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Como a pornografia ajuda a justificar a normalização da violência contra as mulheres

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No início do ano, uma série de posts na internet viralizaram ao denunciar a busca pelo termo “enteadas” no Google. A rápida pesquisa leva a uma infinidade de conteúdos pornográficos e diversas notícias sobre estupro. Os resultados chocantes da pesquisa escancaram a complexa relação entre pornografia, cultura do estupro, pedofilia e violência.

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Pesquisa pelo termo “enteadas” no Google.



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Notícias sobre enteadas no Google.



No Google os sites tendem a aparecer de acordo com a pesquisa do usuário. A partir das buscas e do acesso, ele cria um ranking de conteúdos relevantes. Técnicas de otimização também são usadas pelos sites para se manterem “no topo” e terem mais acessos, como o uso de palavras-chave. Ou seja, para que um site permaneça no topo, ele precisa ter um grande número de acessos.
https://twitter.com/naopalooza/status/821905682173689856
Não parece ser coincidência os resultados da busca num país onde, de acordo com o Ipea, 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes, 88,5% são meninas, mais da metade com menos de 13 anos de idade e 24,1% dos abusadores são pais ou padrastos das vítimas.
Diferente do que prega o senso comum, a maior parte dos casos de estupro não acontecem com a mulher na rua sozinha tarde da noite. Ao contrário, a maioria ocorre em casa. De acordo com o Ipea, 70% dos estupradores são parentes, namorados, amigos ou conhecidos das vítimas. O que isso tem a ver com a pesquisa do termo “enteadas”? É a cultura do estupro sendo exposta.
A busca pelo termo “lésbicas” também choca

Não é de hoje que a militância lésbica vem chamando atenção para um fenômeno parecido: a diferença entre quando se busca a palavra “lésbicas” e a palavra “gays” no Google. Ao se pesquisar pelo termo “lésbicas” somos levados a uma enxurrada de conteúdos pornográficos, fetichizados, humilhantes. Conteúdos como a definição de “lésbicas” e relacionados à identidade desse grupo só aparece na quarta página do buscador. Agora imagine o quão prejudicial é este fato na construção de identidades de garotas lésbicas que estão descobrindo sua sexualidade.

Com o termo “gays” a história muda. Quando se busca o que aparece é a definição do termo no Wiki, bate-papo, vídeos e assuntos sobre comportamento, vida de famosos, etc. Mais uma face do machismo e misoginia da sociedade e da invisibilidade lésbica, denunciada por muito tempo por militantes do movimento.
Internet dá uma nova cara à pornografia
Não é novidade que a internet facilita o acesso à todos os tipos de conteúdo. No caso da pornografia, o acesso facilitado e ilimitado a conteúdos sexuais de dominação, estupro e pedofilia, onde a mulher frequentemente é dominada, humilhada e subjugada tem se tornado preocupante.

Gail Dines, socióloga e professora de gênero na Universidade de Wheelok, nos Estados Unidos, é uma das criadoras do movimento Stop Porn Culture. Em entrevista à revista Época, a professora afirma que “a introdução da internet mudou a indústria pornográfica. Ela a trouxe do submundo para a nossa casa e, uma vez que a pornografia se tornou tão acessível e barata, os homens passaram a usá-la em grandes quantidades”.

Dines defende que há uma íntima ligação entre a pornografia e a violência. “Os estudos mostram que no caso de homens inclinados a praticar violência sexual, quanto mais pornografia eles assistirem, maior é a chance de eles cometerem crimes”, explica.
A socióloga finaliza com um alerta. Para ela, ao relacionar a sexualidade com o menosprezo pelas mulheres, a pornografia colabora para perpetuar uma cultura machista na sociedade. “É uma combinação muito ruim, especialmente quando pensamos que os meninos veem pornografia pela primeira vez por volta dos 13 anos. O que significa para um menino que ainda está desenvolvendo sua sexualidade ver esse tipo de pornografia?”, critica. “Quanto mais erotizamos essas imagens, mais dizemos aos homens que é dessa maneira que eles devem tratar as mulheres, que eles devem achar isso excitante. E os garotos vão construir suas identidades sexuais em torno dessas imagens”, finaliza.

