Plano articulada pela Câmara dos Vereadores do município de Bauru preocupa organismos de proteção do cerrado paulista
Por : Isabela Holl e Lívia Reginato
Em março deste ano, os 17 vereadores da Câmara Municipal do município de Bauru-SP, localizado na região central do estado de São Paulo, enviaram uma carta ao vice-governador do Estado de São Paulo, Márcio França (PSDB), solicitando a revisão da Lei Estadual nº 13.550, também conhecida como Lei Estadual de Uso e Proteção do Cerrado. A justificativa do pedido foi a viabilização legal da construção de um mega-distrito industrial no município de Bauru-SP. Este projeto prevê o uso áreas de preservação ambiental (APA), protegidas por lei. Em 2017, com a mesma finalidade, o Plano Diretor da cidade foi alterado.
O Cerrado é um bioma brasileiro caracterizado por árvores baixas de troncos retorcidos, arbustos espaçados e com clima bem definido: uma estação chuvosa e outra seca. O Cerradão é uma formação florestal do bioma, com árvores mais altas e vegetação mais densa. Este bioma está presente em 11 estados brasileiros, incluindo o estado de São Paulo. A cidade de Bauru apresenta áreas de Cerrado e de Cerradão. Esta vegetação está legalmente preservada por diversos dispositivos
A carta ao Vice-Governador
O pedido de revisão da Lei Estadual do Cerrado afirma que legislação estadual estaria resultando em prejuízos ao “desenvolvimento da cidade de Bauru” e que a cidade não poderia ser “penalizada”. Pois, estaria impedindo “a liberação de empreendimentos, de residências unifamiliares e a ampliação de empresas importantes, que recolhem tributos e geram emprego e renda no município”. Também foi alegado que as construções futuras seriam feitas em áreas já degradadas do bioma, chamadas pelos vereadores de “manchas”. O mega-distrito visado pelo prefeito seria construído em uma região com essas manchas do bioma cerrado.
A ecóloga Alessandra Pavesi, membro do Coletivo do Cerrado de São Carlos, afirma que mesmo em pequenas manchas de vegetação existe importância ecológica, “por menor que seja, cada fragmento pode conter um banco de informações genéticas único, capaz de contribuir de forma relevante para a conservação da biodiversidade e a restauração de ecossistemas semelhantes, esses fragmentos representam a única fonte de informação que se tem sobre a estrutura e o funcionamento da vegetação nativa”.
O Coletivo do Cerrado acredita que a carta dos vereadores de Bauru parece ter como premissa que as áreas já degradadas de cerrado não tem recuperação. O que vai contra a experiência do coletivo e de cientistas especializados na restauração de ecossistemas de Cerrado.
Marco Aurélio Nalon, pesquisador do Instituto Florestal do Governo do Estado de São Paulo e um dos coordenadores do Inventário Florestal da Cobertura Vegetal nativa do Estado de São Paulo, aponta que “para cumprir com a meta estabelecida em acordos internacionais seria necessário a recuperação de 17% da área original terrestre de cada bioma, isso significa que teríamos de plantar cerca de 800 mil hectares de Cerrado em São Paulo”. Em complemento, o Coletivo acredita que “até mesmo os fragmentos mais degradados podem tornar-se o início de um processo de recolonização que traria de volta ao cerrado para as nossas paisagens urbanas”.
Alteração da lei municipal de preservação
Esses fragmentos e demais quantidades do bioma Cerrado em Bauru estão protegidos, atualmente, apenas pela lei estadual. Já que a prefeitura optou por alterar a lei municipal sobre as áreas de preservação. Segundo Erick Mulato, representante da SOS Cerrado de Bauru, uma organização independente que luta pela preservação da biodiversidade do cerrado em Bauru e região, a ameaça ao cerrado bauruense começou no ano passado com a mudança do Plano Diretor da cidade de Bauru (Lei 5331 de 21 de agosto de 2008).
O Plano Diretor, como consta nos artigos 39º e 40º do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), é o instrumento central de planejamento das cidades do país. Em junho de 2017, foi aprovada uma emenda (Lei nº 16/17), por unanimidade, que retirou a palavra “proibido” do texto, dando margem legal para o uso das Áreas de Preservação Ambiental (APAs). A alegação dos poderes públicos bauruenses para tal modificação seria que o Plano Diretor original “estaria atravancando a cidade e a impedindo de se desenvolver”.
