Por Jorge Salhani
O palco do Teatro Municipal de Bauru já estava montado para receber os artistas. As cortinas, prestes a abrir. Atores e atrizes, músicos e dançarinos, todos se concentravam para apresentar ao público da 22ª Mostra de Artes sem Barreiras o que haviam ensaiado durante o ano todo. Às luzes baixas, na plateia, o silêncio.
Logo à frente, Suélen Inácio, de 25 anos, aguardava ansiosa: ela não sabia se conseguiria acompanhar o que se passava em cima do palco. Suélen ouvia tudo atentamente, mas só teria conhecimento sobre o cenário, o figurino e os movimentos dos artistas se houvesse um recurso de acessibilidade específico, não muito utilizado, segundo ela, nos eventos em Bauru: a audiodescrição.
Suélen tinha certeza, ao menos, de que a apresentação de dança de seus colegas do Lar Escola Santa Luzia para Cegos teria a audiodescrição. Tanto que foi essa a performance de que mais gostou. Os passos do quarteto de dançarinos, que representava o grupo Dancing Eyes, foram precedidos por informações sobre as suas roupas e sobre os movimentos que executariam. Ouviu-se que as mulheres se deslocariam para trás em um semicírculo e que os homens soltariam as suas mãos direitas, antes de girar os seus corpos quatro vezes.
Seguindo a descrição minuciosa dos detalhes dos movimentos, o técnico de som teve sinal verde para dar play na canção (I’ve Had) The Time of My Life, que conduziu o musical romântico inspirado no longa-metragem Dirty Dancing – Ritmo Quente.
Ao final da apresentação, Suélen conta que foi tomada por alegria. “Fiquei feliz. Achei divertido o pessoal dançar. Deu para saber de tudo”.
Uma das dançarinas era Marielle Mendes Arruda. No palco do Teatro Municipal, ela fez sua a estreia na dança. “Gostei bastante de dançar. Foi muito emocionante”. Embora a audiodescrição tenha sido fundamental para que os cegos presentes também sentissem essa emoção, não foram todas as apresentações que contaram com o recurso. Isso as tornou, de acordo com Marielle, “vazias” para as pessoas com deficiência visual: “tem que ter audiodescrição em tudo, para facilitar a vida do cego. A cultura também é muito importante para nós”.
Uma legislação acessível?
Este cenário é muito comum no país: “é pouca a inclusão da pessoa com deficiência em qualquer manifestação artística no Brasil”, disse Marielle. Uma cidade acessível, inclusiva a todas as pessoas, independentemente de suas deficiências demanda de uma série de intervenções – a começar pelas arquitetônicas.
Descrição: Imagem de uma faixa de pedestres. Entre as faixas está escrito “Acessibilidade Importa”. Ao fundo, um gramado com árvores. Há um toldo azul que leva a uma construção de telhado amarelo. (Foto: Jorge Salhani).
Não basta falar em recursos de acessibilidade e de políticas de inclusão na cultura, no lazer ou no esporte, se as mínimas condições de mobilidade não são oferecidas. As escolas, por exemplo, ambiente no qual crianças e adolescentes frequentam diariamente e passam grande parte de seu tempo, são ainda pouco acessíveis. No Estado de São Paulo, 38,9% das escolas públicas são adaptadas às pessoas com deficiência; na capital, a quantidade cai para 33%, de acordo com dados do jornal O Estado de S. Paulo.
A publicação Perfil dos Municípios Brasileiros, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2011, última edição do texto a abordar a infraestrutura acessível, verificou que 42,6% das prefeituras das então 5.565 cidades brasileiras não apresentavam nenhum recurso de acessibilidade, como rampas, piso tátil ou permissão de acesso a cães-guias. A edição de 2014 do documento mostra que 29,6% dos municípios têm políticas específicas desenvolvidas para a população com deficiência – 217 preveem a adaptação dos espaços públicos com vistas à acessibilidade e 317, o estabelecimento do passe livre para esse grupo.
A falta de acessibilidade nos prédios públicos e no ambiente urbano contraria as recomendações da Lei nº 13.146 de 2015, que visa “assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoas com deficiência”. A Lei fundamenta que a acessibilidade garante a inclusão social e a cidadania das pessoas com deficiência.