Quando se olha atentamente dados dos dois maiores sites de pornografia do Brasil, o “PornHube” e o “RedTube”, é difícil não se chocar. No PornHub, os vídeos mais vistos pelos brasileiros, entre 1 e 8 milhões de visualizações cada um, tem a ver com estupro parental e sexo com adolescentes. A palavra “lésbicas” foi a segunda mais buscada por brasileiros em 2016, segundo estatística do PornHub. A tag “adolescentes” é a 7ª mais procurada no site. Em 2014, a tag mais procurada por brasileiros foi “novinha”. Enquanto a tag “escola” é a 8ª mais popular do Redtube.

Não dá pra ignorar que existe uma ligação entre o conteúdo dos sites de pornografia mais acessados no país e a forma como a violência se perpetua no caso de abusos sexuais. Segundo o PornHub, o brasileiro passa em média 8 minutos por dia em sites pornográficos. São 8 minutos por dia consumindo conteúdos que naturalizam a violência e moldam o comportamento e a sexualidade humana, como explica Gail Dines: “Concordamos que a indústria de alimentos molda a maneira que comemos, que a indústria da moda molda a maneira que nos vestimos, então como é possível que a indústria do sexo é única que não molda o comportamento humano?”
 
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Marcha das Vadias em Florianópolis. Foto: escrevalolaescreva



Sexualidade 
mal construída

Em seu livro História da Sexualidade, Foucault já explicava que nossa sexualidade também é influenciada pela cultura. Crianças e adolescentes em fase de descobrimento da sexualidade encontram nos sites pornográficos um universo de conteúdos que moldarão o comportamento sexual de forma negativa.

Uma rápida navegada por sites pornográficos mostram de que forma a pornografia vem moldando a sexualidade de crianças e adolescentes: mulheres submissas, violentadas, humilhadas, lésbicas fetichizadas. Não parece haver preocupação com o prazer da mulher. Para um adolescente que ainda está construindo sua masculinidade, a pornografia é um ponto essencial para saber “o que fazer para ficar excitado” e “como fazer”.

O texto do site pornográfico “Gag me and then fuck me”, disponível para quem quiser ver, deixa a questão um pouco mais clara: “A gente faz elas engasgarem até a maquiagem borrar e deixamos todos os outros buracos ardendo — vaginal, anal, dupla penetração e qualquer ato envolvendo um pinto e um orifício. E depois damos um banho grudento nelas.”  

Estamos caminhando para a segunda geração de homens que têm acesso ilimitado à pornografia, e além dos problemas relacionados à violência, o vício em pornografia pode levar a disfunções sexuais prejudiciais ao próprio indivíduo. “Os meninos aprendem muito na internet, o que não é didático, porque são corpos e posições irreais, atividades sexuais mais agressivas que a média. Eles correm o risco de achar que é o padrão”, explica o psiquiatra Alexandre Saadeh, em entrevista à Folha de S. Paulo. Dificuldade de ereção e ejaculação são problemas relatados ao psiquiatra como efeitos do vício.

