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Caatinga em cores

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Para cangaceiros, vestimentas iam muito além da questão estética.
Por Herculano Foz e Vinícius Passarelli
Quando, há dez ou quinze anos, meu avô narrava suas histórias de migrante nordestino, filhos e netos, distantes daquela realidade sertaneja, paravam o que estavam a fazer para ouvir. Em meio a outros causos, o “véio Alfredo”, alagoano, natural de União dos Palmares, contava a ouvidos curiosos os porquês de sua vinda para São Paulo. A milonga era a seguinte: após um meteórico e infrutífero caso com a jovem Maria Bonita, não restaram muitas opções ao então vaqueiro a não ser fugir do “homem e seu bando”.
O homem em questão era ninguém menos que Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mais bem sucedido líder cangaceiro da história. Junto ao seu bando, abraçou um estilo de vida nômade, percorrendo regiões do sertão nordestino em busca de justiça e vingança pela falta de emprego e alimento, ou simplesmente servindo aos próprios latifundiários e autoridade locais – como no caso em que Lampião foi convocado por um deputado a combater a Coluna Prestes, durante a República Velha. Símbolo de um povo, sua figura permanece no imaginário não só de minha família, mas de todos brasileiros.
Heróis ou bandidos, certo é que os cangaceiros foram verdadeiros artistas na questão da vestimenta, chegando até a ditar moda. Através de uma identidade própria, mesclaram muito ouro e prata com elementos que remetiam ao lado místico do bando, criando uma autêntica  “estética do cangaço”. Tamanho apuro estético, no entanto, não diz respeito somente a uma questão visual – ainda que o Rei do Cangaço fosse um cabra pra lá de vaidoso!

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Lampião e seu bando ostentando sua rica indumentária (Foto: Benjamin Abrahão)


A moda funcionava para eles como uma ferramenta de afirmação política e instrumento de propaganda junto às populações sertanejas, que se admiravam diante de tanto ouro. Servia também como uma espécie de blindagem mística, protegendo o cangaceiro de todo mau-olhado, além de distinguir diferentes cargos dentro da hierarquia interna do bando.
“Sua indumentária era uma mistura de influências europeias, com a indumentária dos coronéis da elite, dos soldados milicianos e dos vaqueiros, o que a tornou bastante característica. Além da questão religiosa: bordava os símbolos em suas roupas e utensílios por acreditar que manteria o seu “corpo fechado””, avalia a designer de moda Joice Vieira.
Os tais amuletos da sorte dos cangaceiros têm origem na antiguidade: o signo de salomão (estrela de seis pontas, símbolo de Israel, que significa proteção), por exemplo, era um dos símbolos preferidos dos homens do cangaço ao ponto de alguns deles o utilizarem por todo o corpo. Outros símbolos utilizados para dar força e proteção aos cangaceiros foram a flor-de-lis e a cruz de malta – símbolo das ordens militares e religiosas portuguesas – da Ordem de Cristo e da Ordem de Santiago.
A estética do cangaço foi objeto de estudo do historiador Francisco Pernambucano de Mello que, em 2010, publica “Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço”, talvez a obra mais profunda e sofisticada relativa a esse assunto. Após mais de 10 anos de trabalho (Mello inicia sua pesquisa em 1997), o autor nos brinda com uma obra única, ilustrada com mais de 300 imagens do cangaço 160 fotos de uso pessoal dos cangaceiros. A importância do livro e do estudo é certificada por ninguém mais, ninguém menos que Ariano Suassuna, que assina o prefácio.
De uma forma fluida e muito bem construída, Pernambucano de Mello narra deliciosos causos protagonizados pelos cangaceiros. “Certa vez Lampião chegou em uma cidade sergipana, entrou em um armazém e aceitou a proposta do dono do local para pesar toda a roupa e equipamentos que ele tinha pelo corpo. Chegou a quase 30 quilos, isto que ele tirou o fuzil e os depósitos [cantis] de água”, conta o historiador.

“Onde eu estou não se rouba, nem se fala em vida alheia. Porque na minha justiça não vai ninguém pra cadeia: paga logo o que tem feito com o sangue da própria vida” (Leandro Gomes d de Barros)

Os versos de Leandro Gomes de Barros, um dos grandes poetas de literatura de cordel no Brasil, ilustram bem uma característica marcante do sertão em meados do século XIX. Na época, o sertanejo não esperava a justiça pública para rebater uma afronta: ele a fazia com as próprias mãos.
“O cangaço é o resultado de algumas características da sociedade nordestina. Muitos caiam no cangaço decorrente de uma situação de violência, exclusão, arbitrariedade policial. O cangaço, então, é resultado da confluência de uma ausência de um espaço democrático e, portanto, de um Estado regulador”, comenta o professor de História do Brasil da UNESP, Célio Losnak.
Essa característica não só pautou as atividades dos cangaceiros, como também fez do cangaço uma forma de vida criminal orgulhosa e escancarada. A cultura sertaneja enaltecia o cangaço, chegando ao ponto das pessoas torcerem pela vitória de um ou outro grupo. E os bandos, por sua vez, ao invés de buscarem camuflagem e discrição, preferiam se mostrar, vestindo-se de muita cor e riqueza.

