A agricultura familiar é responsável pelo alimento nosso de cada dia, mas o governo ainda insiste em priorizar o agronegócio. Será que não há alternativas à esse modelo?
Por Elisa Espósito
Plantio de árvores frutíferas pelo Fruto Urbano (Foto: Fabio Eduardo da Silva Fes)
O debate sobre um novo modelo agrícola, que garanta alimentação saudável para a população brasileira e respeito ao meio ambiente, tem se consolidado no meio acadêmico e influenciado discussões na sociedade. Um dos questionamentos realizados está associado a adoção de um sistema que privilegia a exportação e a monocultura, e o quanto este modelo é prejudicial tanto para o meio ambiente quanto para a saúde do consumidor: o
agronegócio.
A opção pelo fortalecimento cada vez maior do agronegócio no país representa uma concepção ideológica de desenvolvimento para o campo. Ela não exclui, mas também não fortalece como prioridade a realização de uma reforma agrária efetiva, nem ações de incentivo ao crescimento da agricultura familiar, hoje responsável pela produção de 70% dos alimentos que consumimos.
Dominado por grandes grupos econômicos e transnacionais, o agronegócio determina os preços dos insumos e produtos e impõe decisões sobre o quê, quando, onde produzir e comercializar. Fazem isso de acordo com as estratégias do mercado internacional, ignorando os interesses do país, nossa soberania e segurança alimentar, e os problemas e direitos dos trabalhadores rurais.
Nos moldes que existe hoje, o agronegócio provoca a violência no campo, a expulsão dos povos, a precarização das relações de trabalho, a rotatividade no emprego e a flexibilização de direitos.
Como alternativa para esta produção predatória, está a
agroecologia que, além de produzir alimentos orgânicos e reciclar todos os componentes usados na produção do alimento, traz consigo a questão dos direitos humanos que preza outros valores: a não exploração do homem e da mulher por outras pessoas, o alimento sustentável, – sem agrotóxico e sem transgênicos, o preço justo na comercialização e o direito à alimentação adequada.
O investimento na
agricultura familiar segue esse modelo e representa uma oportunidade de distribuição de renda e riquezas mais justa e igualitária no Brasil. A sua produção de alimentos é mais saudável e adequada com a questão socioambiental.
“Historicamente, verifica-se que o modelo agrícola centrado no latifúndio, nas monoculturas e nos pacotes tecnológicos que difundem a utilização maciça de insumos, agrotóxicos e transgênicos, tem trazido vários problemas ambientais, sociais e de saúde. Por isso, preza-se por uma distribuição mais equânime de terras, maior diversificação de plantios, melhor utilização dos recursos naturais e uma relação de mais respeito com a natureza” (Rozane Marcia Triches, professora e pesquisadora em nutrição, agroecologia e desenvolvimento rural sustentável na Universidade Federal da Fronteira Sul ).
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), esse tipo de agricultura é responsável pela produção diversificada, além de produzir alimentos básicos como feijão, arroz, leite, verdura. Por isso, tem uma importância muito forte para a segurança alimentar e também para a soberania alimentar.
Apesar disso, a opção de priorizar o agronegócio é apoiada por setores da sociedade, do judiciário, da academia, da mídia e de um número expressivo de parlamentares que defendem as demandas dos ruralistas na Câmara Distrital e na Câmara Federal.
Segundo dados do Censo Agropecuário Brasileiro de 2006, realizado pelo IBGE, apesar de 84,4% dos estabelecimentos agropecuários serem da agricultura familiar, a área ocupada por essa produção correspondia a apenas 80,25 milhões de hectares, 24,3% da área total ocupada por estabelecimentos rurais. Através da análise desses dados, percebe-se uma estrutura agrária ainda concentrada no país: os estabelecimentos não familiares, apesar de representarem 15,6% do total dos estabelecimentos, ocupavam 75,9% da área total.
Presidente Temer diz que desenvolvimento agrícola é prioridade, mas o foco é apenas no agronegócio. (Foto: Antonio Cruz/ Arquivo Agência Brasil)
Nacionalmente, Temer parece buscar cada vez mais apoio no agronegócio para sair da crise. Ele acredita que o investimento no setor poderá dar retomada ao crescimento econômico do país, a partir de medidas de incentivo como o processo de desburocratização.
Na cerimônia de lançamento do
Plano Agro+SP, ocorrida nesta segunda-feira (20), falando a uma plateia de representantes do agronegócio, Temer prevê o aumento da participação dos negócios no mercado mundial, passando de 7% para 10% em cinco anos.
