A campanha do Setembro Amarelo, além de marcar melhorias nos programas de saúde pelo poder público, instigou diversas discussões de como o tema suicídio está presente em nossa realidade brasileira. Uma das principais questões é como os aspectos espaciais e socioeconômicos estão relacionados aos casos de suicídio. Se o desemprego e o endividamento afetam de forma marcante as parcelas mais ricas da sociedade, de que forma o suicídio está nos grupos em situação de vulnerabilidade social, ou seja, grupos que se encontram marginalizados pelo contexto socioeconômico. O conceito engloba também grupos discriminados por gênero, orientação sexual e migração.
Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2015, 78% dos casos de suicídio em todo mundo estão concentrados nos países de média e baixa renda . A OMS também aponta que nos países mais pobres a principal causa das mortes é relacionada ao estresse e pressão das condições materiais.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publica o Atlas da Vulnerabilidade Social, baseado no Índice de Vulnerabilidade Social (IVS). O indicador leva em conta três categorias: “Infraestrutura Urbana” (abastecimento de água, coleta de lixo, saneamento básico, deslocamento urbano), “Capital Humano” (mortalidade infantil, crianças e adolescentes fora da escola, baixa escolaridade) e “Renda e Trabalho” (desemprego de adultos, trabalho infantil, dependentes de renda de pessoas idosas). Para se ter uma ideia, a média do IVS nacional é 0,326. A melhor taxa é de Santa Catarina (0,192) e a pior é do Maranhão (0,521).
Especialistas da área da saúde concordam que não se deve relacionar o suicídio a apenas um fator social ou econômico, mas eles são essenciais para entender certos fenômenos. Silvio Yasui, livre-docente em Psicologia e Atenção Psicossocial pela UNESP, diz que é “difícil afirmar que há uma relação estatisticamente significativa. Países economicamente mais ricos também apresentam taxas altas de suicídio. Mas sem dúvida contingências socioeconômicas desfavoráveis contribuem para agravar o sofrimento das pessoas.”. O professor salienta como as situações se relacionam, “crise econômica com um aumento na desigualdade social e nos níveis de pobreza da população que afetam as perspectivas de muitos jovens; crise política e ética que afetam como cada um de nós se posiciona em relação ao pacto social; e uma mudança nos modos como nos relacionamos, como estamos produzindo laços e vínculos sociais cada vez mais isolados, privados, narcísicos”.
Indo ao encontro da afirmação de Yasui, a cartilha “Suicídio: Informando para Prevenir”, publicada pelo Conselho Federal de Medicina e realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria, elenca alguns dos principais fatores de risco de suicídio: doenças mentais e transtornos psiquiátricos; tentativas prévias de suicídio; eventos adversos na infância e adolescência; história familiar e genética; desesperança e desamparo; e, por fim, fatores de ordem social e econômica. Com base nos estudos do sociólogo Emile Durkheim, a cartilha informa que quanto maiores os laços sociais em uma comunidade, menores seriam as taxas de mortalidade por suicídio.
De acordo com o estudo, é possível transpor esse conceito sociológico para o nível individual e estabelecer algumas relações entre a questão da marginalização e invisibilidade social com o suicídio. Moradores de rua, por exemplo, privados de qualquer laço social e econômico, sofrendo cotidianamente a questão da desesperança e do desamparo, estariam, assim, mais suscetíveis. Além disso, trabalhadores não qualificados ou desempregados com problemas financeiros também apresentam maior risco de suicídio. Segundo a cartilha, a taxa referente a mortes desse tipo aumentam em períodos de recessão econômica.
Thiago Bloss, psicólogo e mestre em Psicologia Social pela USP, e Elis Cornejo, psicóloga e coordenadora de Grupos de Apoio aos Sobreviventes do Suicídio, apontam que a atual forma de organização socioeconômica, excludente e desigual, está diretamente ligada à questão do suicídio. “Entendemos que existam diferentes formas de sofrimento e este pode ser entendido como uma expressão política, como o resultado de relações de poder. É sempre fundamental lembrar que a base do suicídio é o sofrimento e este é resultado das nossas atuais condições de existência, baseadas em diferentes formas de violência e dominação”, afirmam os psicólogos.
Bloss e Cornejo afirmam ainda que, historicamente, o Brasil falha em apresentar políticas públicas eficientes para a parcela mais vulnerável da população. “A insuficiência de políticas públicas de saúde e socioassistenciais afeta diretamente a população menos favorecida, principalmente por não dispor de serviços de atendimento que contemplem suas variadas necessidades, tais como aquelas referentes à prevenção e posvenção do suicídio. No caso do Brasil, é histórica a negligência sobre a questão da prevenção do suicídio como objeto de políticas públicas. Cabe lembrar que estas políticas são um direito social da população e um dever do Estado, entretanto, grande parte dos serviços gratuitos de acolhimento e atenção aos indivíduos que tentaram suicídio, às suas famílias, assim como aos sobreviventes do suicídio ocorre, sobretudo, por iniciativa de organizações não governamentais, institutos, associações, etc.”.
