Historicamente, os direitos das mulheres foram desenvolvidos de forma tardia em relação aos dos homens. O direito para trabalhar, por exemplo, foi negado ou proibido às mulheres no Brasil por séculos e, até que a Constituição Federal de 1988 entrasse em vigor, nem mesmo as legislações e regulamentações eram as mesmas entre um homem e uma mulher em ambientes de trabalho.
Outros direitos básicos como o direito ao estudo e o direito ao voto também foram posteriormente atribuídos à população feminina, o que reitera a desvantagem de mulheres em relação aos homens nos campos do conhecimento, da opinião e do trabalho.
Assim sendo, não é de surpreender que o meio de criações e produções artísticas não seja diferente. Ambiente predominantemente tomado por homens, o espaço artístico e criativo em áreas como artes plásticas ou visuais, literatura, cinema, moda, música, fotografia e até dança se mostra repleto de atitudes machistas que até desqualificam a história das mulheres em sua história.
A invisibilidade feminina no meio artístico é fator que afeta a cronologia do desenvolvimento de muitas formas de conhecimento e também das artes, como a fotografia e o design. Comparadas à extensa lista de nomes masculinos na produção de obras no Renascimento, por exemplo, as mulheres citadas como artistas foram poucas, e geralmente foram postas como coadjuvantes em seu papel e desenvolvimento para o mundo das artes.
Mas e a igualdade?
Esta igualdade que, teoricamente, teria sido proposta pelo texto constitucional entre homens e mulheres no ambiente de trabalho certamente não reverteu centenas de anos em que mulheres foram objetificadas ou negligenciadas.
Após divulgação de dados que comprovam que as mulheres estão com taxa de participação no mercado de trabalho menor que a dos homens, a Diretora-Geral Adjunta de Políticas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Deborah Greenfield, comentou em nota à imprensa: “Apesar dos avanços conquistados e dos compromissos assumidos para continuar progredindo, as perspectivas das mulheres no mundo do trabalho ainda estão longe de ser iguais às dos homens”.
A diferença de participação no mercado de trabalho é fato que se deve a diversos fatores, como a prevalência da participação feminina no serviço familiar não remunerado e maiores taxas de desemprego para mulheres.
É fato que a contribuição feminina à economia alavanca o mercado de trabalho brasileiro, mas o retorno ainda deixa a desejar. Discrepantes diferenças salariais, de benefícios e de cargos são recorrentes no cenário de luta e de conquista de direitos de trabalho.
Em um cenário historicamente predominado por homens e ainda majoritariamente machista, o meio artístico é repleto de demonstrações de desrespeito, objetificação feminina, assédio e desvalorização do trabalho de mulheres que contribuíram e contribuem muito para o desenvolvimento cultural mundial.
Invisibilidade e injustiça
Pesquisadora sobre as mulheres no campo das artes, a professora de artes e design Ana Beatriz Pereira de Andrade conta que não é tarefa fácil encontrar registros da influência feminina nessa parte da história. Professora na UNESP (Universidade Estadual Paulista) há nove anos, ela alega: “Vasculhando, a gente vai levantando muitos outros nomes que ficaram esquecidos na história. Batalho muito pra tentar localizar esses registros”.
Resgatando situações em que mulheres começaram a ser inseridas no meio artístico, é possível destacar dois grandes momentos. Em meados do século XIX, um grupo de artistas que haviam tido suas obras recusadas para o salão oficial de exposições da academia francesa de belas artes, a Académie Royale de Peinture et de Sculpture, uniram-se em protesto aos padrões impostos pela academia. Com trabalhos revolucionários para a época, foi criado o Salão dos Recusados, grupo composto por doze artistas que marcaram o início da arte moderna na história da arte. Entre eles, uma mulher.
Berthe Morisot é uma pintora impressionista francesa de renome, mas na época, quando era a única mulher artista em um grupo repleto por homens, foi descrita como “louca” pela mídia francesa.
Conhecida por ser a maior escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda, a Bauhaus gerou um movimento tão impactante no meio artístico que promove até os dias atuais uma intensa influência para as áreas. Entretanto, o trabalho feminino na Bauhaus é não só pouco exaltado como também invisibilizado.
