Evento em Bauru promoveu debate e consciência sobre a vivência, a luta e a resistência do grupo LGBT+Q
“A melhor coisa que meu pai fez por mim foi ter me dito ‘não conte’ ao invés de ‘não seja’”, foi o que disse Márcia Rocha, a primeira advogada travesti do Brasil a atuar com seu nome social registrado na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao compartilhar sua história de vida durante a Semana da Diversidade 2018 em Bauru.
Márcia relatou ter vivido uma vida introspectiva no papel masculino de Marcos, sem se assumir publicamente como a mulher travesti que hoje é e tem orgulho de ser.
Em palestras ministradas na OAB de Bauru no dia 24 de agosto, Márcia não só abordou temáticas que dizem respeito à legislação e empregabilidade das pessoas transexuais, mas também compartilhou a história de sua vida. A advogada assumiu que deve sua formação, seu elevado posicionamento dentro de sua profissão, a posse de suas quatro empresas e até sua filha ao fato de ter se mantido “dentro do armário” por décadas, mesmo tendo sido descoberta tomando hormonização ainda aos 14 anos. No período da ditadura militar o pai de Márcia pediu para que ela escondesse sua identidade do mundo. E assim o fez. Mas não para sempre.
Filosoficamente, a liberdade simboliza o direito humano de ação de acordo com os desejos próprios de cada indivíduo. É possível também classificar liberdade como a ausência de submissão, principalmente tratando-se de características que tornam a pessoa quem ela é. “Sair do armário”, expressão comum para designar o ato de um LGBT+Q assumir sua verdadeira identidade para o mundo, é um comum ato de liberdade nos moldes atuais.
Ser livre é também poder expressar-se de forma pública, sem medo de hostilização ou represálias. É o que foi presenciado no Parque Vitória Régia, em Bauru, no domingo, 26 de agosto. Cores em todos os lugares. Nas roupas, nos adereços, nas peles, no palco. Os mais diversos tons se misturavam com a música, a dança e principalmente com os sorrisos de quem se sentia livre para curtir aquele momento sem se preocupar com os pesos da vida cotidiana. O parque foi, aos poucos, preenchido e tomado por palavras de aceitação, amor e paz, livres de correntes sociais. Mesmo que por um breve momento, muitas daquelas pessoas puderam comemorar quem são. Em meio a uma multidão de diversidade de pensamentos, de opiniões e de sentimentos, todos ali compartilhavam a mesma vontade de um mundo mais compreensivo e plural.
A homotransfobia, termo designado para nomear o preconceito sofrido pelas pessoas LGBT+Q, mostra o quanto nossa sociedade ainda não apoio o suficiente essas pessoas. O combate contra a homofobia no Brasil é uma luta antiga, contínua e de resistência. Considerado o país que mais mata LGBTs das Américas, de acordo com relatório da ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais) de 2017, 340 mortes em 2016 tiveram como principal motivação a homofobia. Dados oficiais e políticas públicas contra esse tipo de crime têm avanços limitados em terras brasileiras, já que a homofobia ainda não é configurada como crime de acordo com o código penal nacional. A aversão e violência contra o povo LGBT+Q no Brasil é enquadrado como injúria, lesão corporal ou até mesmo homicídio.
A ignorância acerca do tema se construiu e solidificou aos moldes conservadores no Brasil, e é possível enxergar correntes ainda mais estruturadas de preconceitos no interior dos estados, longe do desenvolvimento das grandes capitais nacionais. Em Bauru, a décima oitava maior cidade do estado de São Paulo, a inclusão social do público LGBT+Q tem tomado grande repercussão na última década, fenômeno que se deve à atuação de públicos específicos em prol de destaque e inclusão de assuntos em torno deste público, além da promoção de conhecimentos e intensa luta contra a homofobia.
Quando falamos em interior notamos uma diferença de rotina em todos os aspectos em comparação às grandes cidades. No caso do comunidade LGBT+Q não seria diferente, como explica Cássio Rodrigo, coordenador estadual de Políticas Públicas da Diversidade Sexual: “Em uma cidade como São Paulo, com mais de 11 milhões de habitantes, é uma cidade em que o anonimato está posto, então as pessoas não se conhecem, não cuidam muito da vida uma das outras. Quando você vai para cidades menores, que todo mundo se conhece, é mais difícil para a população LGBT. Porque ela não sai do armário só pra ela e pra família, ela acaba se assumindo pra cidade inteira e isso gera uma série de consequências não tão agradáveis”, explicou Cássio.