Diante do aumento de 12% dos casos de morte por suicídio no país entre 2011 e 2015, o Ministério da Saúde divulgou no dia 21 de setembro a Agenda Estratégica de Prevenção do Suicídio. O documento integra a política nacional de qualificação da vigilância e do fortalecimento das ações de promoção da saúde, prevenção do suicídio e atenção às vítimas de tentativas de suicídio e seus familiares. Complexo, multifacetado e de múltiplas determinações, a prevenção do suicídio representa enorme desafio para a saúde pública do país. A meta do governo é reduzir em 10% a mortalidade por suicídio até 2020.
Para Vinícius Silva, aluno de graduação do curso de psicologia da UNESP, o poder público não está preparado para atender a demanda de pessoas em condições de vulnerabilidade social. A falta de CAPs e investimentos na área de saúde, a baixa produção acadêmica sobre distúrbios mentais e sua relação com a situação socioeconômica e a insuficiência de profissionais são alguns dos desafios apontados pelo psicólogo. “A Agenda Estratégica de Prevenção ao Suicídio lançada pelo Ministério da Saúde parece apresentar um caminho para começar a tratar essa situação: documentar com maior precisão os casos de suicídio para melhor compreendê-los; prover mais informação confiável para a população geral e para profissionais da saúde mental de modo a trazer orientações sobre o assunto; expandir os serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e o Centro de Valorização da Vida (CVV); capacitar mais profissionais e mapear as motivações do suicídio. No entanto, é difícil acreditar que o governo realmente cumprirá tais metas num momento em que existe corte de verbas para pesquisa e postos de saúde são fechados por falta de verba, equipamentos e profissionais”, comenta.
O estudante afirma ainda que a situação política do país precisaria sofrer significativas mudanças para que as políticas públicas de prevenção ao suicídio fossem cumpridas até o final da década. Para Vinícius, umas das diretrizes seria dar mais atenção às camadas mais carentes da população e também priorizar os jovens, grupo etário que apresenta alta incidência de mortalidade por suicídio. “Outras ideias para atingir essa meta poderiam partir dos próprios cursos de psicologia, serviço social e derivados, em formar palestras nas escolas públicas orientando sobre o que fazer e o que não fazer quando alguém próximo está deprimido ou pensando em suicídio, conversas com os alunos tanto em grupos como em espaços abertos para ouvi-los em particular e enfim buscar a aproximação da comunidade com o tema, assim fazendo com que todos os cidadãos trabalhem juntos para ajudar quem está tão angustiado e não tem acesso a cuidados que deveriam partir do poder público”, completa.
Signatário do Plano de Saúde Mental lançado em 2013 pela OMS, o Brasil adota há anos políticas nacionais para a saúde mental. No continente sul-americano, apenas Chile, Bolívia e Equador são desprovidos de políticas nessa área. Da criação da Legislação Básica de Saúde Mental, criada em 2001, à meta estipulada pelo governo na cartilha lançada em setembro de 2017, foram várias as portarias, decretos e leis criadas a fim de instituir as diretrizes nacionais para prevenção de doenças causadas por distúrbios mentais. Um dos avanços mais significativos foi a criação do Centro de Atenção Psicossocial, o CAPs. Especializados em acolher pacientes com transtornos mentais e oferecer atendimento médico e psicossocial, o CAPs pode reduzir em até 14% o risco de suicídio nos municípios, de acordo com estudo divulgado pelo Ministério da Saúde. No entanto, o número de CAPs no país ainda é insuficiente para atender toda a população. Existem hoje no Brasil 2.463 CAPs para 5.570 municípios.
Para Silvio Yasui, a política de implantação de CAPs contribui para a diminuição dos casos de suicídio, pois impacta na qualidade da atenção ao sofrimento psíquico. No entanto, o especialista destaca a importância de se investir em ações e serviços que atendam a população em situação de vulnerabilidade social. “A imensa estrutura de assistência social tem custos e tais políticas têm sido atacadas de diferentes maneiras, especialmente, nos dois últimos anos em nome do enxugamento e da redução do Estado, do ataque conservador a essas políticas chamando-as de desnecessárias e imputando a elas uma propagação de acomodação e conformismo. Assim como a presença do CAPS impacta a qualidade da atenção e tem efeitos no número de suicídios, investir seriamente e com competência nas políticas públicas também terá um grande impacto na qualidade de vida e, por consequência, produzirá um contexto social mais favorável à redução da taxa de suicídio”.