Walter Gropius, fundador da Bauhaus, dizia que mulheres não eram fisicamente e geneticamente qualificadas para certas artes já que pensavam em duas dimensões, em comparação com os parceiros masculinos, que poderiam fazê-lo em três. Assim, justificou a história sendo feita na instituição por colaboração principalmente masculina.
“Pra fazer um levantamento das mulheres da Bauhaus é muito difícil mesmo, a gente não encontra” reforçou Ana Beatriz, que também ressaltou a grande relevância das mentes femininas em projetos que tomaram mérito por autoria unicamente masculina.
“Existe um professor da Bauhaus chamado Josef Albers que elaborou uma parte das teorias das cores sob o ponto de vista da física, por exemplo. Quem era a mulher dele? A Anni Albers, fotógrafa, trabalhava com luz. Coincidência?”, ironiza a pesquisadora.
Anni e Josef Albers. (Foto: Divulgação)
Ela também ressalta diversos nomes masculinos reconhecidos pela Bauhaus cujos trabalhos estão muito relacionados com a profissão de suas esposas, no campo da ciência como a química ou a física.
Já no âmbito da fotografia, Diane Arbus e Cindy Sherman foram destaque de pioneirismo feminino na área, ainda na década de 60. Alavancando o movimento de mulheres fotógrafas, trabalharam a internacionalização da visibilidade de mulheres na fotografia, junto com outras profissionais que também surgiram dando força ao movimento e mostrando destaque de conhecimento e atuação femininos na área.
Objetificação vs. local de trabalho
A imagem de mulheres sempre foi retratada de inúmeras formas e em larga escala em obras de arte, produções cinematográficas e comerciais publicitários, mas não necessariamente torna os ambientes criativos espaços democráticos de gênero.
A objetificação feminina tem sido pauta recorrente na atualidade, que questiona a mulher ser sempre o objeto retratado, e nunca estar por trás da produção da arte. Exemplos fortes são as produções fotográficas e cinematográficas: fora das telinhas, a desigualdade de gênero no setor da produção apresenta índices alarmantes.
Reed Morano, diretora de episódios da premiada série The Handmaid’s Tale. (Foto: Divulgação)
A Direção de Fotografia, por exemplo, é profissão vista como masculina, e dominada por homens quase que totalmente. O coletivo de
Diretoras de Fotografia do Brasil (DAFB) expôs dados do mercado audiovisual brasileiro que apontam que, entre 1995 e 2015, longas
–metragens de ficção filmados no Brasil tiveram o cargo de direção de fotografia realizado por homens em quase 800 produções, enquanto mulheres realizaram menos que 50 obras.
Ainda no site da Agência Nacional de Cinema do Brasil, a
Ancine, um estudo divulgado em 2016 apontou que apenas 17% dos filmes nacionais foram dirigidos por mulheres, mesmo em uma nação cuja população é majoritariamente feminina – de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, 51,5% da população brasileira é composta por mulheres.
Isso demonstra que, em produções cinematográficas no Brasil, o local da mulher sempre foi na frente das câmeras, o que dificultou o acesso feminino à produção cinematográfica e audiovisual até os dias de hoje, já que tais profissões se tornaram comumente “masculinas”.
A fotógrafa e jornalista Lara Pires, de 23 anos, destaca principalmente a falta de suporte para crescimento no meio artístico. “É mais difícil adquirir confiança do mercado. Só consigo clientes mulheres, parceiras mulheres… Enquanto eu vejo que, para os caras, é muito mais fácil conseguir apoio financeiro, emocional e social para trabalhar”.
Criadora do
site Fotografia Crítica, Lara relatou acreditar que deve perder oportunidades de trabalho por ser mulher e jovem, enquanto alega que “homens que não tem tanta qualidade estética e muito menos profissionalismo conseguem um reconhecimento enorme, muito mais do que deveriam”.
Como identificar produções machistas?