Assim, foi retirada a palavra “proibido” da redação do Plano Diretor da cidade de Bauru e condicionado o uso das APAs a uma autorização do Plano de Manejo. O Plano de Manejo de forma geral é um documento que estabelece normas e restrições para o uso dos recursos naturais dentro de Unidade de Conservação Ambientais, visando minimizar impactos negativos ao meio ambiente.
A alteração da lei municipal, junto com o pedido de alteração da lei estadual de preservação do Cerrado está preocupando entidades de preservação, como a SOS Cerrado Bauru, o projeto Cerrado Infinito e o Coletivo do Cerrado da cidade de São Carlos. Segundo Mulato, a alteração da legislação estadual equivale a “entregar um cheque em branco para o poder público”, dando margem para que a pouca área de cerrado restante em todo estado, que estima-se ser apenas 1% da vegetação original, seja destruída. Se houver a alteração, “o Cerrado do estado inteiro está ameaçado” – ele conclui.
Já, Sandro Bussola, Presidente da Câmara dos vereadores de Bauru, alegou que os vereadores de Bauru apontaram, em documentos enviado ao Vice-Governador, “problemas na aplicação da Lei do Cerrado, que tem impedido a aprovação de projetos e a expansão de importantes empresas em Bauru”. Ele afirma também que a carta “endossa a necessidade do marco legal para a preservação do bioma, mas sugere a adoção de mecanismos de compensação para viabilizar a ocupação de áreas com pequenas manchas de vegetação já degradada, situadas em zona urbana, sem mexer nas grandes áreas de concentração da vegetação cerradeira”.
A importância da legislação de preservação estadual
Os coletivos de preservação do meio ambiente advogam que a lei estadual não deve ser flexibilizada. Daniel Caballero, membro do Coletivo Cerrado Infinito, afirma que a mudança da legislação não pode acontecer, uma vez que “o resultado será a erradicação do pouco que restou, não deveria ser cogitada a possibilidade de diminuir a proteção, não favorece ninguém a não ser alguns que ganharão dinheiro por algum tempo com isso”. Para ele, sem uma lei que funcione e seja imperativa, a preservação da natureza se torna uma ilusão.
“A lei sobre a proteção do Cerrado é a única ferramenta da qual dispomos para lutar contra a extinção desse bioma. Especialmente nas situações de ameaças prementes, quando é necessário mobilizar o poder público para suspender ou embargar obras que causariam o desmatamento e a degradação do ecossistema”. Assim, enfraquecer este dispositivo legal significaria “privar a sociedade civil organizada de um precioso instrumento que tem servido para impor limites e direcionar o poder econômico e o mercado imobiliário”. (Coletivo do Cerrado)
Também é destacada a importância do dispositivo legal estadual para “proteger não apenas a comunidade dos seres vivos que habitam o Cerrado, muitos dos quais são ameaçados de extinção, mas também os processos e as funções ecossistêmicas das quais as comunidades humanas se beneficiam”, assinala o ecóloga Alessandra. Desse modo, o posicionamento contra e flexibilização não significa em sua opinião estabelecer obstáculos ao desenvolvimento agrícola e urbano, “mas garantir que ocorra de maneira responsável e sustentável”.
Mulato adverte que antes da implementação de qualquer plano de desenvolvimento é necessária a realização de um estudo do impacto ambiental desse mega-distrito. “O poder público deve criar mecanismos de preservação que punam as pessoas que querem burlar esses dispositivos de proteção, e nessa ocasião está se fazendo o contrário, já que está se permitindo que o nosso meio ambiente seja cada vez mais degradado” – acrescenta a ecóloga. Sobre esta questão, Bússola alega que o pedido de flexibilização da lei foi realizado por “um grupo formado por parlamentares, representantes do Poder Executivo e empresários” contando com o respaldo do professor da Unesp de Bauru e Doutor em Ecologia, pela UNICAMP, Osmar Cavassan, na tentativa de elaborar uma proposta de regulamentação que una o desenvolvimento com a preservação do meio ambiente.
