A frase que norteou a campanha de Bill Clinton à presidência dos EUA, em 1992, pode ser aplicada em plenitude em 2015: com a perseguição a novos modelos econômicos, que surgem de empresas expoentes como o Uber, a briga não é mais entre democratas e republicanos, mas entre inovadores e tradicionalistas
Por Marília Garcia, Moema Novais e Victor Rezende
A Sra. Indústria Fonográfica estava muito feliz com os serviços prestados pelo Sr. CD. Ele era lucrativo, competitivo e, acima de tudo, era o melhor serviço, no melhor formato naquele momento. Até que, certo dia, um jovenzinho chamado MP3 bateu à porta da Sra. Indústria Fonográfica, também querendo prestar seus serviços. Ela, além de não aceitar os serviços do MP3, ainda o rechaçou, rindo em sua cara que não havia nenhum futuro para ele. O tempo passou e, por muito pouco, a Sra. Indústria Fonográfica não foi destruída devido à ascensão do jovem MP3.
Sem pensar no futuro ou ver o potencial existente no novo formato, a negligência das gravadoras fez com que CDs fossem pirateados em arquivos .mp3 e divulgados na Internet, que começava a alcançar mais e mais pessoas. Todo esse processo foi documentado por Stephen Writt no livro “Como a música ficou grátis”, publicado em 2015 no Brasil pela editora Intrínseca. De uma hora para outra, a música se tornou gratuita e a indústria fonográfica pagou o preço por ter rejeitado o novo formato. Mais uma vez, o medo do novo fez o antigo se prender ao que já conhecia e acabou sendo punido por sua rejeição.
A indústria da música conseguiu se reinventar para evitar a falência adotando o MP3, inovando em lançamentos de álbuns e, no período mais recente, vem abraçando o streaming como o futuro da música na Internet. Outras áreas, no entanto, ainda estão presas ao passado e se recusam a aceitar as novidades e inovações tecnológicas. Um bom exemplo é a economia. Os setores já consolidados estão acomodados e satisfeitos com o modelo econômico tradicional que está em vigor, no qual as pessoas precisam comprar e as empresas se limitam a vender e a lucrar.
Quando se fala em modelos financeiros mais avançados, como a economia colaborativa, os setores consolidados criam empecilhos e artifícios para barrar ou tornar ilegais as empresas que testam esses novos formatos, por medo de perderem sua lucratividade. Entretanto, como foi o caso da indústria fonográfica, essa rejeição pode significar mais do que a perda de alguns consumidores.
As novas economias
Se os avanços tecnológicos vêm impactando áreas como a indústria fonográfica – com arquivos digitais de álbuns e de músicas disponíveis na Internet -; ou como a indústria cinematográfica, que aposta cada vez mais nos cinemas físicos e em produtos licenciados dos filmes devido a serviços que permitem assisti-los pela internet via streaming, é possível afirmar que, aos poucos, o modelo econômico vem sendo alterado, mesmo que o sistema de produção permaneça inalterado ou com modificações pontuais. A economia tradicional continua a existir, mas vem perdendo espaço no mercado de consumidores para um outro modelo econômico: o de compartilhamento.
A ascensão de smartphones e tablets como veículos de acesso à Internet e, como consequência, a tudo o que é oferecido por ela seja por meio de aplicativos móveis, seja via sites tradicionais, acabou por revelar novas empresas e, com algumas dessas novas empresas que se estabeleceram no mundo virtual, novos modelos de negócios antes inimagináveis. Empresas como o Uber, serviço de carona para pequenas distâncias; ou o Tripda, para longas distâncias, revelam que o compartilhamento de bens materiais e a colaboração entre as pessoas avançam à medida que se verifica a relação benéfica entre não ter um bem material e, caso já se tenha, utilizá-lo para garantir uma nova fonte de renda ou um compartilhamento das despesas que esse bem fornece ao seu dono.
“Não é possível para o planeta, para a sustentabilidade e mesmo para a longevidade das iniciativas da gestão pública, ou de qualquer área, dar conta do recado com os modelos econômicos atuais. Por eles serem baseados em recursos tangíveis materiais e realizados em processos centralizados, conseguem apenas resultados lineares, ou seja, aqueles que crescem por soma, enquanto os novos desafios [de modelos de negócios] são exponenciais”, justifica Lala Deheinzelin, criadora do movimento internacional Crie Futuros e consultora em economia criativa no Brasil, tendo feito parte do Millenium Project, das Nações Unidas.