O
teste de Bechdel é conhecido internacionalmente como análise superficial de obras audiovisuais, apontando quantidade de atrizes que atuam na obra, analisando quantas mulheres conversam entre si e contabilizando discussões femininas que não remetem a assuntos amorosos, sexualizados ou que mencionam outros homens.
Essa avaliação classifica se as produções contêm
, de forma explícita ou indireta
, grandes referências à competição feminina, e denuncia se mulheres apenas atuam na obra desempenhando papéis que giram em torno da órbita masculina, pregando personagens sexualizadas e figurativas, sem grande relevância para a trama.
A classificação do Teste de Bechdel ainda é rasa, porém é um indicativo inicial para avaliar o nível de importância que se deu à figura da mulher em obras artísticas. Outra forma de adquirir informação sobre o nível ético da obra é
o site The Rotten Apples (termo em inglês para As Maçãs Podres). A plataforma informa se determinada obra do cinema ou da televisão possui no elenco ou na produção homens acusados de assédio sexual contra mulheres.
Assédios e abusos: como acontecem
A descredibilização de uma profissional pode acontecer das mais diferentes formas em ambiente de trabalho. O assédio é uma maneira extremamente comum de desestabilizar e diminuir a mulher e seu cargo
– prática cruel, já que vulnerabiliza o alvo e, em determinadas circunstâncias, é velada socialmente, podendo ser considerada “piada” em alguns contextos pelo agressor.
A agressão pode ser moral ou sexual. Não é incomum mulheres que já sofreram todos os tipos de ataque enquanto trabalhavam. G. é designer gráfica e, com apenas 17 anos, já vivenciou na pele assédios que tornavam seu estágio em
“um lugar onde era assediada pelo chefe frequentemente, em frente a colegas de trabalho ou não
”.
Seu primeiro estágio na área em que trabalha atualmente foi em uma agência de publicidade. “O dia a dia na agência era repleto de “tem que ser mulher pra não saber fazer isso mesmo né”, “por isso eu nunca contrato mulher”””, conta G., que preferiu não se identificar.
Além disso, xingamentos e desmoralização pessoal e moral não ficavam de fora. “O assédio moral era recorrente. Já fui chamada de filha da puta a incompetente na frente de toda a equipe, inúmeras vezes”, lamentou a vítima.
A designer evidenciou que, além de comentários degradantes sobre a figura feminina e para si própria, os assédios sexuais eram feitos sem nenhum pudor e de forma escancarada. “Nas reuniões com a equipe, eu sempre ouvia “deixa a branquinha sentar do meu lado”, que no caso, era eu”, explica a profissional.
Em pesquisa aplicada às mulheres que trabalham com criatividade e no desenvolvimento artístico, 87,5% já alegaram terem testemunhado ou sofrido situações machistas em ambiente de trabalho.
Entre episódios de desrespeito, exposição desnecessária, difamação da imagem feminina e comparações desnecessárias, 62% das mulheres entrevistadas na pesquisa denunciaram também já terem sofrido ou presenciado assédio moral contra mulheres que trabalham no meio artístico.
Tratando-se de assédio sexual, 37% das mulheres alegaram ter sofrido ou presenciado casos desta natureza, e ainda 12,5% relataram situações ainda piores em que houve agressão física e até mesmo estupro contra mulheres que buscavam apenas seu lugar no mercado de trabalho.
A exposição de criminosos e de trabalhos ou instituições que puseram mulheres em situações de redutibilidade têm sido a maior forma de contra-ataque
a ao machismo no meio das artes.
No caso de G., o que mais a ajudou a encarar que o tratamento em seu ambiente de trabalho não era ideal e era abusivo foram seus pais, a quem começou a relatar os abusos e assédios após se encontrar desestabilizada com tais atitudes. Além disso, alguns colegas começaram a se incomodar com a forma com a qual o chefe tratava a profissional, e se manifestavam em pequenas atitudes diante de situações abusivas.
Denúncias contra a normalização do assédio
Em meio ao rebuliço que tomou a cena no meio artístico desde a explosão de denúncias do
caso Zé Mayer contra a figurinista da TV Globo Su Tonani, outros vários casos de assédio têm vindo à tona principalmente no cinema e entre atrizes.
