Por Lucas Zanetti e Thamires Motta
Foi durante a madrugada da última terça-feira (11) que a Câmara dos Deputados concluiu a votação, em primeiro turno, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que define um teto para o aumento dos gastos públicos pelos próximos 20 anos, a PEC 241. Considerada uma vitória pessoal do presidente Michel Temer, a decisão foi recebida com indignação por diversos movimentos sociais ao redor do país. Segundo especialistas e partidos de oposição, a proposta vai impedir que haja aumento real nos investimentos em áreas como saúde e educação, que são direitos constitucionais dos cidadãos.
A situação atinge diretamente o orçamento destinado não só ao ensino público federal, mas também ao estadual por conta da renegociação das dívidas dos estados com a União, projeto que precisa ser aprovado no Congresso e que prevê que haja aderência dos estados aos cortes, impedindo novos reajustes salariais e contratação de servidores estaduais.
Se a provado, o projeto agrava a situação das universidades estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp), que nos últimos quatro anos, deliberaram três greves, cujas demandas buscam combater o “desmonte da universidade”. As reivindicações perpassam justamente o reajuste salarial de docentes e funcionários, mais contratações de servidores, além da criação e ampliação da política de cotas raciais e permanência estudantil, uma das principais bandeiras do movimento negro há quase 20 anos.
Servidores docentes, técnicos-administrativos e estudantes protestam durante a greve na Usp em 2016. Foto: Reprodução/Folha de S. Paulo
Para Ian Douglas de Azevedo, 23, do Diretório Central dos Estudantes da USP e Setorial de negros do DCE, o ensino superior público está gravemente ameaçado. “A ampliação do ensino público, sem aumentos significativos de verba, resultou na precarização da infraestrutura, condição de trabalho, ensino e permanência dos estudantes”, acredita. “Estamos muito longe do ensino público, gratuito, socialmente referenciado, crítico e libertador”, diz.
Perfil dos aprovados em 2016 nas estaduais paulistas. Unicamp não divulga perfil completo.
O caso da Unesp
Das três Universidades Estaduais, a Unesp é a que possui mais campi espalhados pelo Estado e a que recebe menos verba do governo de São Paulo. Seu Plano de Desenvolvimento Institucional, de 2010, previa a implantação de uma política de expansão na graduação, com criação de mais cursos e mais unidades, desde que assegurada a contrapartida financeira do governo estadual. No entanto, a verba não acompanhou o crescimento e os serviços foram sendo sucateados.
Desde 2014, a universidade vem passando por um processo de congelamento na contratação de servidores, cortes de verba e de bolsas para projetos de extensão (que chegou a 60% em algumas unidades) e terceirização de suas atividades.
Cartaz exposto por estudantes da Unesp na mobilização de 2016. Foram três meses de greve e um mês de ocupação. Foto: Lucas Zanetti
Foi a Unesp, porém, a pioneira na tentativa de implementação de políticas públicas de inclusão. Em 2013, houve a primeira tentativa de criar um sistema de reserva de vagas nas estaduais paulistas. A proposta do governador Geraldo Alckmin era criar o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP). O programa previa que o estudante que ingressasse por reserva de vagas teria que passar por 2 anos por um curso virtual de formação geral para que, após esse período, entrasse nas universidades sem a necessidade do vestibular.
Entenda a proposta de inclusão do governo do Estado de São Paulo, o PIMESP, rejeitado pelas três estaduais paulistas.
O que parecia uma ideia eficiente para o governador, foi recebido com forte aversão pelos estudantes. “O PIMESP era mais uma forma de contenção de verbas por parte do Estado, já que ele não ia ter que investir em nenhuma política pública mais efetiva. Não houve nenhuma discussão mais ampla com a comunidade acadêmica ou de fora da academia”, explica Samantha Camacam, 24, que fez parte do Diretório Central dos Estudantes provisório da Unesp no período das mobilizações. Depois de uma ampla organização estudantil o projeto foi rejeitado, mas o regime de reserva de vagas se manteve, sendo implementado com aumento gradativo até o ano de 2018.
“Teve uma contraposição bem forte a este plano. O movimento foi forte e a partir disso, conseguiu barrar o PIMESP. Mas a pauta de inclusão era fundamental, então teve uma pressão para que se tivesse inclusão da população mais pobre”, explica o professor Ângelo Abrantes, da Adunesp.
O que ficou incerto, diante desse cenário de acordo entre a Unesp e o Governo do Estado, é o dinheiro destinado para a verba do PIMESP. Segundo o coordenador da COPE, (Coordenadoria de Permanência Estudantil), Mário Sérgio Vasconcelos, o governo ainda não investiu “nenhum centavo” para a política de permanência. Os 94 milhões que seriam destinados ao programa não foram investidos na universidade e não se encontrou possíveis destinos à verba.
Na Unesp, verba investida nos últimos dois anos para garantir a permanência dos ingressantes pelo programa de cotas é muito menor do que o necessário
Projeto neoliberal de educação
Tanto a PEC 241 quanto a situação do ensino superior público no Brasil, em especial em São Paulo, demonstram a implementação de um projeto neoliberal no Brasil. Por meio dele, a principal meta do Estado seria a estabilidade econômica para incentivar investimentos do capital privado e deixar que ele se auto-regule. A lógica neoliberal trabalha sob o entendimento de que, ao contrário dos privados, os serviços públicos são ineficientes, por isso seria preciso transferir para o mercado a manutenção de serviços básicos como saúde, educação, segurança e transporte.
