Festivais de cinema em meio à pandemia

Com cinemas fechados, os eventos migram para a virtualidade

Por Egberto Santana

A cultura foi um dos campos mais afetados e mais valorizados pela pandemia e a consequente quarentena do novo corona vírus. Dentro do setor, o cinema respira por aparelhos. Acostumado com a aglomeração das telonas, foi obrigado a migrar para o meio virtual. É essa a principal forma que os mais reconhecidos festivais de cinema, porta de entrada para novas produções e outras plataformas, encontraram para manter o setor vivo em meio à pandemia.

Palcos de lançamentos e destaques para as premiações durante o ano, os festivais de cinema, reunindo artistas, produtores e público durante dias em uma só cidade deixou de existir fisicamente desde o início na quarentena. Com cinemas fechados e produções paradas, foram iniciadas as discussões do que fazer com os eventos.

O maior de todos, Cannes, na França, um dos principais países afetados pela pandemia, teve sua discussão estendida e por fim, o evento foi cancelado esse ano e adiado para 2021. No entanto, a organização divulgou a seleção oficial, com títulos que vão disputar em outros festivais. A alternativa é realizar uma parceria com diversos outros nomes para exibir os mesmos filmes, porém com o selo da cidade francesa.

Esse impasse muito se deve por conta da simbologia do Festival de Cannes. Berço do cinema, a organização trava há anos uma batalha com a Netflix, gigante do streaming, para impedir a reprodução de seus filmes. A mentalidade de que cinema é um evento para ser exibido nas telonas ainda é forte no âmago de Thierry Freaux, o diretor do evento.

“O cinema, como conceberam os [irmãos] Lumiére, como conceberam os franceses e é por isso que até hoje a França é esse centro maravilhoso de cinema no mundo… ele é uma experiência coletiva, ele foi inventado como uma experiência coletiva”, comenta Flávia Guerra, jornalista, documentarista e repórter de cinema com diversos festivais de cinema no currículo, incluindo Cannes, Veneza e Berlim. O nome citado por Guerra faz parte da dupla de inventores do cinema (disputam o cargo com Thomas Edison) e quando descoberto na França no final dos anos 1880, era projetado por um cinematógrafo para as multidões. “Não é o cinematógrafo para você assistir dentro da sua casa num aparelhinho que você põe o olho, como é o VR, por exemplo…” A jornalista, porém, ressalta que acredita que tudo é cinema e está olhando por uma perspectiva histórica, que explicaria as discussões, debates e atrasos em torno da migração dos filmes para a internet.

Thierry Fremaux foi organizador do documentário “Lumiére: Uma Aventura Começa”, que apresenta uma série de curtas dos irmãos Lumiére contextualizados. Guerra esteve no lançamento do filme aqui no Brasil e relembra o fato para mencionar a experiência coletiva do cinema. “O cinema é uma experiência intimista e coletiva: você está vendo com a plateia, mas a sensação é só sua.” Alinhado à esse fator, ela enumera outra vertente: a técnica. “Ela é incomparável, você vê um filme na tela com uma boa projeção […] conta muito porque o suporte é o cinema, que é uma arte que envolve tecnologia, um produto cultural.”

O fator da experiência coletiva ainda remonta ao aspecto econômico de ir ao cinema, comprar uma pipoca, reservar uma cadeira e dividir o momento com família e amigos; processos extintos no momento atual. Porém, quando o assunto são os festivais, há algo mais: os encontros. Mesmo que as salas de cinema e o público ainda esteja presente, a troca de contato entre artista e consumidor é o diferencial.

É o que conta o crítico de cinema Matheus Fiore. “Assistir a um filme durante um festival é uma experiência diferente por diversos motivos. Muitas vezes, é a primeira exibição pública de um filme, então é normal que entremos na sala sem saber absolutamente nada sobre algumas das produções. Outro diferencial é que, em vários casos, temos a oportunidade de assistir e participar de debates com os realizadores, o que enriquece a experiência.” O jornalista já cobriu a Mostra de Tiradentes, que ocorreu entre janeiro e fevereiro desse ano, além da Mostra Sesc de Cinema em Paraty e pretende cobrir o Festival Ecrã, o festival de experimentação audiovisual do Rio de Janeiro, que acontecerá online em agosto.

Se por um lado, a experiência coletiva se perde quando o formato on-line é a opção, o alcance nacional é alcançado na divulgação de obras que antes estariam reservadas a um só espaço. Maicon Firmiano, produtor audiovisual e redator de Caxias do Sul teve dois de seus trabalhos publicados no canal do CineSerra, o Festival do Audiovisual da Serra Gaúcha. Para o diretor e produtor, houve uma procura maior de pessoas por outros materiais e alguns entraram em contato com ele para elogiar as obras. “O que eu acho que mudou, principalmente nesse formato de distribuição, foi a acessibilidade mesmo, sabe? Ter a coisa na mão. Em festival rola o contato físico com o filme, com a audiência, ter mais gente assistindo contigo – que é o que se almeja.”

Firmiano faz coro com Fiore e Guerra e acredita que nos festivais online fica ausente o contato direto com os realizadores, não há uma troca de ideias, segundo o produtor. “[Os festivais virtuais] ainda não acharam um formato legal para fazer isso funcionar.”

Uma das tentativas ocorreu com o Festival Internacional de Cinema de Brasília (BIFF), o primeiro festival totalmente on-line no Brasil. A iniciativa teve forma a partir da parceira com o Looke, plataforma de locação de filmes brasileira. Anna Karina de Carvalho, diretora do BIFF, contou a reportagem que essa foi a garantia de realização do evento, a fim de impedir a pirataria dos filmes. Para a responsável, a essência do festival foi “mantida no momento em que os mesmos filmes que seriam exibidos nas telas foram exibidos online e os debates também.” Outro destaque foram os acessos, alcançando um público de mais de 50 mil pessoas, o que não aconteceria se tivesse sua versão física também. Flávia Guerra participou do festival oferecendo um workshop de documentário, que já estava previsto para o formato presencial.

Houve também espaço para produções próprias durante a quarentena. Aproveitando esse limbo, onde apenas filmagens internas poderiam ser realizadas, surgiu o Quarentena Online Film Festival, um festival totalmente online voltado para filmes feitos dentro de casa. “A ideia era criar um festival sem qualquer tipo de restrição para fazer com que esse momento de isolamento fosse adaptado para um momento de visibilidade dos profissionais e, ainda sim, para acalentar as almas criativas de tantos colegas e amigos do meio”, contou a equipe via e-mail. De início, o projeto pretendia ser nacional, mas não demorou para que chegasse inscrições do mundo inteiro, de países como Colômbia, Espanha, Portugal, Inglaterra, Irlanda, Alemanha e, claro, Brasil; tudo de forma gratuita e com a única restrição de ser feito em casa.

O BIFF online e a criação do QFF foram tentativas de mostrar a produção cinematográfica para o mundo, ainda que fora do local ideal. Cannes ainda não parou e realizou a Marche du Film no mês de junho, uma feira cinematográfica voltada para a compra de filmes pelos estúdios de forma virtual. Seja criativamente ou financeiramente, o cinema vive a todo vapor nessa quarentena.