A Escola de Atores Wolf Maya realizou em novembro de 2017 uma infeliz propaganda que incita o assédio sexual entre diretores e atores diante de atrizes, caracterizando uma cena de atuação que envolvia beijos e sexo em uma cama como uma chance de um ator se aproveitar de uma garota.
O comercial polêmico da Wolf Maya foi apagado após repercussão negativa. (Foto: Reprodução/Twitter)
Com aproximados 20 segundos, o comercial foi estrelado por Wolf Maya, o próprio diretor, ator e dono da escola, uma das mais famosas do Brasil na área de teatro e atuação. Maya fala em meio a um casal de atores se beijando: “Estou esperando. Cai em cima dela e beija”, seguido da fala “Seu sonho é ser ator?”, e da propaganda que incentiva o espectador a se formar em sua escola.
Amplamente criticada, a propaganda foi mantida ainda por muito tempo nas redes sociais da escola, que posteriormente acabou apagando a peça. A irresponsabilidade de mensagem e a forma como foi passada caracteriza mais um homem como predador do que como ator naquela determinada situação.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=AdYjGT8s–k&w=560&h=315]
A atriz, roteirista e criadora de conteúdo Natalia Milano publicou em seu canal no Youtube uma crítica indireta ao caso, e não mencionou o nome da instituição por “risco de ser processada”. Classificando a propaganda como “repugnante”, Natalia exaltou a relação que a escola fez com o fato de que homens atores podem, então, assediar ou se aproveitar de mulheres com a aprovação e o incentivo do diretor de cena. “Dentre os inúmeros ensinamentos que um professor pode passar a um ator, foi esse o ensinamento escolhido
s para passar os valores da escola?”, criticou a atriz.
Ativismo de impacto
Formas de ativismo e combate às atitudes machistas, desrespeitosas ou criminosas contra mulheres em produções criativas e artísticas têm tomado relevância e aderência desde que denúncias tomaram espaço na área.
“
O Álbum das Mulheres Incríveis por Natalia Milano” é uma página no Facebook com mais de 20 mil curtidas que divulga conteúdos audiovisuais sobre a história de mulheres que marcaram o mundo, mas tiveram suas imagens difamadas em um contexto machista e calunioso.
Outra página que produz conteúdo ativista para combater o assédio é a “
Contra o Machismo nas Artes”, que com mais de 17 mil curtidas realiza eventos de debate, divulga casos de assédio e machismo e também promove artistas mulheres, exaltando a importância de falar sobre o tema.
As Guerilla Girls se vestem com máscaras de gorila e são conhecidas mundialmente por ativismo de grande impacto, denunciando o machismo no meio artístico. (Foto: Andrew Hinderaker)
Já falando sobre ativismo em nível internacional, o
Guerilla Girls é um grupo de artistas femininas anônimas que se classifica como coletivo de arte e política, cujo principal objetivo é combater o sexismo e o machismo no meio das artes.
Atuando também na denúncia do conteúdo sexista em museus de arte em todo o mundo, o grupo, criado em 1985 em Nova Iorque, tomou frente e posicionamento na injustiça da irregularidade de porcentagens de mulheres apresentadas como obras de arte e reconhecidas como artistas.
Em exposição que teve início em setembro de 2017, as Guerilla Girls apresentaram manifestações no Museu de Arte de São Paulo (Masp), cuja principal e mais destacada denúncia tomou base no fato em que apenas 6% das obras do Masp são de autoria de mulheres, enquanto 68% dos corpos nus retratados no museu são femininos.
Para que as mulheres consigam ocupar, resistir e fazer a diferença no mercado de trabalho artístico no Brasil, as reivindicações por mais respeito, oportunidades e pelo fim do assédio e do machismo tomam visibilidade no espaço cultural.
Alternativas que exaltam a força e potencial de mulheres artistas são crescentes no ramo, promovendo cada vez mais um espaço para ação da livre criatividade e trabalho das mulheres em todas as formas de expressão e produção criativas.
Foto da capa: Divulgação/Guerilla Girls