalavam pela cidade. Alí cresceram as trocas comerciais e sociais, que concentraram o centro da população em torno da economia local. Não por acaso, a partir desse ponto, se iniciaram os projetos de revitalização da praça e construção do calçadão.

NÃO É PRAÇA

A região, conhecida como Saara por conta do clima quente e seco da cidade, deu possibilidade para a criação da Rui Barbosa, chamada inicialmente de Praça Municipal. Ligada à Catedral do Espírito Santo, igreja matriz, a praça teve seu caráter religioso modificado com início no primeiro projeto, de 1914, inspirado na Praça da República de São Paulo, que dava ao lugar um caráter de contemplação e integração. Cheia de arbustos e árvores, com um vasto lago e caminhos sinuosos, buscava aspectos contemporâneos da capital para implementar no interior em desenvolvimento a modernidade, muito comumente almejada pela elite que detinha o comércio do café, que entraria em crise no fim da década dando lugar à expansão da ferrovia pelo noroeste paulista.

Os interesses da elite cafeeira são marcadores importantes das apropriações do espaço na conjuntura da época. O artigo “Perda de patrimônio paisagístico: praça Rui Barbosa, Bauru – SP” publicado pela arquiteta, paisagista, professora e doutora do Departamento de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Emília Falcão, mostra que nos anos de 1930 a presença de pessoas negras não era permitida na praça, e era fora de seus limites que circulava essa população. Enquanto isso, era ali que famílias brancas passavam o tempo.

A praça de convivência se tornou local de passagem / Foto: Ana Carolina Moraes

A primeira reforma aconteceu nos anos 1950, quando a comunicação e a cultura efervesciam. A grande movimentação, especialmente da população trabalhadora, pobre, negra, leva à transição de um lugar de interações para um lugar de passagem, numa tentativa de dispersar essas presenças. A revitalização de 1991 evidencia essa mudança de forma drástica: a maior parte das árvores é cortada, o lago dá lugar à uma fonte muito menor, os caminhos viram um pavilhão de concreto, quente demais ao sol, molhado demais na chuva. Adilson Santos, 45, cuidador de carros na região da Rui Barbosa, pedreiro e repórter do jornal independente Fatos da Rua, feito por pessoas em situação de rua, conta que sua relação com o lugar é antiga. Ele relembra a praça na sua infância “De primeiro tinha show, sexta, sábado, domingo. Tinha sorteio de leitoa. Parecia um parque, tinha peixe, macaquinho, ganso. Hoje não tem mais nada, só alguns bancos quebrados”. Acostumado a passar jornadas de trabalho inteiras na região ele lamenta “aquilo não é praça”.

O deslocamento do centro é um sintoma dessa separação. É que agora a elite, os comerciantes e empresários, se deslocam em direção aos shoppings, às áreas residenciais mais caras, aos subúrbios e condomínios. O centro de detenção dos meios produtivos e recursos não significa o centro da cidade em sua geografia e é movido por interesses imobiliários, onde as classes mais altas concentram suas relações. Com esse deslocamento vai junto o interesse econômico, a aplicação da verba pública e os recursos de produção. A transformação e abandono da Rui Barbosa diz respeito ao interesse de valorização de regiões específicas, as privilegiadas, em detrimento das onde estão aqueles chamados de ralé.

SEGREGAÇÃO

Depois da parada no último ponto da linha de ônibus, parece que não tem mais cidade. O bairro Edson Francisco Silva, também chamado de Bauru XVI, é o último da zona oeste, a 7 quilômetros do centro. É um bairro residencial, como foi planejado, mas não tem espaços de convivência comum como praça ou quadra de esportes: as crianças jogam bola na quadra com terra batida.

No bairro da frente, o Nova Esperança, a realidade se repete. Quando tem alguma atividade cultural para a comunidade, o pessoal se reúne em um terreno atrás do posto de saúde. Não tem banco, sombra ou cimento. É um terreno mesmo, cercado por árvores e um alambrado. Precisa subir um pequeno barranco para entrar. Tem alguns aparelhos de fazer ginástica, e o banquinho de um senhor. E só.

Em comum, os dois espaços, mesmo em áreas acêntricas, têm infraestrutura básica e são providos de linhas de ônibus que ligam os últimos bairros da zona oeste aos condomínios da zona sul. Mas, aos finais de semana e feriado não tem ônibus direto. Como os bairros não oferecem lazer, o jeito é, às vezes, caminhar cerca de uma hora e meia até a Avenida Rodrigues Alves, principal corredor de ônibus da cidade, para se deslocar até o Parque Vitória Régia ou o shopping.

