Baseada no funcionamento do sistema imunológico de algumas bactérias, técnica foi testada em embriões humanos e estabeleceu novos limites à ciência
por Camila Nishimoto, Heloísa Scognamiglio e João Pedro Pavanin
Cientistas ligados à Academia Nacional de Ciências e à Academia Nacional de Medicina, ambas dos Estados Unidos, lançaram, em fevereiro de 2017, um relatório com critérios éticos e de segurança para a edição do gene humano. Intitulado “Edição do Genoma Humano – Ciência, Ética e Controle” (em tradução livre), o documento, com mais de 230 páginas, estabelece seis critérios a serem respeitados para que a edição genética em humanos seja permitida:
- É preciso que não haja outras alternativas razoáveis para os tratamentos que se pretendem realizar;
- Restringe-se a edição a genes que possam causar uma doença ou condição grave;
- É preciso que exista dados pré-clínicos e/ou clínicos claros sobre riscos e potenciais benefícios para a saúde do paciente;
- Estipula-se o monitoramento contínuo e rigoroso durante os ensaios clínicos;
- Solicita-se planos abrangentes para o acompanhamento da geração atual e das seguintes a longo prazo;
- Preconiza-se uma reavaliação contínua dos benefícios e riscos para a saúde e a sociedade.
O documento surgiu após Jennifer Doudna, geneticista e professora da Universidade da Califórnia, desenvolver uma técnica de modificação do DNA parecida com a utilizada por bactérias no combate a invasões virais. A técnica foi batizada de CRISPR/Cas9. CRISPR é o nome dado ao sistema imunológico adaptativo das bactérias, capaz de identificar o DNA viral e destruí-lo. Cas9 é o nome dado a uma das proteínas que compõem esse sistema, capaz de procurar, fragmentar e degradar o DNA invasor.
As academias assumem posição contrária à manipulação genética para quaisquer outros objetivos escusos. “As agências reguladoras não devem, neste momento, autorizar ensaios clínicos de edição de genomas somáticos ou germinativos para fins diferentes do tratamento ou prevenção de incapacidades ou doenças”, como consta na página 148 do relatório.
Foi o insight necessário para que a cientista direcionasse sua pesquisa para a edição do genoma humano. Por meio dos estudos sobre a proteína Cas9, a equipe de Doudna descobriu que poderia usá-la como tecnologia de engenharia genética. “Uma ferramenta capaz de apagar ou inserir com precisão partes específicas de DNA dentro das células”, explica a cientista. As possibilidades de aplicação são diversas. A CRISPR/Cas9 foi utilizada para alterar o DNA em células de camundongos e macacos.
Cientistas chineses da Universidade de Yat-sen University tentaram usar a tecnologia para alterar os genes de embriões humanos. A intenção era corrigir a sequência genética responsável pela beta-talassemia. Contudo, o resultado ficou aquém das expectativas da equipe comandada pelo professor Junjiu Huang. Os testes, realizados com embriões inviáveis, tiveram índice de 4% de sucesso. Mediante euforias e incertezas, a descoberta da CRISPR/Cas9 suscita discussões que vão além da aplicação práticas da edição genética.
Apesar de não ser o primeiro método de manipulação genética que surgiu, a CRISPR/Cas9 tem gerado preocupação por ser uma técnica mais barata e de fácil aplicação. Ela permite mudanças nas células germinais dos humanos, havendo, com isso, a possibilidade de as modificações feitas no genoma de um indivíduo passarem aos seus descendentes.
Por isso, existe preocupação na comunidade científica da área da genética com os possíveis efeitos de longo prazo da utilização do método – entre os quais poderia estar uma nova espécie humana que ainda não conhecemos. Simultaneamente, no meio especializado, a CRISPR/Cas9 gera entusiasmo nos laboratórios, com muitos pesquisadores confiantes em seu potencial para a cura de doenças genéticas.
Desde a década de 1990, a comunidade internacional estipula diretrizes para regulamentar a manipulação genética em humanos. Em 1997, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aprovou a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos. Como consta no artigo 1º:
“O genoma humano constitui a base da unidade fundamental de todos os membros da família humana bem como de sua inerente dignidade e diversidade. Num sentido simbólico, é o patrimônio da humanidade”
Em 2004, a UNESCO aprovou a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, seguindo os objetivos da declaração de 1997 de garantir o respeito e a proteção dos direitos da humanidade e dos seus dados genéticos. Em 2005, a organização adotou a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, na qual a comunidade internacional se comprometeu a aplicar os princípios fundamentais da bioética.
Esses documentos serviram como base para inúmeros países elaborarem suas próprias legislações em relação ao tema, com foco tanto na segurança da espécie, quanto em seus princípios éticos. No Brasil, há a Lei da Biossegurança (Lei 11.105/2005), que regulamenta procedimentos de manipulação genética.
Segundo Regina Parizi, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), o debate atual se dá em torno da segurança da manipulação, bem como da questão das crenças religiosas e a sacralidade da vida. “A falta de segurança atual na manipulação, mesmo com a técnica CRISPR/Cas9, que consegue ‘editar’ o DNA, pode trazer resultados desastrosos na manipulação de embriões: como ter uma criança loura de olhos azuis, conforme a escolha de seus pais em relação aos padrões de beleza, mas ser portador de Leucemia, por exemplo”, explica ela.
