Onda dos food trucks transforma o serviço tradicional popular em gourmet elitizado
Por Camila Valente, Giovanna Cornelio e Laís Bianquini
Traduzido para o português, food truck significa, literalmente, caminhão de comida. É um veículo que pode ser um caminhão de pequeno porte, uma van, ou uma kombi equipado com uma cozinha, no qual os chefs preparam e vendem porções pequenas de comida rápida e de padrão elevado, estilo gourmet, para as pessoas que estão passando na rua, a um preço atrativo, se comparado ao valor praticado em restaurantes. Apesar de ter a essência do bom e velho carrinho de lanche, o food truck não oferece o mesmo nível de serviço da comida de rua em geral, aquela vendida em porções generosas e a preços acessíveis a todas as classes sociais.
A origem dos food trucks data em 1872, quando Walter Scott vendia tortas, sanduíches e cafés em um vagão para os trabalhadores da cidade de Providence, nos Estados Unidos. A necessidade por comida rápida e barata fez os carrinhos se popularizarem com a fama de comida barata e baixa qualidade. A crise econônica de 2008 fez esse conceito mudar quando diversos restaurantes fecharam suas portas e seus respectivos chefs famosos precisaram de uma alternativa para enfrentar a instabilidade financeira com baixo investimento e a possibilidade de ir até onde o cliente está. Surgem os food trucks gourmet. Jovens empreendedores e desempregados se inspiraram na venda de comida na rua, como foi o caso de Roy Choi, um americano de origem coreana, que decidiu estampar o nome Kogi em um caminhão e sair pelas ruas de Los Angeles vendendo tortilla mexicana recheada por churrasco coreano. No primeiro ano, Roy faturou US$ 2 milhões. Resultado: inspirou centenas de empreendedores, não só nos Estados Unidos, mas também no mundo todo.
A onda chegou no Brasil em 2008, mesmo sem crise, e se popularizou em 2012. Inúmeros empreendedores investiram seu dinheiro nos carros coloridos e tomaram as ruas com a ideia de levar para as ruas a comida sofisticada dos restaurantes com um preço acessível. A cidade de São Paulo destacou-se pelo pioneirismo nesse setor, com muitos empreendedores reproduzindo o modelo de sucesso de Nova Iorque e outras cidades americanas. A moda dos food trucks logo se espalhou para outros estados. Segundo o site “Food Truck nas Ruas”, que ajuda a localizar os carrinhos nas capitais brasileiras, há opções no Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Brasília, Minas Gerais, entre outros.
Para Duca Lapenda, chef de cozinha e sócio do restaurante Pomodoro Café em Pernambuco, “em primeiro lugar, é preciso denominar de forma correta o segmento. Toda comida que é vendida na rua é street food, não importa se é na barraquinha ou num carro equipado”. Duca é proprietário do truck Lanche de Luxo, que vende sanduíche com pão brioche feito sob medida, recheado com pernil suíno, vinagrete, picles de legumes orgânicos e molho à escolha do cliente, por R$ 15. “Aposto naqueles que vendem produtos únicos. Hambúrguer, pizza e cachorro-quente tem um a cada esquina”, completa.
O diferencial mencionado por Duca é encontrado nos Estados Unidos através da popularização da alta gastronomia, o que significa encontrar a culinária de diversos países por um preço acessível em um lugar comum. No Brasil, o processo se deu pelo caminho inverso, através do que ficou conhecido como “gourmetização”. Comidas populares como brigadeiro, cachorro quente, picolé e hambúrger tiveram seus preços quase dobrados por serem gourmet. Para Fabricio Cornetto, chef do Empório São Lourenço, localizado na cidade de Bauru, interior de São Paulo, “o nome serve para tangibilizar. A minha definição de gourmet é algo feito a melhor maneira possível. Qualquer receita que eu conheça feita assim é gourmet o suficiente. Ela não precisa chamar gourmet por isso”.
O chef ainda completa dizendo que tornar gourmet não signifa tornar caro. “As pessoas acham que para fazer um hambúrger gourmet é preciso usar uma carne que custe R$ 200,00 o quilo”, afirma. “Se você comprar uma boa carne, que esteja dentro das expecificações de validade, com as caratcerísticas corretas e fizer ela grelhada da maneira certa ele é perfeito”, defende.
Os food trucks brasileiros se tornaram a versão gourmet dos antigos carrinhos de rua, sem a democratização da gastronomia efetivamente ocorrer. “Virou uma grande porcaria. A maior parte do que existe não é voltada para a gastronomia. Não tem qualidade. E o pior, ficou elitista – tem gente pagando por R$ 25, R$ 30 por um hambúrguer ruim, só porque é feito num food truck”, diz o chef Checho Gonzales, um dos organizadores da feira gastronômica O Mercado.