Ainda segundo a professora Lala Deheinzelin, é possível dividir os novos ramos da economia nos seguintes termos:
Ao contrapor a atual situação da economia tradicional com a das novas formas de atividade econômica, destaca-se o choque entre representantes das duas formas, com, na maioria das vezes, a economia tradicional se sentindo ameaçada pelas novas formas de atividade econômica. No Brasil, é o caso do Uber, aplicativo que chegou em algumas capitais brasileiras e sofre retaliação do setor de taxistas e, por vezes, do setor público municipal. Até o momento, o aplicativo está em operação em cinco cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília.
“A resistência ao novo só diminui à medida em que se experimenta e se verifica que a coisa funciona e à medida em que tudo mais é comunicado. A parte complicada tanto para a América Latina quanto para os brasileiros refere-se ao fato de a economia compartilhada ser à base das relações de confiança”, ressalta Lala Deheinzelin sobre o problema de segurança corrente em cidades latinoamericanas. São essas relações de confiança que mantêm a economia de compartilhamento funcionando, e parte dos serviços inovadores que estão em voga surgiram de start-ups de tecnologia baseadas nos novos sistemas econômicos.
Start-ups são diferentes de pequenas empresas, como lanchonetes ou botiques. Podem ser consideradas pequenos empreendimentos, em geral montados em casa ou em faculdades, que recebem pequenos aportes de capital. Esses empreendimentos exploram áreas inovadoras, relacionadas a tecnologia na maioria dos casos, com potencial para obterem um crescimento muito alto nos primeiros meses de existência, mesmo sendo caracterizados como negócios de risco, que recebem apoio de empresas parceiras dispostas a investirem em novas tecnologias e novos mercados de consumo.
Quando o sistema proposto por uma start-up dá certo e se torna lucrativo a ponto de manter o funcionamento sem investimento externo, ela deixa de existir e dá lugar a uma empresa com alto potencial de lucro, como é o caso do Netflix, do YouTube e do próprio Google, gigantes dessa tendência que ganhou força durante a crise econômica de 2008 nos Estados Unidos. Outros fatores que ajudaram a alavancar o setor de start-ups no mundo foi o aumento do número de pessoas com acesso à Internet, via smartphones ou tablets, e o aprimoramento de sistemas de pagamento móveis. Grande parte das start-ups necessitam de Internet e de um sistema de pagamento online para funcionar e fazer o negócio ser implementado em plenitude.
Pensando em start-ups de sucesso baseadas na economia de compartilhamento, podem ser listados os seguintes exemplos:
Opinião da sociedade
Com a disputa entre os representantes da economia tradicional e os emergentes da economia compartilhada, a pergunta que fica é a relação da sociedade com a disputa entre as formas de atividade econômica. Segundo uma pesquisa divulgada pela Agência Cause, realizada em setembro de 2015 com 2.000 moradores da capital paulista, metade dos entrevistados defende que o mercado deva ser liberado para empresas como o Uber; 20% não souberam responder; e 30% foram contra a proposta de liberar os serviços para a empresa. Quando perguntados se os táxis devem ser os meios exclusivos para levar passageiros, 52% dos entrevistados disseram que não concordavam com a medida; 33% concordaram e 15% não responderam.
No Rio de Janeiro, cariocas entrevistados pela Ideia Inteligência, 70% já ouviram falaram do Uber e, entre esses, 60% acreditam que o aplicativo melhora a vida da população. No entanto, 43% dos cariocas ouvidos disseram que transportar passageiros sem ser taxista é algo ilegal e que deveria ser proibido. Em Porto Alegre, um estudo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), divulgado em 14 de dezembro de 2015, indicou que o aplicativo, “ao contrário de absorver uma parcela relevante das corridas feitas por táxis, na verdade conquistou majoritariamente novos clientes, que não utilizavam serviços de táxi”, aponta o documento do Cade.
Em casos como o de São Paulo, mesmo com metade da população sendo a favor do serviço fornecido pelo Uber, o que se verifica é a pressão para que a empresa seja proibida de atuar na cidade ou que seja regulamentada. “Quando nós falamos de mobilidade, toda a atividade comercial envolvendo transporte é passível de regulamentação. Então não adianta o Uber querer o livre mercado aqui, porque o livre mercado traz prejuízo para a cidade”, disse Fernando Haddad, prefeito da capital paulista, em encontro com jornalistas na Livraria Cultura em 24 de outubro de 2015.