O Agro+ SP faz parte da política do
Ministério da Agricultura para incentivar as exportações. No ano passado, as vendas externas do agronegócio paulista atingiram R$ 17,92 bilhões, com alta de 12,8% sobre 2015. Entre os setores em alta estão o complexo sucroalcooleiro, carnes, sucos, produtos florestais e complexo de soja.
São Paulo é o segundo estado a contar com o plano, o Agro+ estadual. O primeiro foi o Rio Grande do Sul e o próximo será Rondônia, que tem lançamento programado para 13 de março. O Distrito Federal está com lançamento agendado para a segunda quinzena de maio, durante a feira AgroBrasília. Os estados de Mato Grosso, Pernambuco, do Rio Grande do Norte, da Bahia, do Rio de Janeiro e de Goiás já demonstraram interesse ou estão com seus planos avançados.
O objetivo é desburocratizar as atividades, reduzindo os custos de produção e ampliando o fluxo de negócios. O ministro da Agricultura, Blairo Borges Maggi, informou que a pasta recebeu até agora 400 demandas, das quais já foram atendidas em torno de 300. Entre as demandas está a questão de rótulos de produtos que exigiram a presença física dos empreendedores para a liberação. Agora, a tramitação dos pedidos e da autorização ocorre por meio de um programa online. Tudo para facilitar e agilizar os processos burocráticos, mas a ação é apenas voltada para o agronegócio.
Entraves para o pequeno produtor
Enquanto há políticas nacionais que facilitam a documentação da agricultura que se destina à exportação, o pequeno produtor ainda sofre com cadastros irregulares, iminência de reintegração de posse e a espera de investimentos do Incra para conseguir dar continuidade ao processo de posse da terra.
Fonte: Censo Agropecuário 2006
Em Bauru, cidade do interior de São Paulo, a realidade não é diferente. Ao considerar a necessidade de relações sociais justas como uma das bases fundamentais da agricultura familiar e do desenvolvimento sustentável, o fenômeno de ocupação de terras no município vem à tona. O movimento já é o maior da história de ocupações do município e conta com 720 famílias que buscam assentamentos para a agricultura familiar, em área urbana ou rural. As famílias compõem dois movimentos sociais que possuem objetivos semelhantes. O primeiro deles é a Frente Nacional de Luta (FNL), ocupando aproximadamente seis pontos da cidade, e o segundo é o Movimento Irmã Dorothy, que ocupa apenas um ponto urbano.
Tais movimentos sociais criticam de forma incisiva diversos pontos do Plano Safra 2016/2017. O programa, que faz parte de uma política pública nacional, tem o objetivo de desenvolver a agricultura familiar regional, de forma a garantir o acesso a créditos mais baratos aos produtores rurais responsáveis pela alimentação da população brasileira.
Porém o que ocorre na prática é o excesso de procedimentos burocráticos para se obter acesso aos benefícios do programa, além de apontarem para sua limitada abrangência na realidade do agricultor familiar local, que se mobiliza pelo direito à terra. Questionado sobre as possíveis lacunas do programa na região, Chico Maia, secretário de Agricultura e Abastecimento, alega que “a burocracia e reclamações persistem porque há uma série de requisitos, obrigações e garantias que precisam ser comprovadas pelos interessados no Pronaf”.
Um dos principais requisitos para o acesso ao crédito mais barato é o registro de propriedade rural. Como as famílias ocupam espaços pertencentes ao município ou a posseiros, as chances de serem contempladas pelo programa são muito baixas. Entra em pauta, portanto, a questão da reforma agrária, que se baseia na função social da terra prevista na Constituição Federal de 1988.
O cenário político nacional, contudo, não se mostra favorável ao avanço de movimentos sociais pela reforma agrária. Chico lança mão da nota emitida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) , contrária à extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e sua fusão com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, para destacar a falta de comprometimento do novo governo com a agricultura familiar e a agroecologia. “Sempre esperamos que as demandas [dos movimentos sociais] sejam atendidas. No entanto, sou realista quanto ao desinteresse do governo Temer em relação à agricultura familiar ”, afirma Chico Maia.
Alternativa nas cidades
Enquanto a reforma agrária não vem, os pequenos produtores buscam alternativas para que a agricultura familiar sobreviva, por meio de feiras livres espalhadas pela cidade e projetos sociais desenvolvidos pela comunidade.
1. Feiras orgânicas
As feiras estão espalhadas pela cidade de Bauru e acontecem todos os dias da semana. (Foto Isabella Holouka)
São mais de 43 feiras livres por semana espalhadas por Bauru. Todo dia tem uma feira em um local da cidade, inclusive no Bauru shopping. No
site da prefeitura, é possível localizar os pontos das feiras e o dia da semana em que elas ocorrem.