Além da acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida, a Lei assegura, também, a inclusão por meio dos sistemas de informação e comunicação e o acesso às tecnologias assistivas. Os quase 24% da população brasileira com deficiência (de acordo com o censo de 2010 do IBGE) – auditiva, física, intelectual e visual – poderiam, então, com o respaldo da lei, aproveitar dos espaços físico e digital e de tudo que eles possam oferecer – educação, informação, cultura, esporte, lazer.
A realidade, entretanto, é controversa. Para Claudemir Fernandes Sandrin, presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Bauru, “muito há de ser concretizado na área da acessibilidade cultural”. Sandrin comenta que, apesar de a lei garantir a acessibilidade em espaços e eventos culturais e esportivos, bem como a produção cultural – programas de televisão, cinema, teatro – em formato acessível, o que está disponível à sociedade ainda é pouco. Arte acessível
Para os programas televisivos, os recursos assistivos citados no artigo 67 da Lei 13.146/2015 são a legendagem, a audiodescrição e a janela para intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Em relação à Libras, a Lei 10.436 de 2002 a institucionaliza e garante o incentivo a sua difusão. Para Laís Di Benedetto, intérprete de Libras, a língua tem, cada vez mais, conquistado espaço em todas as esferas sociais. “Eu realmente espero que os surdos possam exercer o direito de ir e vir e, também, de se comunicar aonde forem, assim como as pessoas ouvintes”, ela comenta.
Laís salienta que, mesmo com o Decreto 5.626/2005, que assegura o ensino da Libras e a presença de intérpretes no sistema educacional, ainda há muitas escolas que não oferecem o recurso. Tão importante quanto a escolarização, segundo Laís, é a cultura: “a cultura é direito de todo cidadão, também das pessoas surdas ou pessoas com deficiência. Se elas tiverem acesso à cultura, poderão se sentir parte da sociedade, verdadeiramente incluídas”.
A Instrução Normativa 128/2016 da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) colabora para a promoção da cultura para pessoas com deficiência, tornando obrigatório que as salas de cinema disponham de recursos de tecnologia assistiva.
Na televisão brasileira, a inserção da audiodescrição é obrigatória desde 2011. A audiodescrição é uma tradução dos elementos visuais de qualquer tipo em palavras. As emissoras devem, por semana, exibir seis horas de suas programações com o recurso. Enquanto, no Brasil, a maioria dos canais implementam somente o mínimo imposto pela lei, em outros países, como no Reino Unido, emissoras excedem o valor mínimo de 10% da programação, determinado pela Ofcom, órgão britânico regulador da comunicação. É o caso da BBC, por exemplo, que inclui a audiodescrição em mais de 20% de seu conteúdo televisivo.
O recurso pode ser utilizado de diferentes formas e nas mais variadas manifestações artísticas. O artista visual Pedro Vale tem experiência na área da audiodescrição e considera tímida sua a presença fora do âmbito audiovisual.
Vale vê na audiodescrição uma maneira de expandir o que as artes representam: há, com ela, a possibilidade de fazer com que todos sintam a energia da obra que está sendo apresentada. Ele defende uma audiodescrição interpretativa, por não “não acreditar que seja possível [criar] uma tradução intersemiótica sem um direcionamento subjetivo da obra”.
“A arte é o que nos humaniza”, acrescenta o pesquisador Paulo Belim, que desenvolve estudos sobre a audiodescrição na dança, “através [dela] elaboramos questões profundas do nosso inconsciente coletivo, e isso ocorre sem que percebamos”.
Belim acredita que, mesmo com as leis, a demanda por uma cultura acessível não é suprida. Além disso, muitos profissionais da audiodescrição não têm formação direta na área, o que leva ao desenvolvimento do recurso nem sempre de forma adequada.
Nem é o caso do audiodescritor ser especialista em dança, por exemplo. O importante é que ele tenha familiaridade com esse universo, “que tenha sensibilidade estética, uma linguagem imaginativa e viva, e que conheça o estilo de dança que vai audiodescrever”, comenta Belim.