O último bairro da Zona Leste de Bauru é o Pousada da Esperança II. Do centro, são 7,5 quilômetros de distância. Diferente dos dois outros exemplos apresentados, o Pousada não tem infraestrutura – tubulações de água, ruas asfaltadas, saneamento básico são itens que estão sendo construídos por lá agora, em 2017. Apenas três linhas ligam o Pousada ao restante da cidade, e os coletivos passam a cada uma hora – no bairro e nos pontos que levam quem está na cidade para o Pousada.

A segregação espacial no território bauruense foi pauta do Plano Diretor da cidade entre 2005 e 2006. O professor de arquitetura José Xaides de Sampaio Alves, que participou da elaboração do Plano, conta que, na época, já havia uma preocupação com a fragmentação do espaço urbano orientada pelo capital. “Um dos principais debates feito pela sociedade era o combate a segregação social urbana, que criava mesmo um apartheid social entre as zonas mais ricas, os condomínios, a zona sul da cidade, onde o mercado tinha elegido como as áreas para os grandes investimentos, em detrimento de uma população que ficava cada vez mais abandonada na periferia, sem os aparatos públicos, sem os projetos de valorização dos espaços, de integração com a cidade, de desenvolvimento, de geração de renda, de geração de empregos naquela região, e afastando da distribuição de benefícios da cidade”, comenta.

O diagnóstico urbano do Plano traz a mesma perspectiva de Xaides, a de que a construção dos espaços urbanos de Bauru resulta de “uma forte segregação espacial, onde a população mais abastada ocupa as áreas mais bem servidas de melhoramentos públicos e a população carente mora cada vez mais distante, nos loteamentos periféricos, precariamente servidos de infra-estrutura”.

MIGALHA

“A cidade é um reflexo físico da política de interesse, da relação de classes do interior da cidade”, afirmou José Xaides, docente de Arquitetura, sobre o planejamento seletivo dos espaços urbanos na cidade. “Desde os anos 1980, a região de Zona Sul foi eleita pela classe dominante como a região que deveria ser mais favorecida. Não é a toa que você olha para essa região e encontra todos os equipamentos de lazer, todos os clubes de serviço, as melhores praças e as melhores áreas de lazer, os edifícios públicos, as melhores avenidas, as melhores condições de parques, jardins, e assim por diante”, explica.

A construção desigual da cidade também exprime a desigualdade de distribuição de renda. Segundo o Plano Diretor, de 2008, as pessoas pobres, que têm rendimento médio inferior a dois salários mínimos vivem nas regiões acêntricas de Bauru, conhecidas pelas ausências – de segurança, educação e cultura. Quem tem renda maior que quinze salários mínimos ocupa a zona centro-sul da cidade, com melhor infraestrutura e qualidade de vida.

Outro indicador apresentado no Plano Diretor é a educação. O documento mostra que a desproporção educacional dos bauruenses está atrelada ao território. É na região centro-sul, a mais rica, que estão as pessoas com maior escolaridade; a população analfabeta, por sua vez, reside nas zonas acêntricas, onde há poucas ou não há escolas.

“As periferias ficaram sempre com a migalha. A região norte, a região leste vêm crescendo de uma forma onde os recursos chegam minoritariamente, e as áreas da região sul são sempre as mais privilegiadas, pois o poder público as favorece, por conta dos compromissos com as classes dominantes”, comenta Xaides.

Foto: Ana Carolina Moraes

SENZALA URBANAS

Dos 400 bairros de Bauru, mencionados no Plano Diretor, 22 eram favelas com cerca de 3 mil barracos. A maior parte dessas construções ocupavam áreas verdes e de preservação permanente, distantes do centro. O professor José Xaides conta que, na época da discussão do plano, foi identificado que a cidade tinha muitos espaços vazios em seu interior e que não tinha necessidade de expandir para a periferia.

No entanto, esta perspectiva mudou quando a necessidade de expansão para as zonas mais afastadas parte dos interesses do capital financeiro, de construtoras. Xaides explica que, nesse processo, passou a ser aprovado condomínios na cabeceira de córregos, condomínios em áreas que eram originalmente de Preservação Permanente ou de APAs. “Isso gerou, por exemplo, um caso extremo aqui, de um condomínio que depois foi detectado que ele estava em área de APA no município Bauru e tinha sido aprovada como Agudos, e é um condomínio que está para ser desmanchado. E os bens da construtora, daqueles políticos que aprovaram, estão, inclusive, bloqueados pela Justiça para garantir a devolução do dinheiro de quem foi enganado. Alphaville também foi aprovado assim”.