Para Eduardo Muniz Carrasco, membro da OCS Você Social – Orgânicos de Bauru , uma organização de produção de orgânicos, as feiras parecem ser uma boa opção para produtores familiares que querem vender seus produtos. A possibilidade de comercializá-los com maior liberdade na escolha das quantidades e variedades e o contato direto com os consumidores são as características que mais agradam as/os produtoras/es. Através desse contato pessoal, as/os feirantes aproveitam para se certificarem da qualidade e da procedência dos produtos.
Alimentos expostos nas feiras de Bauru (Foto Isabella Holouka)
“Iniciativas como essa representam a oportunidade de beneficiar a/o pequena/o produtor/a rural e a demanda de consumo de produtos orgânicos, aqui em Bauru, é muito alta. As feiras livres consomem muitos produtos, tem muitos consumidores. E na feira a gente leva o que produz”, explica Eduardo.
Conforme dados do projeto
Organics Brasil, desenvolvido pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (
ApexBrasil), o mercado de alimentos orgânicos cresce até 40% ao ano, chegando a movimentar mais de R$2,6 bilhões em 2015.
Certificação exposta pelo produtor Eduardo em sua banca. (Isabella Holouka)
Segundo Eduardo, um diferencial é a certificação de Controle Social, através da qual as/os produtoras/es formalizam uma associação ou cooperativa com a garantia da qualidade orgânica na produção e autorização para comercializar os alimentos diretamente ao consumidor. A certificação ocorre através de uma relação de confiança. Os produtores devem estar abertos para visitas dos consumidores e também de órgãos de fiscalização, para a verificação da produção quando preciso. Devem, também, relatar como se dão os controles internos e sociais sobre a produção e a comercialização. Para Eduardo, que expõe a sua Declaração de Cadastro de Produtor Vinculado a OCS na banca nas feiras, vale a pena poder provar aos consumidores a qualidade da sua produção.
2. Projetos Sociais
Da esquerda para a direita: Miguel Axcar (fundador do Fruto Urbano), Julio Fernandes Almeida (voluntário do projeto) e Khalil Axcar (fundador). Plantio realizado na Avenida Moussa Nakhl Tobias,em 2016, com mais de 120 mudas frutíferas (Foto: Fruto Urbano)
Dois irmãos e um sonho em comum: ver a natureza renascer em meio à sua cidade natal, onde vivem até hoje. E foi utilizando as próprias mãos que Khalil e Miguel Axcar juntaram as primeiras mudas de árvores, colocaram-nas no porta-malas de seus carros, arrumaram algumas ferramentas e fizeram as sementes de uma ideia começar a germinar. Assim surgiu o
Fruto Urbano, um projeto composto apenas por voluntários que, assim como os irmãos Axcar, anseiam ver suas cidades cada vez mais arborizada.
O nome Fruto Urbano tem exata relação com seu propósito: fazer o meio urbano dar frutos, em seu sentido literal. Bauru ocupa o 18º lugar no ranking de cidades mais populosas do Estado de São Paulo (IBGE 2014) e figura na posição 227 na lista de cidades mais arborizadas do estado. (Ranking PMVA 2014, do Governo do Estado de São Paulo). “O bauruense sofre com a falta de árvores e sombras – em alguns lugares da cidade de Bauru ruas chegam a ter 10 quadras sem uma árvore sequer. Precisamos reverter esse quadro e só conseguimos fazer isso plantando mais árvores”, afirma Miguel Axcar, fundador do projeto.
É por isso que o projeto tem o objetivo de plantar mudas de árvores frutíferas nos espaços urbanos coletivos, podendo proporcionar uma redução do calor através das sombras das folhagens, a oferta de frutas regionais às comunidades e a colaboração para o desenvolvimento de um meio ambiente que favoreça o crescimento do número de aves em meio à cidade.
O projeto Fruto Urbano trabalha com educação e conscientização ambiental da comunidade e periodicamente reúne voluntários para plantios coletivos de árvores frutíferas em espaços públicos. Conta com repercussão positiva na mídia, muitos apoiadores nas redes sociais, grande mobilização popular e centenas de árvores já plantadas em Bauru.
“Queremos inspirar indivíduos e grupos de pessoas a plantarem árvores em suas cidades. Os resultados já alcançados estão além das nossas expectativas iniciais, e estamos neste momento trabalhando duro, para no futuro sermos capazes de além de incentivar, conseguir também financiar plantios de mudas frutíferas por todo o país”, comenta Miguel Axcar.
Hoje, o projeto conta com o apoio do Instituto Soma, das prefeituras em municípios onde atuam e algumas empresas, que além de apoio material em dinheiro são responsáveis por fornecer os lanches que são servidos aos plantadores nos dias de plantio coletivo. O projeto já conta com o auxílio de voluntários em várias áreas do conhecimento. E foi com um mesmo propósito em mente e com muito engajamento que os membros da equipe Fruto Urbano, em parceria com a população, conseguiram realizar o plantio de milhares de mudas de árvores frutíferas e estimular ações similares em outras cidades.