Acerca do assunto, Bússola, explica que “a proposta do mega-distrito tem como objetivo viabilizar o desenvolvimento industrial na região Norte da cidade, apontada pelos estudos técnicos de planejamento como vocacionada para este tipo de ocupação”. Já que a cidade de Bauru estaria necessitando “de áreas públicas que possam ser concedidas para a atração e a instalação de empresas”, de forma desburocratizada para alcançar “um ambiente favorável a investimentos, que resultem na geração de emprego e renda para a população”. “Sempre de forma sustentável e equilibrada, considerando aspectos jurídicos, urbanísticos e socioambientais”, ressalta o presidente da Câmara dos Vereadores de Bauru.
Cavassan afirma que o desenvolvimento industrial é desejado em qualquer município, assim como o de Bauru. Segundo ele, é necessário a organização de um plano de desenvolvimento que envolva técnicos de diferentes áreas, incluindo a ambiental “para propor projetos que permitam um grande desenvolvimento com mínimo de impacto ambiental”. Ele afirma que, caso haja mudança na legislação, essas devem ser fruto de um amplo estudo prévio, envolvendo a comunidade científica, jurídica e administrativa. O pesquisador também ressalta a importância da Lei Estadual do Cerrado, “essa lei era aguardada e cobrada pela comunidade científica”, pois é necessário a preservação das áreas que sobraram do bioma no estado. As áreas restantes do bioma são também utilizadas para estudos científicos.
O representante da SOS Cerrado assinala que dentro do previsto em lei já existia a possibilidade de utilização das áreas de Cerrado, em caso de utilidade pública ou interesse social. Mas, em sua opinião a lei está equivocada e o cerrado restante deveria ser intocável e a entrada nestas áreas deveria ser controlada mediante autorização. Entenda os principais pontos da lei estadual de uso e preservação do cerrado no infográfico abaixo:
Quais regiões em Bauru poderiam ser afetadas pela flexibilização
O prefeito de Bauru, Clodoaldo Gazzeta (PSD), vem desde o fim do ano de 2017 anunciando na imprensa local a criação de um plano de desenvolvimento, que incluiria o mega-distrito industrial. Em entrevista para o Jornal da Cidade de Bauru, Gazzetta afirmou que protocolou um pedido para o governador Geraldo Alckmin de doação de 6,6 milhões de metros quadrados para o desenvolvimento do distrito, que ficaria na Área de Preservação Ambiental (APA) Água Parada.
Segundo Gazzeta, o governador teria dado “um aceno positivo” para fazer a doação e mudar a legislação estadual, para que a implantação do distrito possa acontecer, já que atualmente seria ilegal. O prefeito também declarou que o município receberia apenas uma parte da doação pedida ao estado, seriam em tese 2,5 milhões de metros quadrados para a consolidação do distrito industrial. O vereador Sandro Bussola afirma que a maior parte dessa área se configura como pasto, com exceção de um pequeno curso de água com vegetação, que seria preservado.
A Área de Preservação Ambiental Água Parada foi regulamentada pelo município em 2001, pela Lei Nº 4704. Segundo o texto da legislação, a preservação daquela região é necessária porque deve-se “proteger e conservar a qualidade ambiental de uma importante Bacia Hidrográfica de nosso município, como finalidade de garantir a quantidade e a qualidade da água deste manancial para o futuro abastecimento público e ainda objetivando a proteção dos ecossistemas nela incluídos”. Sendo a APA considerada região de mananciais, seria “vedada a supressão da vegetação” pela legislação estadual.
Ao visitar a região na APA Água Parada na qual o prefeito visa construir o mega-distrito e outras Zonas de Indústrias percebe-se que não há somente pastagens, também há áreas densas de Cerrado.
Porém, não é somente as áreas de preservação ambiental da Água Parada que seria afetada, a do Rio Batalha e do Campo Limpo também serão incluídas no plano de desenvolvimento. Segundo imagem divulgada pela prefeitura e veiculada pelo Jornal da Cidade, o plano de desenvolvimento urbano marca a área das três APAS como regiões que se tornarão Zonas de Indústria, Comércio e Serviços (Zics).
