Situações de machismo fazem parte do dia a dia de inúmeras mulheres que trabalham em cozinhas profissionais – até quando?
Por Giovanna Falchetto e Tatiana Olivetto
“Então, pega uma vassoura e varre o chão!”. Foi com essa simples frase, proferida durante uma competição entre cozinheiros renomados, o “Masterchef Profissionais”, na emissora Bandeirantes, que o debate sobre o machismo na cozinha se instaurou de forma calorosa nas redes sociais. A frase foi dita por um chef famoso, Ivo Lopes, para a sua colega Dayse Paparoto, que anteriormente já havia trabalhado em conjunto em um restaurante italiano em São Paulo e que apenas reclamava que seus parceiros de competição não haviam deixado trabalho para ela fazer. “Você quer fazer o legume, o tomate, tudo”, disse ela. E para ele, o melhor serviço que ela poderia fazer na cozinha seria o doméstico, varrer o chão.
Dayse foi vítima de machismo ao vivo na cozinha do programa de gastronomia de maior sucesso do país (Créditos: Reprodução Ribs)
O programa foi palco de diversas manifestações de cunho machista direcionadas justamente para aquela que viria ser a ganhadora do programa, a chef Dayse. Ironia do destino? Todos sabiam do potencial, mas por ser mulher e estar competindo com homens, o seu papel era irrelevante e desmerecido. Afinal, mulher é mais frágil, mais delicada e não merece ser tratada igual aos homens dentro da cozinha, uma vez que eles são mais fortes e mais durões. Diante de tanto machismo que vêm sendo propagado de forma descarada dentro da nossa sociedade, como será o ambiente dentro das cozinhas, onde ninguém tem acesso e tudo acontece de forma velada? O programa levantou essa questão de forma escancarada e nos faz pensar o papel da mulher no ambiente profissional da gastronomia.
Nota-se que, a partir do momento que a cozinha se torna uma carreira promissora e de prestígio, as panelas rapidamente deixam de ser “coisa de mulher” para ser “coisa de macho”, “coisa de quem tem força”, “coisa de quem aguenta a pressão sem chorar”.
Machismo pelo mundo
Este tema ficou ainda mais em voga no cenário brasileiro por conta dos episódios machistas veiculados pelo programa Masterchef Profissionais , no ano de 2016; entretanto não é exclusividade do Brasil ou da televisão nacional tal falta de respeito com o trabalho das mulheres. Na Inglaterra, também neste ano, telespectadores do programa ‘Masterchef Profissionais’ acusaram a BBC, canal que veicula o programa, de machismo após a última participante feminina do programa ser eliminada, restando seis chefs homens para disputarem o prêmio. A revolta dos telespectadores pode ser notada por meio de comentários nas redes sociais, principalmente por meio do Twitter do programa.
Ao ser questionado sobre a eliminação de Joey O’Hare, a última participante mulher, Sam Smethers, chef executivo do programa de direitos das mulheres da organização The Fawcett Society desabafou: “Uma final composta apenas por chefes masculinos mostra que há um problema na indústria – mulheres capazes não estão conseguindo chegar ao topo. Mas também pode haver um problema com a BBC. A falta de mulheres no programa parece desequilíbrio e sugere um viés inconsciente”.
Outro caso, que veio à tona também em 2016 e com cunho um pouco mais sério, aconteceu em Toronto, em setembro deste ano. Kate Burnham, é chef no restaurante Weslodge e acusou três outros chefs homens de abuso verbal e físico contra ela durante expediente de trabalho. O caso ainda não terminou e está na justiça do Canadá. Entretanto, os três acusados pela chef não mais trabalham no restaurante. Burnham não se manifestou sobre o caso para a imprensa, mas os proprietários do restaurante, Charles Khabouth, que também é presidente do grupo ‘Entertainment INK e Hanif Harji, presidente também do Hospital ‘Icon Legacy’ disseram: “As alegações feitas por Kate Burnham são perturbadoras e inaceitáveis e de forma alguma refletem os valores da nossa organização”.
Essa desigualdade instalada entre o gênero masculino e feminino no mercado de trabalho da culinária gourmet pode ser percebido principalmente por meio da setorização do tema. Programas de televisão, revistas, canais de Youtube e outros meios em que o tema abordado é o lar, receitas caseiras, simples e mais populares, as mulheres dominam, como por exemplo o programa ‘Mais Você’ de Ana Maria Braga ou o famoso programa da Palmirinha em seu programa na emissora Bandeirantes. Já quando o assunto é gourmet, receitas mais sofisticadas ou o comando de restaurantes refinados a predominância é masculina, como por exemplo Jamie Oliver, chef inglês que comanda há anos um programa no canal GNT de receitas gourmet ou Rodrigo Hilbert, ator brasileiro que também tem seu programa de receitas e o chef Fogaça que comanda o Masterchef Brasil.