Em resposta, o Uber lançou uma propaganda no YouTube com a participação da cineasta Marina Person que diz que o Uber “é mais uma opção digna [de mobilidade social] para que pessoas possam trabalhar e gerar renda. Portanto, prefeito, sabemos que não seria por falta de coragem que você não regulamentaria um serviço de transporte individual privado como o Uber”.
O caso Uber
Criado em 2007, nos Estados Unidos, como uma start-up, o Uber chegou ao Brasil em 2014, passando, em primeiro lugar, pelo Rio de Janeiro e chegando, depois, a São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre. Mesmo estando há pouco tempo no país, o aplicativo já causa polêmica entre os taxistas, que veem a empresa como uma concorrente direta de seus negócios. Com isso, há casos de paralisações em vias importantes das capitais em que o Uber está, promovidas por sindicatos da categoria, agressões por parte de alguns taxistas a usuários e a motoristas do Uber e armações para que motoristas concorrentes sejam presos por estarem exercendo uma atividade considerada clandestina.
De acordo com Fábio Sabba, porta-voz da empresa no Brasil, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, “o Uber não é ilegal. A inovação e os avanços da sociedade sempre precedem as regulações e o Uber quer ser regulado. As redes sociais e os sites de conteúdo gerados pelos usuários foram regulamentados só depois do Marco Civil da Internet, por exemplo. Existem mais de 25 jurisdições nos Estados Unidos nas quais o Uber foi regulamentado”.
Para a empresa, seu serviço é de tecnologia, não de táxis privados, e alega que criou uma plataforma que conecta motoristas parceiros particulares a usuários que buscam viagens seguras e eficientes. No entanto, a prefeitura de São Paulo considera o serviço exercido pelo Uber ilegal por praticar uma atividade de transporte remunerado de passageiros sem registro, o que pode gerar uma multa de R$ 1.915,85 e apreensão do carro.
Em municípios como Curitiba, o aplicativo já vem sofrendo retaliação por parte de alguns vereadores que querem sua proibição mesmo antes de ele entrar em vigor na cidade. Um levantamento do Paraná Pesquisas apontou que 65% dos curitibanos são favoráveis à entrada do Uber na cidade; a maioria revela que o principal motivo para a entrada do Uber como concorrente dos táxis seriam os preços das tarifas do serviço de táxi na capital, seguido pela demora na execução das atividades. O instituo ouviu 435 pessoas com mais de 16 anos nos dias 2 e 3 de setembro. Dos entrevistados, 47% acreditam que o Uber possa ajudar a diminuir o valor das corridas de táxi na capital paranaense.
No Brasil, a situação é semelhante. Considerado um serviço clandestino nas cidades em que opera, e sendo perseguido por taxistas, o Uber recebeu apoio de setores do Judiciário, como a Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF), que enviou um parecer a Rodrigo Rollemberg, governador do DF, o qual recomendou veto ao Projeto de Lei 282/2015, que proíbe a utilização de aplicativos prestadores de serviço remunerado de transporte de passageiros.Nos Estados Unidos, o Uber tem regulamentação e opera como uma empresa de modo natural. Esse é o caminho seguido por outras cidades importantes em que o aplicativo já atua. Em Londres, Inglaterra, a Justiça decidiu que o Uber é legal, gerando retaliação do sindicato dos taxistas britânicos, que classifica a atividade da empresa como uma “concorrência desleal”. Na Austrália, a batalha entre taxistas e uberistas também aconteceu, mas a ganhadora da batalha no país foi a empresa, que passou a operar de modo legal desde 18 de dezembro de 2015.
Uma justificativa a mais para a utilização do Uber no Brasil e no mundo é a relação da empresa com a questão da mobilidade em grandes centros urbanos. De acordo com o site oficial do Uber, “geramos um incrível potencial para diminuir a necessidade de se ter um carro, colaborando assim para a diminuição dos congestionamentos nas grandes cidades”. A empresa endossa sua contribuição favorável ao meio ambiente ao afirmar que “um Uber em serviço pode retirar até 20 carros das ruas, todos os dias”.