Pedro Vale analisa que devem haver mais incentivos aos profissionais da audiodescrição, para que eles tenham mais contato com o recurso e uma prática mais apurada. Para Paulo Belim, o Brasil é um espaço promissor para essa área.
O pesquisador comenta que a audiodescrição é uma ferramenta pedagógica útil a toda população, não apenas às pessoas com deficiência: “alguém que não está acostumado a visitar exposições de artes plásticas, certamente aprenderá bastante sobre arte caso visite uma exposição audiodescrita, mesmo sendo vidente”.
Com a audiodescrição e outros recursos de acessibilidade, estimulam-se as atividades culturais mais diversas – a sua presença encorajaria a parcela da população com deficiência a frequentar peças de teatro, espetáculos de dança, concertos musicais, eventos esportivos e, também, a produzir obras culturais. A participação social por meio da cultura, do lazer, do esporte é um grande passo para uma inclusão efetiva.
A audiodescrição nos Jogos Paralímpicos Rio 2016
Os Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro trouxeram mais do que 72 duas medalhas para os atletas brasileiros. Eles colocaram o desporto paralímpico no centro das discussões e mostraram que o esporte, além de trazer benefícios para o corpo e para a mente, pode ser uma inquestionável fonte de lazer e inclusão social.
A acessibilidade providenciou, às pessoas com deficiência que foram aos locais de competição, a emoção típica de se testemunhar uma prova esportiva ao vivo. Rampas, elevadores, mapas e pisos táteis e a assistência pessoal auxiliavam as pessoas em uma melhor mobilidade. Para pessoas com deficiência visual, era oferecida, em 11 das 23 modalidades dos Jogos, a audiodescrição ao vivo.
Jakciane de Aguiar Pereira foi sozinha assistir à vitória do Brasil sobre Israel no goalball feminino. Ela não tinha quem lhe dissesse os resultados da partida e, mesmo assim, não perdeu nenhum lance. No Estádio Aquático Olímpico, as pessoas com deficiência visual que estavam na natação ouviram mais do que apenas quem venceu as provas e o tempo dos atletas: elas saíram do local sabendo, também, quais eram as cores das toucas dos competidores e que o nadador André Brasil tem uma grande tatuagem nas costas.
A narração audiodescritiva, que podia ser sintonizada por frequência de rádio, mesclou as informações técnicas da competição – nome dos atletas, placar, melhores tempos – com uma descrição dos detalhes visuais das arenas.
Na natação, Bruno Rodrigues e Alan March narraram as provas em português e inglês, respectivamente. March comenta que a audiodescrição não foi importante somente às pessoas com deficiência visual: “ela é desenvolvida para atingir a todos, é uma oportunidade de educar sobre esportes que, até então, muitas pessoas não conheciam”. A ideia segundo o narrador, é não deixar o que vemos passar batido.
Para o jogador da seleção alemã de goalball Stefan Hawranke, que utilizou o dispositivo na partida entre os adversários brasileiros e americanos, o recurso, apesar de não fornecer informações táticas da partida, importantes para outros atletas da modalidade, tem grande utilidade para os espectadores no geral.
Augusto Fernandes, gerente de acessibilidade, sustentabilidade e legado da Rio-2016, disse que a inserção da narração audiodescritiva nos Jogos foi “acertada” e acredita em um legado para outras competições esportivas. “Temos que ser pró-ativos e dizer aos cegos que esse recurso existe. Ele faz uma diferença incrível”, conclui Fernandes. O paradesporto em Bauru
Na cidade de Bauru, algumas iniciativas voltadas para o esporte paralímpico vêm da Associação Nova Era de Tênis de Mesa e do projeto Tênis de Rodas.
A Associação Nova Era desenvolve e estimula a prática do tênis de mesa. Seus treinos são direcionados tanto a atletas iniciantes quanto aos de alto rendimento. O projeto Tênis de Rodas, idealizado pelo técnico de tênis Helder Gouvêa, busca incentivar a prática do tênis em cadeira de rodas em Bauru. Nos treinos, Gouvêa fornece todos os equipamentos, das cadeiras de rodas adaptadas a bolas e raquetes.