Próximos a essas áreas periféricas apropriadas pelo capital financeiro para a construção de condomínios, por exemplo, surgem as favelas. Enquanto os condomínios têm organização para a construção das moradias, iluminação, asfalto, água – às vezes represas – e muros que “garantem” a segurança, as favelas são desprovidas de tudo e violentadas pelo Estado. Estes espaços acêntricos surgem ao lado dos condomínios para manter a hierarquia social e garantir a prestação de serviços subalternos dos mais pobres para os mais ricos.

É o caso do bairro Jardim Niceia. O bairro fica ao lado de uma universidade pública e entre três condomínios residenciais. Às seis da tarde, o fluxo nesta região é intenso: a entrada dos proprietários nos condomínios, a saída dos trabalhadores dos condomínios rumo às suas casas no Jardim Nicéia, a passagem de estudantes para entrar ou sair da universidade. Cada um destes atores, presos em suas realidades delimitadas por classes, sabem em qual espaço podem estar ou não. Xaides explica que o fenômeno de ter favelas próximas de regiões ricas é “social, cultural do Brasil, é a própria pobreza que justifica isso, como a casa grande e a senzala, vamos dizer assim, urbanas.”

CASA GRANDE

Enquanto isso, na zona sul da cidade, alguns locais se sobressaem aos olhos do público bauruense frequentador desta região. A avenida Getúlio Vargas, com sua pista de corrida e caminhada, ao lado da ciclofaixa, permitem a quem por ali transita uma agradável experiência rente aos limites da área do Aeroclube de Bauru, sombreada por árvores de pequeno e médio porte e por outras infra estruturas ocasionais – servindo tanto à quem pede descanso e hidratação (na presença de bancos e bebedouros públicos), quanto aqueles e aquelas que desejam aprimorar sua bateria de exercícios, nas duas academias ao ar livre distanciadas por menos de 5 quadras. Isso sem mencionar a renomada praça da Copaíba nas quadras 18 e 19, área que acolhe a árvore que originou seu nome, considerada patrimônio da história de Bauru.

Foto: Ana Carolina Moraes

Do outro lado da Alameda Dr. Octávio Pinheiro Brisola, à pouquíssimos quarteirões da entrada do Aeroclube, ergue-se o Bauru Shopping, primeiro espaço de compras fechado do município. Ainda tratando de consumo, a região entre a Praça Portugal e a Brisola é favorecida pelo Walmart e pelo Confiança Max: o primeiro, uma das maiores multinacionais varejistas; o segundo, a principal loja da rede de mercados Confiança.

O coração da zona sul, longe de constituir particularidade nata de Bauru, foi se aproximando do modelo atual a partir da década de 1990, período em que o comércio da região foi impulsionado pela abertura do Bauru Shopping, alcançando um desenvolvimento de até 40% ao ano nos pontos de transação.

Os primeiros projetos da Getúlio Vargas datam equivalência com a primeira revitalização da Praça Rui Barbosa. Entre 1960 e 1970, o limite do crescimento urbano descendente em direção ao município de Agudos era marcado pela Praça Portugal. Surgindo de um prolongamento da rua Gustavo Maciel, as pistas que viriam a ser a avenida foram estendidas, sempre em frente.

Foi durante o mandato do ex-prefeito Nilson Costa (2000 – 2004), que um grande investimento público na área foi empreendido para a continuação da duplicação da avenida a partir da Inácio Alexandre Nasralla, rua que acompanha a gleba do Aeroclube. Lotes em seu entorno foram desapropriados para a reforma se estender até os residenciais privados Samambaia e Paineiras, época também da implantação do calçadão de caminhada.

Costa considerava a Getúlio Vargas muito importante para o progresso da região sul. Não a toa, atualmente os condomínios na região dos Residenciais Villaggio e Alphaville, este último ultrapassando a rodovia Eng. João Batista Cabral, abrem a discussão sobre duplicação da avenida Affonso José Aiello, ligação destes condomínios à Getúlio Vargas.

APARTHEID SOCIAL

O Apartheid foi uma política de segregação racial na África do Sul, durante a maior parte do século XX. Neste cenário as divisões eram espaciais e a evidenciava a separação entre negros e brancos. O regime de segregação racial também vigorou nos Estados Unidos até que a última lei segregacionista caísse, em 1967. Até hoje, no entanto, a cultura norte-americana guarda em suas raízes uma forte delimitação de espaços físicos ou sociais entre as etnias que uma compõe.