A percepção que se tem é de que quando a profissão deixa de ser algo pouco valorizado para tornar-se uma carreira promissora, o lugar da mulher passa a ser o lugar do homem. Sobre esse assunto, Paolla Carossela, argentina, também apresentadora do programa Masterchef Brasil, se posicionou em entrevista numa coletiva de imprensa em Recife: “Eu acho que o mundo que a gente vive é machista, mas não podemos generalizar (…). Quando eu entrei na cozinha há 25 anos atrás, não falávamos disso. Provavelmente existia, mas era silencioso, não se falava nisso”. O machismo escondido não é exclusividade da cozinha, até hoje é um tabu falar, por exemplo, das mulheres que recebem menos que homens, ocupando o mesmo cargo.
Outro grande nome da cozinha mundial, eleita melhor chef mulher da América Latina pelo prêmio ‘50 Best’ promovido pela revista inglesa ‘Restaurant’, Roberta Sudbrack se pronunciou sobre o assunto em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, ao ser questionada pelo jornalista sobre o que dizem das mulheres não aguentarem o calor, as horas e nem a pressão: “A cozinha é machista infelizmente. Existe um ditado popular, totalmente pejorativo, que diz que lugar de mulher é na cozinha. Aí, quando a mulher resolve ocupar esse lugar literalmente na cozinha, ela não pertence àquele ambiente. A questão do calor, das horas, da pressão é bobagem. Vou te dar um exemplo muito simples: uma panela com 30 litros de caldo, um homem não pega sozinho, assim como a gente. No mais, é a inteligência, a capacidade de gerenciar, se suportar pressão, cansaço, e um ambiente que é desafiador (…) Poxa, isso é machista.”
Roberta Sudbrack, eleita a melhor chef mulher da América Latina, batalhou para ganhar seu espaço na cozinha. (Crédito:Divulgação)
Diante de todo o trabalho braçal, o discurso que mais se vê é a de que mulher não aguenta o tranco. O que soa até irônico, uma vez que, a vertente machista que mais se ouve dizer por aí é a de que “lugar de mulher é na cozinha”. Soaria engraçado se não fosse trágico toda essa ironia. Esse clichê machista fez com que a imagem da mulher na cozinha doméstica ainda domine o pensamento de muitas pessoas e, ás vezes, das próprias mulheres. Fez com que a postura de servidão e silêncio se perpetue muitas vezes, durante muito tempo.
Porém, essa ideia vem sendo cada vez mais desconstruída, uma vez que nota-se a presença de chefs mulheres cada vez mais conquistando reconhecimento profissional na área da alta gastronomia, através de um trabalho pesado e quebra dos paradigmas sexistas.
Lugar de mulher é na cozinha – e onde mais ela quiser!
A trajetória das mulheres dentro do ambiente profissional da cozinha não é fácil. Ter que conviver em um ambiente de pressão, onde tudo deve ser feito rápido, mas sem perder a qualidade, faz com que o desafio enfrentado pelo público feminino seja ainda maior. Uma vez que, dentro desse ambiente exclusivamente masculino, lidar com o clima de tensão atrelado ao machismo e à falta de representatividade da mulher, é um fator que pesa muito.
A primeira apresentadora mulher do programa Hell’s Kitchen – Cozinha Sobre Pressão do SBT , a chef pernambucana Danielle Dahoui que o diga. Dentro da gastronomia há mais de 20 anos e à frente de três restaurantes atualmente, a apresentadora em entrevista à BBC Brasil, relembra casos marcantes onde teve que enfrentar situações desrespeitosas pelos próprios cozinheiros de seu restaurante. Dahoui teve que ouvir que “não aguentaria mulher falando no seu ouvido”, após a chef chamar a atenção de um cozinheiro devido a um erro cometido na preparação das carnes. Após o erro ser cometido mais uma vez e Dahoui ter chamado a atenção de novo, ela foi vítima de abuso verbal por parte do cozinheiro: “Ele disse que nem a mãe dele falava daquela forma com ele e que não seria uma mulher que faria isso, enquanto segurava uma faca na minha direção. O cara nunca faria isso com um homem.”