A elitização do segmento se justifica pelos preços repassados ao consumidor e também pela localização dos carros, cujos donos frequentemente escolhem bairros como Vila Madalena, Butantã e Vila Olímpia para estacionar e fazer suas vendas em São Paulo. É a observação feita por Rolando Vanucci, empresário e presidente da recém-criada Associação Paulista de Comida de Rua. Para ele, não existe penetração para outros bairros onde o comércio não é abundante. “A prefeitura está oferecendo 900 pontos, mas o pessoal só quer ficar parado nos Jardins, em Moema, Vila Olímpia. É outro erro, já que o conceito é rodar pela cidade”, diz.
A chegada dos carros coloridos ainda esbarrou em questões legais brasileiras, já que a venda de comida de rua não é regulamentada em muitas cidades. Muito do que se vê pelas ruas são kombis e carros adaptados com pouca sofisticação e muitas vezes em situação irregular de trabalho. Em 2013, a fama dos food trucks impulsionou a criação da Lei Municipal 15.947/2013, aprovada pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e que dispõem sobre quais tipos de alimentos podem ser vendidos, os locais e horários para a comercialização, procedimentos para obter autorização para a venda e obrigações e proibições para os comerciantes. O Rio de Janeiro também já possui uma regulamentação para a atividade e observa-se um esforço em expandir as políticas de legalização para garantir que a comida de rua esteja de acordo com as normas de vigilância sanitária, segurança e respeito do espaço público.
Assim, como o modelo disputará espaço com outro segmento tradicional nos municípios, os carrinhos de lanche, que não possuíam regulamentação, estes também devem passar a obedecer a mesma determinação para a venda de alimentos. Seguindo as novas regras, haverá diversas mudanças na forma de trabalhar dos donos de carrinhos de lanche e futuros proprietários de food trucks, seja no âmbito sanitário ou no administrativo e fiscal.
A intenção da regulamentação é proibir a circulação dos veículos de modo aleatório, evitando problemas com o trânsito e com o comércio já instalado, conforme prevê a legislação da cidade de São Paulo. Segundo Haddad, o decreto é o primeiro passo para garantia da segurança das atividades que já vem ocorrendo. “É uma regulamentação cuidadosa, parcimoniosa, que dá o poder para as subprefeituras organizarem essa primeira largada para que não haja nenhum tipo de conflito com o comércio estabelecido”, afirmou. A capital paulista e o Rio de Janeiro, serão exemplos a serem seguidos por outras cidades que ainda não possuem regulamentação.
O food truck deve seguir as exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) municipal e estadual, Prefeitura, Departamento Estadual de Trânsito (Detran) e Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Além de garantir que os alimentos embalados para comercialização contenham rótulos com o nome e endereço do fabricante, importador ou distribuidor; a data de fabricação e prazo de validade do produto; e o registro no órgão competente.
Conforme a regulamentação, os proprietários dos food trucks não poderão estacionar em calçadas, vias de pedestres e áreas gramadas de parques e praças. Também foi vetado o uso de mesas, cadeiras, tapumes ou vasos e equipamentos de som. Além de estar proibida a venda de bebidas alcoólicas e tabaco.
A comercialização deverá obedecer alguns limites: o ponto de venda deve ficar a uma distância mínima de 5 metros de cruzamentos, faixas de pedestres, pontos de ônibus e de táxis, hidrantes e válvulas de incêndio, orelhões e cabines telefônicas ou tampas de bueiros. Também deverá obedecer a distância mínima de 20 metros de estações de metrô, de trem, escolas, rodoviárias, aeroportos, ginásios esportivos, estádios de futebol, monumentos e bens tombados. Onde já existe comércio de alimentos, como padarias, restaurantes e lanchonetes, a distância mínima para instalar o ponto de venda é de 25 metros.
O que era para ser um novo conceito de comida rápida e gourmet acabou tornando-se uma verdadeira oportunidade de autoemprego estável para muitos desempregados e empresários no Brasil. Para Fabrício, o grande problema dos food trucks é que “a popularização da ideia fez com que ela chegasse a pessoas que não são da área. Pessoas que pensam que para montar o negócio basta ter dinheiro”. Antes de comprar um carro e sair pela cidade vendendo comida é necessário observar que, muito além do investimento para esse negócio, a comercialização depende das políticas públicas para o funcionamento regular, tais como a utilização de água, iluminação e espaço público. Outro ponto a ser considerado é se esse modelo de negócio será apenas uma moda passageira ou não.
Especialistas na área acreditam que o apocalipse dos food trucks está próximo, assim como o chef André Mifano, do restaurante Vito, em São Paulo. “É triste que a coisa tenha evoluído para isso. Comida de rua era para ser ágil, de qualidade, acessível. Mas tem muito aventureiro que botou um monte de dinheiro num food truck sem saber cozinhar e agora tem que pagar o que investiu”, observa. Com o fim ou não dessa onda, as políticas públicas precisam garantir a qualidade da comida de rua e o mercado determinará os padrões financeiros a serem atendidos.