Para Lala Deheinzelin, cuja área de atuação são as novas formas de atividade econômica, “uma das características mais marcantes do período que vivemos, inclusive aquela que é capaz de garantir sustentabilidade, é, justamente, a desmaterialização”. A pesquisadora justifica ao dizer que “só vai ser possível ser sustentável e, portanto, ter futuro a partir do momento em que a gente priorizar tudo aquilo que não é concreto, porque o que é tangível tende a se esgotar”.
O proposto pelo Uber, e, também, pela maioria das empresas de economia compartilhada, vai ao encontro do acordo assinado em dezembro na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-21), ocorrida em Paris, capital da França. Uma das medidas que os países se comprometeram a realizar é a de reduzir a emissão de gases do efeito estufa, como o gás carbônico (CO2). Para isso, fontes de energia renováveis devem ser preferidas por esses países em relação a fontes não renováveis, como o carvão ou o petróleo, que são mais poluentes que alternativas como a energia eólica ou a hidrelétrica.
Caso o proposto pelo Uber – de substituir 20 carros por um carro da empresa a cada dia – seja uma realidade iminente a curto ou médio prazo, o aplicativo estaria contribuindo de forma direta para que houvesse uma diminuição significativa da emissão de gás carbônico nas grandes cidades, operando, junto com táxis e com o transporte público, para uma melhor adequação ambiental ao proposto no acordo global da COP-21. Medidas como a redução de velocidade nas marginais, fechamento de vias públicas em dias de menor circulação de carros, faixas exclusivas para ônibus, e maior número de ciclovias ajudam a deixar uma cidade ecologicamente mais moderna, com melhorias no sistema de tráfego e redução do número de carros a médio prazo. No entanto, a proibição do Uber iria de encontro a essas práticas que visam alcançar um maior nível sustentável no município, gerando um contrassenso entre o que já foi adotado pela Prefeitura de São Paulo em relação a meios de transporte coletivo e em relação à postura diante do Uber.
“A Prefeitura não se fecha aos avanços, mas assume a responsabilidade de analisar e propor uma regulamentação desses serviços de transporte individual de passageiros, mas com planejamento, organização, regras, controle público para proteger o cidadão. A gente precisa de um prazo para estudar”, declarou o prefeito de São Paulo Fernando Haddad que, em outubro, anunciou um serviço similar ao proposto pelo Uber, mas sem vínculo direto com a empresa: os táxis pretos. Segundo a Prefeitura, os táxis pretos poderão funcionar com, no máximo, 25% a mais de tarifa em relação aos táxis comuns – o que encareceria as viagens ante o sistema adotado pelo Uber, que deixa as locomoções mais baratas na maioria das vezes em que é utilizado.
Acolhendo a nova economia
A proposta do Uber é ser um mediador entre motoristas autônomos e passageiros, que buscam um serviço diferenciado pelo preço e pela qualidade. Um dos argumentos utilizados por taxistas para difamar a empresa é a tentativa de desqualificar os motoristas do Uber. Em relação a isso, a empresa se defende ao exigir que, para que alguém seja um motorista parceiro do trabalho, apresente sua Carteira de Habilitação Nacional com a licença para exercer atividade remunerada. Após isso, o motorista passa por uma investigação que irá conferir seus antecedentes criminais e terá que ser detentor de um carro que atenda aos padrões exigidos pela empresa.
Segundo pesquisa levantada pelo Cade, divulgada em dezembro de 2015, o Uber atende a uma parcela da população que não costumava utilizar o serviço dos táxis antes da imersão do aplicativo nas cidades brasileiras. De acordo com esse documento, nas capitais em que já existia o serviço de táxi por aplicativos, como o 99taxis e o Easy Taxi, não houve uma diminuição do número de corridas após a chegada do Uber.
Se o que falta para essa empresa e para as que passem a existir por sistemas de economia compartilhada, criativa ou colaborativa é a necessidade de uma regulamentação específica – algo que o próprio Uber já se mostrou solícito a aceitar -, é necessário que as prefeituras, receosas em oferecer essa regulamentação para não entrar em conflito com sindicatos de taxistas, tirem o Uber e as outras empresas da informalidade em que estão.
Havendo uma regularização desses serviços, é possível que melhore o convívio entre as empresas regradas pela economia tradicional e as que operam de acordo com novos modelos econômicos. Logo taxistas e Uber poderão atuar de maneira complementar, sem a discussões de rua e sem paralisações que se sucedem em ambientes públicos por serviços que cada vez mais estão sendo requisitados pela sociedade.