“O mundo é um lugar machista, e a cozinha profissional não é diferente”, diz Danielle Dahoui, chef e apresentadora do programa Hell’s Kitchen. (Créditos: Lufe Gomes)
Desde que assumiu o comando do programa, ele passou a ter um novo slogan: “lugar de mulher é aonde ela quiser, até na cozinha”. Segundo Danielle, para uma mulher conquistar o seu espaço da cozinha, deve ter atitude e personalidade. E não ter medo de engolir alguns sapos e de bater de frente para ter seu trabalho reconhecido. Até porque, a representatividade contribui para que o assunto seja cada vez mais discutido e desconstruído. “Temos de parar de questionar se esse preconceito existe. Está mais do que provado. Precisamos é falar sobre isso. E, ao se deparar com machismo, a mulher deve parar, respirar e dizer: ‘Acredita em mim, porque eu vou fazer um bom trabalho e você vai adorar’.”, desabafa Danielle.
Além de todo o assédio moral em que a mulher é submetida dentro de um ambiente profissional de cozinha, ainda existe a questão do assédio sexual. Ser mulher em um ambiente estritamente masculino é estar sujeita a piadinhas e cantadas com conotações sexuais e todo tipo de provocação. “Preparo até 100 pratos por dia, e eles não podem demorar mais do que vinte minutos para ficar prontos. É difícil, mas eu tiro de letra. O que me deixa louca da vida é ir às mesas, para saber o que os clientes acharam dos pratos, e engraçadinhos passarem cantadas, do tipo: ‘Não quer cozinhar só para mim, em Paris? ’”, desabafa a chef do restaurante Bodega Franca, Tais Bulgarelli, de apenas 26 anos. A própria chef Danielle Dahoui comenta que no início da carreira, desacreditavam de sua capacidade: “Diziam que no máximo eu ia cozinhar para um marido rico”.
Trabalhar na cozinha doméstica já não faz mais parte do sonho das mulheres que se encantam pela cozinha. Elas querem mais. Querem conquistar os lugares mais altos. Querem ter o seu espaço e serem ouvidas através dos seus pratos. Querem emocionar e trazer a força da sua fragilidade dentro de sabores únicos e pratos inesquecíveis. Não querem apenas ser restritas à confeitaria ou comida para agradar marido. E muito menos serem questionadas de sua capacidade dentro do ambiente que escolheu – seja a cozinha ou qualquer outro.
A chef do restaurante Chá Yê de São Paulo, Marina Santos, fala em entrevista para o site Vice, que a primeira percepção machista que teve a partir do momento em que entrou nesse meio, foi quando recebeu inúmeras sugestões de homens para que ela migrasse para a área da confeitaria, uma vez que ela possui um porte pequeno e aparência frágil. E ela salienta: “Acho que isso de estarmos trabalhando na cozinha já é um crescimento. Hoje, posso citar várias chefs que me inspiram. A mulher conseguiu se inserir num trabalho cujo ambiente era antes extremamente masculino e machista.”
“Gente feliz incomoda muita gente, mulher feliz incomoda muito mais”
Em pleno século XXI, ainda é difícil para alguns homens aceitar que as mulheres podem assumir postos iguais ou até mais significantes, principalmente em ambientes profissionais. Apesar da luta não ter acabado – é só analisar o salário das mulheres em relação ao dos homens em cargos iguais – as mulheres vêm caminhando para assumir seu espaço no mercado de trabalho, seja em qualquer área que ela escolha.
As mulheres sempre vêm atrás dos homens quando o assunto é sucesso profissional. Até quando? (Créditos: Reprodução)
É que mulher feliz incomoda. Mulher tomando as rédeas da própria vida ainda causa constrangimento nessa sociedade machista e sexista em que vivemos. Mulher assumindo lugar que “deveria ser de homem” então, causa revolta. Mulher bem resolvida e bem sucedida ainda causa espanto. Isso em pleno século XXI.
Dentro da cozinha, considerada o hábitat natural das mulheres pelos homens machistas, o machismo ainda é mais evidente. Mulheres dentro da cozinha, cozinhando para os maridos e filhos e sendo uma mulher “do lar” é o ideal. Mas, ganhando dinheiro, prestígio e reconhecimento numa cozinha profissional, é considerada incapaz. É considerada emocional demais. Fraca demais.
A verdade é que felicidade alheia incomoda. Felicidade da mulher então…dura pouco diante de um ambiente machista. E a cozinha profissional, tão moderna e requintada como vemos nos programas de televisão e nas atuais competições gastronômicas, ainda se mostra retrógrada e antiquada dentro de seus bastidores. Ainda bem que uma simples fala de um competidor trouxe essa discussão à tona, uma vez que essas situações de machismo acontecem em ambientes fechados. Para que cada vez mais mulheres não se calem perante abusos vindos de qualquer tipo de chef(e). Até porque, mulher é ser humano. Tem sonhos e vontades. E pode ocupar o lugar que ela quiser.