A diferença desta política para a realidade de Bauru é que a segregação não é declarada. A lógica da segregação social delimita os territórios e demarca os espaços sociais em que as classes subalternas podem – ou não estar. E para isso, criam-se instrumentos para a manutenção desta realidade, como não ter ônibus que ligue o Edson F. Silva ao restante da cidade nos finais de semana e ausência de atividades culturais e de lazer no bairro, que já não conta com estruturas para promover o convívio social.

“A cidade vem, ao longo do tempo, sendo construída por todas as classes, mas a classe dominante, que tem relação com a imprensa, com os grandes capitais, com os políticos que são protegidos, é ela que detém as influências políticas que optam por valorizar as suas regiões, que indicam onde o poder público deve injetar recursos”, expõe  o professor José Xaides.

Bauru tem 371.690 habitantes, mas apenas de 38,5% da população bauruense está incluída no mercado de trabalho. Apesar disso, as pessoas entre 20 e 64 anos de idade somavam 216.718 no começo desta década. 73% da população bauruense é branca; os 27% negros da cidade não são vistos circulando nas áreas formais da região centro-sul aos finais de semana. Encontramos a população negra nas áreas acêntricas mais distantes do centro, com maior carência estrutural, ou de segunda a sexta-feira em horário comercial na região centro-sul, onde trabalham, muitas vezes, sem carteira assinada.

“TÔ SUJO?”

Adilson Santos é um trabalhador informal que ocupa a região central de Bauru durante os horários e dias comerciais – período que, para quem tem seu sustento olhando carros ou limpando os vidros dos automóveis no semáforo, pode se estender também aos fins de semana. Ele enxerga e sente na pele negra essa realidade segregacionista. Quando perguntado se frequentava a zona sul da cidade, o repórter afirmou ser “muito difícil, porque tenho cisma. Você passa por aqueles lados, a Polícia passa, vê você e já [te] pára”. É uma advertência, uma abordagem, ocorridas com frequências diferentes de quando se está nas regiões acêntricas, conta ele.

Independente de como se está vestindo ou do motivo que leva até avenidas como a Getúlio Vargas ou a alameda Octávio Pinheiro Brisola, o aparelho de segurança pública e os/as frequentadores/as desses locais vão demonstrar desgosto quando pessoas menos privilegiadas adentram seu território: “[quando] vou atrás de serviço, sou abordado do mesmo jeito. As pessoas também olham diferente. Com medo, atravessando calçada. Outros esperam você passar pra depois sair do carro. Já vi isso, já aconteceu comigo, e tenho certeza que já aconteceu com vários”, relata. Além de simples descontentamento, a repressão destinada às pessoas negras e com baixo poderio econômico por parte da Polícia Militar e de instituições de segurança privadas, nestas áreas em específico, são também ferramentas de legitimação da desigualdade sócio espacial, que constantemente perpassam a humilhação verbal e/ou psicológica, por vezes atingindo também a violência física.

Kelvin Dalana, jovem de 21 anos que olha carros para se sustentar em situação de rua, frequentava um ponto fixo na Getúlio Vargas, em frente ao restaurante Estância Grill, atrás do Aeroclube. Com o dinheiro que junta de seu trabalho, Kelvin tinha o costume de acordar e comprar no Confiança Max as “bolachinhas” que faziam a primeira refeição de seu dia. Apesar de relatar que os seguranças do estabelecimento “ficam cercando” outros moradores de rua, “jogando ofensas e piadas”, foi um policial à paisana que o chamou pelo nome no dia em que cumpria sua rotina diária no mercado. A primeira vista um cidadão comum, Kelvin perguntou de onde o conhecia. “Sou polícia, por que, Zé? Vai, vaza!”, alertou o membro da Polícia Militar, sem farda ou qualquer outro indicativo de que estava em horário de serviço. Sacando o RG e jogando o documento no chão em frente ao homem, Kelvin reiterou que é “cidadão igual o senhor”; independente que mora na rua, “tô vindo aqui comprar”. “Você vai ver, rapaz, você vaza e se você ficar aqui falando, vou te prender. E você não vai mais olhar carro aqui na Getúlio”, intimidou o policial.