A APA Campo Limpo é atualmente uma região que tem pequenas propriedades que convivem com extensas áreas de Cerrado intocado. Pela legislação atual os proprietários não podem desmatar o bioma presente em suas terras, como é o caso da propriedade de Amilton Marco Sobreira, advogado. Em seu terreno há uma intensa vegetação e uma pequena casa onde é desenvolvido atividade de apicultura. Amilton é proprietário do local há mais de 20 anos e afirma que mantém a vegetação intocada. Em sua propriedade há uma nascente de água que ele diz ser “muito boa porque o Cerrado preserva os aquíferos”.
Amilton afirma se sentir ameaçado, “querem acabar com tudo isso aqui”, diz. Segundo ele, desde de 2016 há ações na justiça visando tirar as pessoas que habitam a região e desmatar a mata para construir um loteamento. “Loteamento que existe no papel, mas que pela Lei do Cerrado não pode haver”. Com o pedido de flexibilização da lei estadual movida pela Câmara, Amilton se sente ainda mais receoso. A propriedade dele, que convive em harmonia com a vegetação, está no mapa das novas Zics pois faz parte da APA Campo Limpo, marcada como para ser utilizada como “uso diversificado”.
Cidades diferentes, problemas parecidos
Em outros municípios também há o desejo de intervir nas áreas de preservação de Cerrado. É o caso de do município de São Carlos, Alessandra Pavesi, ecóloga e membro do Coletivo Cerrado, explica que havia um plano de invasão e urbanização de um fragmento de cerrado no campus da UFSCar, que visava o desmatamento de 90% da área. O Coletivo Cerrado se posicionou e conseguiu o impedimento dessa ação, porém eles não conseguiram impedir o projeto de construção de uma avenida que cruzaria a vegetação.
Então, o grupo se respaldou na Lei Estadual do Cerrado e moveu uma ação contra os responsáveis pela autorização da construção da avenida: o reitor da UFScar e a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb). O Coletivo se baseou no artigo 4º da lei “que veda a supressão da vegetação do bioma cerrado nos casos em que abrigue espécies da flora e da fauna silvestre ameaçadas de extinção”. Segundo a ecóloga há laudos técnicos que comprovam que a área abriga espécies ameaçadas de extinção.
Pavesi declara que na cidade de São Carlos restam apenas 4% da vegetação nativa. São áreas isoladas na periferia urbana, onde são despejados resíduos, “não recebem qualquer atenção, nem do poder público – que no fundo considera as poucas áreas de cerrado como reserva de terra para futura expansão urbana e, portanto, não tem interesse em criar programas de conservação e manejo – e nem da comunidade, que não conhece nem valoriza o cerrado”, afirma a ecóloga.
Para ela, a cultura das sociedades urbanizadas impede o conhecimento dos benefícios causados pela vegetação “até mesmo quem vive próximo de remanescentes da vegetação nativa desconhece, por exemplo, a riqueza de plantas e frutos comestíveis do cerrado e com propriedades terapêuticas ou até mesmo seu valor ornamental”. Alessandra também ressalta a importância do Cerrado na proteção, abundância e pureza das águas dos mananciais que abastecem São Carlos. O bioma também é fundamental para a equilíbrio climático do clima no município, que foi afetado pela urbanização.
O governo do estado de São Paulo ainda não se manifestou acerca do pedido de flexibilização da lei estadual de uso e Proteção do Cerrado. Como mostrado, essa legislação já prevê os casos de utilidade pública ou interesse social em que as áreas de preservação podem ser utilizadas e a compensação ambiental necessária. Um projeto que esbarra nos parâmetros de preservação já estabelecidos pelo poder público para garantir a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável deve ser repensado para atender aos requisitos legais.
Os ambientalistas entrevistados alegam que a legislação em vigor deveria ser enrijecida para aumentar o grau de preservação do cerrado restante. A mudança da legislação estadual não significa abrir uma “exceção legal” para uma área singular, mas sim dar abertura para que o mesmo ocorra em todo o estado, resultando em uma perda dos esforços de preservação até o momento conquistados.