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Além de estética, o traje dos cangaceiros também tinha uma função de afirmação e propaganda política. (Foto: Benjamin Abrahão).


“As vestes do povo nordestino eram simples, sem muitas cores e adornos e o vestuário dos cangaceiros era ostentoso e intimidador. O cangaço criou uma moda de afronta. Ostentava em suas vestes para impressionar o povo. E assim sua indumentária permaneceu na identidade cultural nordestina”, afirma Joice.
O esmero estético do cangaceiro vai desde a vestimenta básica, ou seja, camisas, calça e alpercatas, até instrumentos do seu dia-a-dia nômade, como cantil de água, luva e punhal. Os cantis eram revestidos por fora com uma capa de brim, bordada em policromia, sinal do amor e cuidado que os donos dedicavam a uma “água difícil”. Tal como o chapéu de couro, as alpercatas traziam, além dos enfeites e ornamentos, um detalhe essencial para quem vivia um estilo de vida nômade: correias que as uniam ao tornozelo.
O tipo de armamento e a decoração da bandoleira são bons exemplos de diferenciação hierárquica dentro do bando. Os iniciantes recebiam rifle Winchester, com bandoleira improvisada contendo apenas metais polidos, latão e alpaca. O “cabra”, um nível acima dos iniciantes, armado a fuzil, trazia na bandoleira moedas de prata apenas, enquanto o chefe do subgrupo mesclava, além da prata, adereços de ouro, medalhas e moedas. Já os capitães – chefes de bando de maior sucesso – se davam ao luxo de utilizar somente ouro.
O Chapéu
Mas, de todo o vestuário cangaceiro, é o chapéu o elemento que mais chama atenção por todo seu simbolismo, sua misticidade e funcionalidade. Ainda que muito similar ao do vaqueiro, o chapéu do cangaceiro apresentava uma característica peculiar que o diferenciava daquele: a aba virada para cima. Lampião e seu bando não podiam correr o risco de serem surpreendidos em uma emboscada, por isso não podiam andar com a aba abaixada, cobrindo os olhos. Eram vaidosos e escancarados, mas jamais descuidados.
Além do caráter funcional, o chapéu também era o principal elemento através do qual os cangaceiros ostentavam sua riqueza e seu misticismo. O chapéu de Lampião, por exemplo, contava com cerca de 70 peças de ouro incrustadas por todo o corpo do objeto, estrelas de oito pontas costuradas nas abas, além de duas medalhas pequenas com a inscrição  “Deus te guie”.
Outro caso emblemático é o do cangaceiro Corisco. Após uma emboscada realizada pelo tenente João Bezerra em uma fazenda de Alagoas, os militares acabaram por arrebatar o chapéu de Corisco. Dois anos após a apreensão, o tenente Bezerra estimou que naquelas correias havia cerca de dois contos de réis em moedas de ouro.
Vale lembrar que o chapéu de couro era de uso exclusivo masculino. Às cangaceiras era destinado o chapéu de feltro, sem a quebra da aba para cima, para não evocar a tradição masculina.
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O chapéu era o principal elemento através do qual os cangaceiros ostentavam sua riqueza e seu misticismo. (Foto: Benjamin Abrahão).


 
Mãos que tecem e atiram
As mesmas mãos que pegavam em armas também eram responsáveis por tecer, costurar e bordar as próprias vestimentas e ornamentos. No cangaço era comum que os homens ficassem responsáveis pelas máquinas de costura, sendo o próprio Lampião um dos mais hábeis na técnica. A arte do bordado chegou a ser até espécie de quesito para aqueles que almejavam a cargos de chefia intermediária. Os mestres do pano e do couro, desde que dotados também de coragem pessoal, eram fortes candidatos a líderes.
Outra prática comum entre os cangaceiros era a do padrinho (chefe ou subchefe) presentear seus afilhados com peças e ornamentos confeccionados por ele próprio. Era um tipo de “política interna de afagos”, que buscava amenizar a disciplina rigorosa dentro do bando.
De uns tempos pra cá, alguns estilistas tentaram buscar na extravagância do cangaço inspiração para suas coleções. Zuzu Angel, Tufi Duek (Fórum), Ronaldo Fraga, Amir Slama (Rosa Chá) são alguns dos grandes nomes. Transformar em mercadoria parte da cultura de um povo. A singularidade e o simbolismo da estética do cangaço, no entanto, ficaram somente na memória, da época em que o sertão era uma terra  “sem lei, nem rei”

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Redação

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