Devido a essa ameaça sustentada por um abuso de autoridade, Kelvin não se arrisca à voltar ao espaço público que antes chamava de seu. “Eu tenho medo. Ele me ameaçou de bater, prender. Aí eu saí de lá”, afirmou o cuidador de carros.

Enquanto entregava currículos nos estabelecimentos da Getúlio Vargas, em uma quarta feira, José Eduardo Barbosa, morador em situação de rua que integra a massa de 61,5% de bauruenses desempregados, se dirigiu ao Confiança Max para tomar o café gratuito que os/as consumidores/as deste mercado amiúde fazem fila para beber. Na saída, Eduardo reparou que o segurança da loja o encarava. “Tô sujo?”, brincou ele com o funcionário. Ainda nos limites do edifício, nada aconteceu ao morador em situação de rua. Foi justamente ao alcançar a via pública que Eduardo foi imobilizado por 6 seguranças do estabelecimento, ao passo em que se reunia ao grupo a Polícia Militar, dando ordem para que deitasse no chão de bruços, com as mãos para cima. O mesmo segurança que o encarou na saída do mercado então chutou a cara de Eduardo, quebrando seu nariz e abrindo um corte que o obrigou a levar 18 pontos. Cinco dias após o ataque, a cicatriz de Eduardo ainda se destacava em seu rosto, assim como as manchas vermelhas no interior do olho esquerdo.

“NEGÓCIO DA CIDADE”

Em 2007, o Brasil foi anunciado como país sede da Copa do Mundo da FIFA. De lá para cá, choveu investimento para projetos de revitalização de centros históricos e reforço na segurança pública para que o evento, que ocorreria em 2014, fosse bem visto pelo mundo todo. A ideia, no entanto, não é nova: A região central antiga da cidade de São Paulo, nas imediações da Praça da Luz, por exemplo, passa por tentativas desse tipo de ação desde os anos 1990.

Revitalizar é uma palavra positiva, portanto, quem ouve acredita que a intenção é de melhorar espaços públicos das cidades para todos os habitantes. Mas a quem tais propostas favorece?

A professora doutora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) Ermínia Maricato pensa que o conceito de revitalização, muito questionado pela literatura sobre Urbanismo, conforme o exemplo da área da Luz em SP, não passa de máscara para uma ideologia que justifica planos de especulação imobiliária: “sempre que há investimento – público ou privado- em uma determinada área urbana haverá valorização e consequentemente uma disputa para a apropriação das rendas fundiária ou imobiliária decorrentes dessa valorização. Esse é o núcleo central do ‘negócio da cidade’: disputar rendas decorrentes de valorização”.

A maioria dos espaços alvos desses projetos, Maricato afirma, são muito vivos, onde existe concentração de empregos e bastante movimento, o que levanta a questão sobre a necessidade e a intenção por trás disso. “Não há o que ‘revitalizar’ mas sim reformar, melhorar, recuperar. (…) Eles dizem combater a chamada ‘degradação’, por exemplo, e tem como consequência expulsar a população de menor poder aquisitivo”, elabora. A expulsão tem objetivos bem claros: atrair a classe média como potencial consumidora para esses lugares – que já possuem moradores.

Fazendo uma simples observação de como as cidades são estruturadas, é fácil perceber que o modelo empregado é voltado para o tráfego de carros e não pela mobilidade urbana de cidadãos que possuem o direito constitucional de transitar e construir uma convivência agradável entre si próprios e seus afazeres diários. Em 2004 foi elaborado um Plano Diretor Participativo que visa, em teoria, reforçar e garantir a participação e a igualdade de todos os habitantes na construção da urbanidade dos municípios brasileiros. A prática, porém, passa longe do objetivo, pois os interesses da população que habita as zonas acêntricas dos mesmos são ignorados de forma cínica. “Tenho uma opinião formada de que os Planos Diretores, assim como o arcabouço legal urbanístico conquistado a partir da Constituição Federal de 1988 no Brasil – um dos mais avançados no Sul Global- não logrou mudar aspectos estruturais da imensa desigualdade territorial brasileira. Planos, assim como leis, são aplicados de forma desigual nas diferentes áreas da cidade. E isso tem a ver com classe social, cor e gênero como mostram, de forma indiscutível, os indicadores sociais distribuídos pelo espaço urbano. Um bom exemplo dessa evidência pode ser encontrado nos mapas da rede Nossa São Paulo, ou Nossa Brasília ou Nossa Belo Horizonte”, sustenta Maricato, e também diz que o boom imobiliário que ocorreu no país entre 2009 e 2014 foi responsável por deixar as cidades “mais dispersas e menos sustentáveis”, analisando por um viés ambiental e econômico, além de segregar ainda mais a massa populacional de baixa renda.