Durante o Encontro da Diversidade no parque Vitória Régia, uma multidão repleta de cor e vivacidade tomou as ruas da interiorana Bauru. Matheus, que mora em Bauru e é bissexual, desabafou: “Acho bom eventos como esse, precisamos de mais representatividade por que nem todo mundo é heterossexual nesse mundo. Precisamos nos sentir livres”. Ao menos naquele espaço delimitado e naquele dia do ano foi possível para a população LGBT+Q que mora no interior se expressar e estar em um ambiente em que o respeito e a diversidade fossem os principais regentes.
O evento não foi apenas festa, música e momentos de diversão: houve exibições de filmes e palestras que levavam à reflexão sobre a violência, direitos legais e representatividade para todos os LGBT+Q. Márcia Rocha, questionada durante uma de suas palestras na OAB sobre a representatividade para a comunidade LGBT+Q no interior e nas periferias, explicou que existem problemas que não são apenas típicos da comunidade trans em relação à violência no Brasil. “A questão social, não é exclusividade de trans. ‘Ah mas é o país que mais mata trans’. Sim, mas também é o país que mais mata mulheres, o país que mais mata policiais, que mais mata um monte de gente”.
Da mesma forma que existem pessoas trans nas classes mais baixas da sociedade, existem transexuais nos cargos mais prestigiados, como Márcia cita: “a presidente da KPMG se assumiu trans, presidente de uma das maiores multinacionais do Brasil, saiu do armário também, e vão ter outras, tem muita gente no armário ainda”. Isso reforça ainda a existência de diversas realidades lésbicas, homossexuias, transexuais e de todas as outras letras da sigla LGBT+Q.
Muitos crimes contra a comunidade LGBT+Q deixam de ser investigados por falta de denúncia. Cássio Rodrigo reforçou a importância da denúncia nos crimes de ódio desse tipo. Para se reportar o crime a principal informação necessária é algum tipo de identificação do agressor que, segundo Cássio, é a maior dificuldade para aplicação da lei na maioria dos casos de violência.
“Quando a gente olha para as denúncias, a maioria das que chegam via Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania ainda estão centralizadas na capital. Nós temos sim, claro, denúncias que vêm do interior, mas no todo elas ainda são em menor número, cerca de 40% do total. Muitas das vezes, por falta de conhecimento da lei 10.948, muitas das vezes pela falta de conhecimento de como denunciar”. Essa lei foi criada para proibir e penalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, principalmente em ambientes públicos, e pode até punir administrativamente o estabelecimento em caso de discriminação. Além disso, o desconhecimento da denúncia online também dificulta que os casos sejam reportados à justiça.
Link para denúncia crimes contra direitos humanos
O evento realizado em Bauru também contou com outras iniciativas, como a 1ª oficina de Drag Queens, realizada no Serviço Social do Comércio (SESC), que trouxe desde questões teóricas quanto práticas como produção de moda e maquiagem. Além disso, houve a entrega do troféu “Eu faço a diferença” premiando cidadãos bauruenses entre categorias como destaque solidariedade, cultural, direitos humanos, visibilidade LGBT e assistência social. Houve também muita discussão com palestras destinadas a servidores públicos para trabalhar a conscientização sobre saúde e cultura LGBT+Q.
Apesar de o evento ter sido bem sucedido em diversos aspectos, é importante lembrar que o Brasil continua registrando altos índices de violência contra a comunidade que foi protagonista do evento. É hoje o país que mais mata LGBT+Q no mundo, segundo o relatório da GGB. Cabe à sociedade defender a segurança da diversidade todos os dias.
Peu, o jovem de Agudos que cantou no palco do Encontro da Diversidade bauruense, criticou: “A gente que é LGBT em geral sente falta de muita coisa. Temos apenas uma semana para viver dentre os 365 dias no ano, porque nos outros dias a gente morre, né?”.