Para Regina, o tópico será tema de cada vez mais discussões no Brasil. “Certamente mais discussões ocorrerão, uma vez que o Brasil, desde 2008, superou algumas restrições no Supremo Tribunal Federal sobre o Artigo 5º da Lei de Biossegurança, que trata da manipulação e pesquisa com células-tronco embrionárias”, relata. Na ocasião, o tribunal decidiu que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida ou a dignidade humana.
Gisele Leite, mestre em Filosofia, doutora em Direito e docente na FGV, aponta a falta de estímulo às pesquisas na área no Brasil. “A ciência genética evoluiu em todo o mundo, o que obviamente afeta o nosso país – onde, aliás, não há incentivos sérios nem à pesquisa, muito menos ao debate”, declara ela.
Gisele fala sobre um dos maiores temores de estudiosos no que diz respeito à manipulação genética: a eugenia. “A Lei da Biossegurança só permite a manipulação genética para fins de tratamentos terapêuticos e principalmente para prover a cura de patologias fatais – não para atender a vaidades e ambições de eugenia”, comenta. Segundo ela, a ideia de se “arquitetar um super-homem”, desenvolvido geneticamente, atenta contra o conceito de dignidade humana.
De acordo com Regina Parizi, a associação que as pessoas fazem entre edição genética e eugenia é frequente porque ambas se baseiam em fundamentos da área da genética. Mas ela assegura que as regulações existentes são suficientes.
“Hoje separamos esse debate entre a manipulação genética e aspectos relacionados à aparência. A primeira tem por objetivo diminuir o sofrimento humano, eliminando doenças e malformações, enquanto a segunda está associada ao ‘embelezamento’ e ‘aperfeiçoamento’ dos humanos”, esclarece. Ela ainda afirma que “os horrores das experimentações nazistas já nos mostraram naquele tempo a necessidade de uma regulação ética para proteger a sociedade”.
Veja no infográfico abaixo como se posicionam 3 religiões com relação à engenharia genética e seus impactos na vida.
As consequências da implantação e massificação da tecnologia CRISPR/Cas9 ainda são nebulosas até mesmo dentro da comunidade científica especializada. Previsões e projeções existem e endossam tanto os efeitos positivos, quanto os negativos da edição genética. Argumentos sólidos existem em ambos, o que mostra a inexistência de um consenso acerca da modificação do DNA humano.
A possibilidade de corrigir genes defeituosos com uma facilidade nunca vista antes é a grande vantagem da tecnologia CRISPR, segundo sua criadora, Jennifer Doudna. Pode-se induzir a reparação do DNA e conseguir, na avaliação da própria cientista, “feitos surpreendentes” como corrigir as mutações que causam a anemia falciforme ou a doença de Huntington.
Os próprios pesquisadores da área de genética têm preocupações acerca da aplicação da edição do genoma em embriões humanos, mesmo existindo, nos Estados Unidos e em outros países, sistemas regulatórios que tratem das problemáticas da técnica a nível individual.
As preocupações sociais e futuras são suscitadas pelo próprio relatório. “Realizar mudanças que podem ser herdadas pelas futuras gerações levanta questionamentos acerca da possibilidade de prever os efeitos a longo prazo das edições propostas e se é apropriado que humanos alterem propositalmente quaisquer aspectos do seu futuro genético”.
Em artigo publicado em 2015 na revista científica Nature, Edward Lanphier, Fyodor Urnov e outros especialistas apontaram que “não é possível imaginar uma situação na qual o uso da edição genética em embriões humanos ofereça maior benefício terapêutico do que os métodos já existentes”.
Para eles, a chance da criação de um mosaico genético, condição na qual o indivíduo nasce com algumas células com número de cromossomos diferentes, sobrepõe-se às melhorias previstas pela edição do genoma humano.
O indivíduo que nasce a partir deste processo possuirá algumas células com um número de cromossomos diferentes. Por padrão, o número de cromossomos nas células de um organismo que não sofreu mutação é sempre o mesmo.
Citadas como métodos alternativos menos arriscados estão diagnósticos genéticos realizados durante o pré-natal ou fertilização in vitro após uma avaliação pré-implantacional, que permite utilizar na inseminação apenas células reprodutivas saudáveis geneticamente.
A presidente da SBB, Regina Parizi, reitera como é importante que as manipulações sejam feitas de maneira segura. “O que continua necessário do ponto de vista ético é o aumento da segurança nas técnicas de manipulação e sempre uma discussão muito transparente com a sociedade de qual o objetivo da pesquisa”, diz ela.
Ainda que exista entusiasmo com as possibilidades oferecidas pela CRISPR, Jennifer Doudna não ignora a problemática ética da edição do genoma humano. Segundo ela, a tecnologia “levanta uma série de questões que temos de considerar com cuidado; e esse é o motivo pelo qual eu e meus colegas pedimos uma pausa global em qualquer aplicação clínica da tecnologia CRISPR em embriões humanos, para termos tempo de realmente considerar todas as implicações de se fazer isso.”
Se você se interessou pelo tema, confira sugestões de obras que abordam a engenharia genética.