Foto: Ana Carolina Moraes

Em Bauru, o Plano Diretor desenvolvido de 2005 a 2008 diz que “a setorização do Município, aprovada na II Conferência da Cidade, procurou respeitar os limites das bacias hidrográficas, contemplando as políticas nacionais e estaduais de preservação do meio ambiente e de desenvolvimento sustentável” e declara que as etapas envolvem, entre outras coisas, a participação de representantes de toda a sociedade civil, algo que na prática não ocorreu. Como já pontuado, as Áreas de Preservação Ambiental (APA) da cidade tiveram seus espaços violados para a construção de edificações residenciais e os moradores de situação financeira precária não tiveram suas pautas atendidas e continuaram sendo realocados para as margens do território municipal. A comparação entre a região Getúlio-Brizola e bairros como o Jardim Nicéia (e os vizinhos UNESP e condomínios adjacentes) deixa tudo mais claro.

A Profª Ermínia Maricato reflete que pouco mudou para melhor, em verdade, após a implementação dos Planos Diretores pelas cidades brasileiras: “as viagens se ampliaram, os custos da infraestrutura aumentaram, os preços dos imóveis e aluguéis subiram muito além da inflação. Não foi por falta de leis e planos que tudo isso aconteceu. A função social da propriedade e da cidade está prevista em nossa Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e, muito frequentemente, nos Planos Diretores. Mas contrariar as elites locais, fortemente envolvidas com negócios imobiliários é muito difícil”.

Outro aspecto a ser levado em consideração ao se falar de propostas de revitalização de espaços públicos é a guerra às drogas que promove mortes e desumanização das populações das favelas e das ruas do país. Essas pessoas e os grafites oriundos de suas culturas são encaradas pelos governantes como fatores de composição da narrativa de degradação, logo, precisam de intervenção. “O caso da mudança pela qual passou o centro antigo do Rio de Janeiro mostrou isso. Segundo o TCC do arquiteto Faulhaber 67.000 pessoas foram removidas dalí, a maior parte moradoras de favelas, para áreas distantes. Um plano de ‘renovação’ foi implementado com muito investimento público”, diz Maricato, que chama isso de “urbanismo do espetáculo”.

Ela afirma também que a melhor opção para a realização de uma cidade viva e segura é “fazer recuperação de áreas centrais com manutenção de moradia popular”.

“Como já destacou Jane Jacobs, nos anos 50, quando ativista, na cidade de Nova Iorque. Mas isso exige contrariar uma elite que reluta em abandonar privilégios calcado em séculos de escravismo e patrimonialismo”, finaliza a professora.

Tags::
Redação

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Nam quis venenatis ligula, a venenatis ex. In ut ante vel eros rhoncus sollicitudin. Quisque tristique odio ipsum, id accumsan nisi faucibus at. Suspendisse fermentum, felis sed suscipit aliquet, quam massa aliquam nibh, vitae cursus magna metus a odio. Vestibulum convallis cursus leo, non dictum ipsum condimentum et. Duis rutrum felis nec faucibus feugiat. Nam dapibus quam magna, vel blandit purus dapibus in. Donec consequat eleifend porta. Etiam suscipit dolor non leo ullamcorper elementum. Orci varius natoque penatibus et magnis dis parturient montes, nascetur ridiculus mus. Mauris imperdiet arcu lacus, sit amet congue enim finibus eu. Morbi pharetra sodales maximus. Integer vitae risus vitae arcu mattis varius. Pellentesque massa nisl, blandit non leo eu, molestie auctor sapien.

    1

Você pode gostar também

1 Comentários

  1. Roque Ferreira novembro 8, 2017

    A matéria esta muito boa. Só uma precisão. Em Bauru a maioria do que se denomina de “condomínios fechados”, não o são. São “residenciais” que receberam autorização do município para serem fechados. Toda a infraestrutura interna destes locais é publica. Condomínios regularizados de acordo com a legislação existem 9 em Bauru, sendo que destes, 3 são de “proletários”foram construídos por sindicatos obreiros. A construção de residencias fechados sem o cumprimemto da legislação prevista no plano diretor, fez com que a cidade deixasse de receber entre 2009 e 2014 em trono de R$ 500 milhões em contrapartidas que deveria ser pagos pelos empreendedores.

    Responder

Deixe um comentário

Your email address will not be published. Required fields are marked *