 
Tabu na saúde, tabu na educação, tabu na política
Segundo Jaqueline Pinto, coordenadora do curso de pós graduação em sexualidade da FAMERP, a sexualidade ainda é um tabu para educadores e médicos. A questão é tão problemática que, segundo a pesquisadora, são raros os cursos superiores que oferecem disciplinas que discutam o tema. “O ser humano é sexual e precisa trabalhar suas dificuldades. Porém, pais e educadores não estão preparados para lidar com o tema. Ou punem erroneamente, sem explicação, ou fingem que não viram ou ouviram a questão em sala de aula. “Até onde eu posso falar? Estou incentivando? Máquina de camisinha?”. Faz-se necessário um preparo adequado para acolher essas questões”, explica a professora em seu site.
A sexualidade como tabu e a dificuldade em abordar o tema desde o início do desenvolvimento sexual, faz com que os jovens busquem na internet formas de compreender o próprio corpo, o prazer e a sexualidade, sendo o início da série de problemas desenvolvidos pela lacuna deixada pela falta de conversas e esclarecimentos sobre o tema.
Mesmo assim, o Brasil resiste em abordar o tema de maneira profunda. Segundo pesquisa feita pela Federação Internacional de Planejamento Familiar/Região do Hemisfério Ocidental (IPPF/RHO), por conta do conservadorismo e da influência religiosa, o país trata questões relacionadas à sexualidade de forma limitada a campanhas de saúde como prevenção à AIDS e DSTs. Claro que o tema é importante, no entanto, não se discute a questão da sexualidade com outros vieses como o de esclarecer dúvidas sinceras dos adolescentes, o incentivo a conhecer o corpo e o prazer, quebrar preconceitos e naturalizar o que é natural. Não há debate de forma aberto, por exemplo, sobre o prazer a mulher, a homossexualidade e outras questões pertinentes.
Um fato que reforça o tabu que é a sexualidade no Brasil foi a atitude do governo, em 2011, com a polêmica do kit anti-homofobia. Na ocasião, o Ministério da Educação havia elaborado um kit para discutir abertamente questões de gênero e sexualidade nas escolas, com o objetivo de combater o preconceito desde a infância. A bancada evangélica do congresso protestou enfaticamente contra o kit, afirmando que se tratava de propaganda sexual. Uma ofensiva liderada por Jair Bolsonaro acusava o kit de ser uma “emboscada de fundamentalistas homossexuais, levando a mensagem de que ser gay ou lésbica é motivo de orgulho para a família brasileira”. Após os protestos a então presidente Dilma, recuou com o kit afirmando que o seu governo não faria “propaganda de opção sexual”.

A falta de debate e a insistência em velar questões é um fato da sociedade brasileira. O tema da pornografia no Brasil foi novamente ponto de debate quando o projeto de lei de autoria do deputado federal Marcelo Aguiar (DEM-SP), que visa proibir o acesso à conteúdo pornográfico na internet, chegou a conhecimento público. O projeto, com claro caráter moralista e argumentos rasos, segue uma lógica de proibição que não chega nem perto da raiz do problema. Por exemplo, para que o protesto fosse burlado, basta que o servidor do site em questão não esteja hospedado no Brasil. Levando em conta que 30% do tráfego de internet no mundo são de conteúdo pornográfico, segundo estudo da DoubleClick Ad Planner, seria praticamente impossível barrar o acesso à pornografia. No entanto, quando as iniciativas vão no sentido da ampliação da educação sexual e do debate, os mesmos projetos são barrados.
É sim importante dificultar o acesso precoce à pornografia, mas a simples proibição é ineficaz. É preciso mudar a forma com que a pornografia é consumida, criar demandas por conteúdos menos machistas, violentos e humilhantes, combater o machismo, a misoginia, a lgbtfobia por meio da educação sexual, de políticas públicas e de não aceitar passivamente o fato de que uma pesquisa pelo termo “enteadas” ou “lésbicas” no Google direcionem para conteúdos tão chocantes. É preciso quebrar o tabu da sexualiade nas escolas e hispitais, para que então se possa construir uma relação saudável com a masturbação e a descoberta do próprio corpo.

Afinal, o grande problema da pornografia é o próprio reflexo da sociedade em que vivemos. Ela não cria abusadores, pedófilos, estupradores. Mas reflete uma sociedade repleta deles e os naturaliza. Assim como naturaliza a sexualização precoce das meninas, o sexo violento, a vontade masculina acima de tudo, a busca de “enteadas”, “pai e filha” e “lésbicas” no Google como conteúdo pornográfico transforma a existência lésbica em algo voltado para o prazer masculino. Isso está destruindo a forma como os homens tratam as mulheres, a forma como se relacionam, a forma como fazem sexo consensual com elas.

Redação

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