Deputados da oposição criticam a PEC 241. Foto: reprodução/Planeta Folha
No ensino público, uma das críticas ao modelo neoliberal é que o ensino, a pesquisa e a extensão são tratados como mercadoria, ou seja, passíveis de serem negociadas, já que empresas passam a financiar as atividades universitárias. Tal relação poderia, por exemplo, tirar a autonomia da universidade na produção, disseminação e aplicação de conhecimento.
“A universidade demora anos para formar pesquisadores e anos para consolidar estudos. Abre-se as portas para fazer um acordo com a universidade onde se entra com um dinheirinho ou laboratório, e o direito ao conhecimento deixa de ser público e passa a ser da empresa. Estamos falando de um conhecimento que foi produzido de forma pública e tem uma apropriação privada”, avalia Ângelo Antônio Abrantes, professor de psicologia na Unesp e membro da Associação dos Docentes da Unesp (Adunesp).
Matricula no ensino privado é quase quatro vezes superior do que no ensino público; mulheres são a maioria
Do ponto de vista de Otaviano Helene, professor da Usp e autor do livro “Um diagnóstico da educação brasileira e de seu financiamento”, o ensino privado pode trazer consequências ruins para a educação. Ele cita como exemplo os critérios de distribuição dos cursos que tem como base questões financeiras. “Isso faz com que haja uma enorme quantidade de cursos de forte apelo mercantil oferecidos nas regiões mais ricas e que dão pouquíssimas contribuições para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país, ao mesmo tempo em que as regiões e profissões que mais necessitam reforços são abandonadas”, diz.
Otaviano também critica a qualidade dos cursos oferecidos, a infraestrutura das universidades privadas e o seu compromisso com o conhecimento. Para o docente, “na enorme maioria dessas instituições, praticamente inexistem bons laboratórios e boas bibliotecas, possibilidades de programas sérios de iniciação científica, perspectivas de pós graduação, grupos de pesquisa motivadores e ampla possibilidade de acesso aos professores”.
Kroton, um gigante da educação
Um exemplo é o Grupo Kroton. Em 2014 a empresa comprou o Grupo Educacional Anhanguera e em 2016, a Universidade Estácio de Sá, tornando-se uma gigante do setor no país. Com a compra, a Kroton tornou-se responsável por cerca de 1,5 milhão de estudantes. Na época da fusão, houve intervenção do legislativo com a suspeita de que o grupo concentraria cerca de 50% das matrículas do FIES.
Antes da compra, entre os anos de 2010 e 2014, a Kroton já havia adquirido cerca de 30 bilhões por meio do FIES, segundo informações da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES). Com a fusão com a Estácio, passa a ser a maior empresa de educação do mundo. O programa, porém, passou por uma série de cortes ainda durante o governo Dilma, fazendo com que a inadimplência aumentasse e muitos estudantes não conseguissem continuar os estudos. Segundo Pesquisa de Inadimplência da Semesp, em 2015 cerca de 8,8% dos estudantes não pagavam suas mensalidades há mais de três meses.
“Com o congelamento das novas vagas, aumento de mensalidades e atraso nos pagamentos por parte do governo, até esta inclusão contraditória está ameaçada, deixando milhares de jovens sem ensino e endividados. O projeto de ensino superior do lulismo se afastou da educação enquanto direito em direção a sua transformação em mercadoria”, avalia Ian Douglas de Azevedo, do DCE da Usp.
A educação excludente
O que os estudantes e docentes que atuam no movimento por uma universidade “realmente pública” defendem é que a política de cotas e permanência estudantil são mais do que necessárias para garantir o acesso das camadas mais oprimidas da população no ensino superior. “As cotas são necessárias por causa de uma desigualdade brutal”, explica Ângelo. A chegada de estudantes de escola pública, negros, pardos e indígenas também ajuda a “dar uma oxigenada para que a gente consiga trabalhar questões importantes com a sociedade”, diz.
Ato realizado pela Frente Pró-cotas da Usp. Foto: reprodução/Adunicentro
Em um período em que esses grupos vêm acessando mais ainda a universidade, os gestores públicos caminham no sentido contrário da garantia de investimento e excelência da educação. “O governo congelou novas vagas para Pronatec, PROUNI, FIES, tem apoiado a implantação de mensalidades nas universidades públicas e seu ministro da educação é contrário às cotas raciais”, contextualiza Ian. A chegada das camadas mais baixas ao ensino superior parece desagradar e se tornar um pretexto para a privatização.
“Parece que a Unesp usa as cotas como justificativa para acelerar e piorar o ensino, a pesquisa e extensão, e abrir as portas de vez pra iniciativa privada”, exemplifica Samantha. A estudante de psicologia deixa outro exemplo: a campanha “Adote um Aluno”, apoiada pelo Banco Santander. A empresa oferece uma cota mínima por estudante, cerca de R$ 2.640,00 mil, que pode ser parcelado, e em contrapartida a universidade oferece todo tipo de aparato técnico e acadêmico à disposição da empresa. “Assim a universidade não tem que pagar pela permanência e cumprir com seus deveres constitucionais de assegurar a educação”, critica Samantha.
Após mais uma longa greve nas estaduais, o clima entre os estudantes demonstra desânimo diante do cenário político do país. O projeto econômico de Michel Temer, que já sinalizou o congelamento de verbas voltadas para a educação, parece aprofundar o pavor em ver o ensino superior ser abandonado e ficar ao bel prazer da iniciativa privada. “O que determinará um processo bem sucedido ou não será a resistência da população”, conclui Ian.
Talvez a por trás da PEC 241 e do modelo neoliberal, a lógica seja a mesma
defendida pelo deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP): “Quem pode pagar vai ter que pagar. Quem não tem vai estudar na USP que é de graça”.