Cláudio Massad, mesatenista e presidente da Nova Era, analisa que, desde que se profissionalizou no esporte, em 2008, melhoraram os investimentos na área a nível nacional e regional, mas que ainda são insuficientes.
“O esporte é uma área do desenvolvimento humano pouco trabalhada”, comenta Massad. Para ele, deve-se investir no treinamento dos atletas desde crianças, para que eles se firmem como atletas de alto rendimento eficientes no futuro.
O mesatenista, graduado em direito e educação física, comenta que há dificuldades em se capacitar profissionais do paradesporto no Brasil e que eles são pouco valorizados. Massad exemplifica com o caso do tênis de mesa: essa modalidade não é ensinada nas faculdades de educação física, o que dificulta a união entre suas técnicas e táticas e os conceitos da ciência do esporte.
Segundo Massad, são vários os benefícios do esporte para as pessoas com deficiência: ele auxilia na saúde, na recuperação de lesões, na inclusão social, no conhecimento, na
Cátia Oliveira representou Bauru nos Jogos Paralímpicos Rio 2016 (Foto: Fernando Maia/CPB). Descrição: Cátia veste uma camiseta azul escuro, com a bandeira do Brasil e o símbolo das Paralimpíadas no lado esquerdo. Ela rebate uma bolinha de tênis de mesa com uma raquete vermelha. Sua adversária veste uma camisa vermelha.
educação… O esporte “engloba tudo”, diz. Ele ressalta, ainda, que são necessárias políticas que valorizem os esportes para que as pessoas tenham vontade e prazer de praticá-los. “Precisamos ter políticas no país que beneficiem as modalidades, os atletas, os profissionais. Assim, o Brasil será uma potência – não só em atletas de alto rendimento, mas em pessoas mais ativas, com menos problemas de saúde, também”, finaliza.
Para Helder Gouvêa, o tênis em cadeira de rodas ajuda na melhora da auto-estima e auto-confiança das pessoas com deficiência. O instrutor espera que o paradesporto brasileiro receba maior visibilidade após os Jogos Paralímpicos Rio 2016. “Os Jogos mostraram que a pessoa com deficiência também pode fazer qualquer coisa. Ela pode ser atleta, pode participar de tudo na sociedade”, afirma.
Na Rio 2016, a mesatenista Cátia Oliveira representou Bauru pela Associação Nova Era. Paulo Salmin, que treinava na Associação, também participou dos Jogos, representando Piracicaba. Ambos disputaram as provas individuais e por equipes.
Cultura é inclusão
Sem a acessibilidade, Suélen não entenderia nada da apresentação de dança dos seus amigos, Marielle não se emocionaria após descer do palco, Jakciane não teria vibrado com o Brasil no goalball, nem Cátia teria representado o tênis de mesa brasileiro nos Jogos Paralímpicos.
Iniciativas de acessibilidade existem, mas o caminho para que ela se torne plena ainda é longo. Políticas também existem e esperam ser seguidas. O investimento em capacitação de profissionais e oportunidades de emprego só resultarão em uma parcela da população com mais educação, cultura e lazer garantidos. “Enquanto não se deixar de pensar em questões financeiras para se pensar nas humanitárias, o caminho será árduo, mas não intransponível”, analisa Claudemir Sandrin, da OAB/Bauru.
Para Carmem Lucila, psicóloga da APAE, “a cultura começa de casa, com a família orientando, incentivando a leitura, com programas televisivos. Aí os profissionais complementam”.
Inclusão não seria haver um evento voltado especificamente para pessoas com deficiência, afirma Marcela Pinto Borgo, coordenadora sociocultural da Sorri/Bauru, organização que promove a inclusão e reabilitação de pessoas com deficiência. Inclusão seria se todos os eventos se tornassem acessíveis a estas pessoas. Borgo conclui: “a cultura é um ponto fundamental para a inclusão das pessoas na sociedade. A cultura é uma comunicação e forma de expressão de todos”. E para todos.
Pelo menos deveria ser.
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