Urias Guedes, projetista desenhista, participou dos dois plantios deste ano, em Bauru, e conta como foi a experiência: ” A
credito que todo projeto social – como esse do Fruto Urbano – possui uma base utópica de referência. No caso dos plantios, existe uma oportunidade única de conhecimento da cidade, dos espaços onde se pode tornar possível a socialização, a troca de saberes, de informações, sem contar o resgate ao contato com a terra, normalmente afastado da vida urbana”.
Urias Guedes com a namorada, Leticia Lopes Franco, no plantio do Fruto Urbano (Foto: Fruto Urbano)
Além dos benefícios mais explícitos proporcionados pela arborização do meio urbano, como a oferta de sombra e alimento, é preciso ressaltar outros privilégios recebidos pelos plantadores voluntários e pelas comunidades nas quais são realizados os plantios coletivos.
“Em meio às dezenas de pessoas reunidas em um mesmo local, abaixadas e com as mãos na terra, muitas vezes sob o sol quente, os membros do Fruto Urbano ensinam algumas técnicas de plantio a quem não tem experiência prévia. E aos pais, tios e avôs, é extremamente recomendado que levem seus pequenos. Ensinar uma criança a plantar árvores é uma das melhores formas de ensiná-la a conciliar diversão, cidadania e gratidão”, finaliza Miguel Axcar.
Plantio coletivo realizado no Parque São Geraldo, em Bauru, dia 22 de janeiro deste ano (Foto: Fruto Urbano)
O Fruto Urbano organiza o plantio coletivo através de sua página no
Facebook. O último evento foi realizado no domingo (19) e as mudas se destinaram ao Jardim Pagani. Cerca de 286 árvores nativas frutíferas foram plantadas. O próximo
evento em Bauru será no dia 19 de março, no Parque Água do Castelo.
“Fiquei muito satisfeito com a experiência de poder contribuir com um projeto que trabalha de maneira organizada para alteração da situação climática que nos encontramos. O alimento podendo ser disponibilizado desta forma, aos meus olhos se mostra como uma resistência a essa condição determinada pelo ciclo de mercado e torna visível a possibilidade da cidade se tornar um lugar mais humanizado, mais socialmente justo, enfim, um lugar melhor”, finaliza Urias.
Investimentos futuros
Há muito ainda a avançar. É diária a luta dos trabalhadores rurais pela garantia do direito ao trabalho e emprego digno no campo, baseado nos princípios da justiça social e dignidade humana.
De igual valor, é imprescindível que se possibilite a educação do campo como política emancipatória, com a valorização da identidade camponesa, numa estratégia para o rompimento das desigualdades e para a construção de um modelo de desenvolvimento que valorize e garanta os direitos dos trabalhadores rurais.
Também é fundamental repensar o atual modelo de reforma agrária, atualizando sua base legal e as formas de intervenção pública para que o Estado possa, efetivamente, garantir o cumprimento da função socioambiental da terra, centrada na democratização do direito à terra, aos recursos naturais e ao território e na soberania e segurança alimentar dos povos.
Em relação à agricultura familiar, o reconhecimento de seu papel estratégico se faz necessário para a garantia da soberania e segurança alimentar e para a consolidação do desenvolvimento rural sustentável e solidário.
Dois pontos extremamente importantes: é a necessidade de estruturação de políticas públicas específicas voltadas à organização produtiva com cursos de formação para a gestão da propriedade; e a necessidade de se investir na transição para a agroecologia.
Neste sentido, é fundamental o convencimento dos governos municipais, estaduais e o federal, sobre a importância da implementação de políticas que reconheçam o protagonismo dos/das produtores/ras do campo afim de promover uma sucessão no meio rural.
“A Educação do Campo é fundamental para a transformação da realidade rural, à medida que vincula o debate sobre a relação da educação (formal e não formal) com a construção de um projeto de desenvolvimento do campo, no qual as pessoas estejam no centro do debate, sendo a sua realidade o ponto de partida para pensar e construir novas relações sociais e um novo modelo de desenvolvimento sustentável para o Brasil”, finaliza a professora e pesquisadora em nutrição, agroecologia e desenvolvimento rural sustentável na Universidade Federal da Fronteira Sul , Rozane Marcia Triches.
Os membros do Fruto Urbano ensinam algumas técnicas de plantio a quem não tem experiência prévia. Uma maneira de tornar acessível o plantio para todos (Foto: Fruto Urbano)