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Movimento Antimanicomial no Brasil: quais são as pautas hoje

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Especialistas em saúde mental falam sobre os “retrocessos” que as políticas da área vem sofrendo e como o movimento tem se fortalecido

Nas paredes do Conselho Regional de Psicologia (CRP) de Bauru, cartazes reforçam o posicionamento órgão em favor da Reforma Psiquiátrica.

Por Paula Bettelli

Em 6 de abril de 2001, a Constituição brasileira dava o primeiro passo para desativar os hospitais psiquiátricos do país – conhecidos por serem espaços permissivos à violação de direitos humanos. Foi quando o presidente da época, Fernando Henrique Cardoso, aprovou a Lei da Reforma Psiquiátrica, direcionando a assistência em saúde mental a um modelo não-manicomial.

Proposta pelo então deputado federal Paulo Delgado (PT-MG), através dela foi criada a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que substitui o método asilar pelo tratamento em liberdade. O processo de luta que levou à Reforma, no entanto, é de décadas antes.

No final dos anos 70, trabalhadores em saúde mental, pacientes, familiares, estudantes e movimentos sociais passaram a se manifestar contra os abusos sofridos por internos em hospitais psiquiátricos. Entre as denúncias estavam agressões físicas, tortura, abusos psicológicos, superlotação e falta de higiene nos espaços.

O nascimento da luta antimanicomial no Brasil se deu, em vários estados, no mesmo período em que a classe trabalhadora, o movimento negro, indígenas e universitários se organizavam pelo enfrentamento à ditadura militar. Mas foi em 1987, no II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, que oficializou-se o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Através da Carta de Bauru, manifesto que levou o nome da cidade sede do Congresso, 350 militantes presentes delinearam as pautas do movimento. “Contra a mercantilização da loucura”, a carta reforça a aproximação da Luta Antimanicomial com os ideais do movimento popular e da classe trabalhadora.

O psiquiatra Roberto Tykanori, um dos mais reconhecidos especialistas da área, é lembrado como uma grande referência presente na elaboração da carta. Ele conta que na época, a ideia de uma sociedade sem manicômios era pouco creditada. “A maior parte das pessoas, inclusive do setor progressista, concebia que um hospital psiquiátrico bem gerenciado, em uma conjuntura de democracia, faria sentido”.

Foi a partir do encontro de 1987 que essa bandeira, até então considerada radical pelos militantes, passou a ser levantada como objetivo principal do movimento. “O Encontro de Bauru é uma ruptura de perspectiva e criação de um novo horizonte. Foi aí que começou a se discutir todo esse tema de que o hospital psiquiátrico é a caricatura das relações de dominação da sociedade capitalista”, lembra Tykanori.

Muito aconteceu de lá para cá, e trinta e um ano depois psicólogos, psiquiatras e ativistas permanecem levando em frente os ideais da luta e a busca por introduzi-los nas políticas públicas de saúde mental.

Hoje, não só visam uma sociedade sem manicômios, mas também o fim da “cultura manicomial”. Caroline Cusinato, coordenadora da subsede do Conselho Regional de Psicologia (CRP) de Bauru, membra do núcleo de saúde do CRP de São Paulo e integrante do Fórum Permanente Intersetorial de Saúde Mental de Bauru, explica a questão. “Compreender a luta antimanicomial como algo que vai romper com práticas manicomiais. Hoje a gente também fala dessas práticas em diversos espaços. Então vem com a proposta de acabar com esse modelo manicomial que permeia as práticas, permeia as estruturas e permeia as políticas”.

A nova lei 13.840, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 5 de junho, é uma expressão dessa “prática manicomial”. Ela altera a Política Pública sobre Drogas e também sobre Saúde Mental. Assim, a internação involuntária de usuários de substâncias psicoativas, até então permitida através de ordem médica e contrabalanceada pelo Ministério Público, é facilitada, e pode ser ordenada por um juiz, sem intermediações.

Juliana Peixoto Pizano, psicóloga integrante do Fórum Permanente Intersetorial de Saúde Mental de Bauru e parte do Conselho Municipal de Direitos Humanos da cidade, chama essa prática de “judicialização da saúde”. 

Ela conta que participou de inspeções nacionais a hospitais psiquiátricos em dezembro de 2018, com envolvimento do Conselho Federal de Psicologia, do Conselho Regional de Psicologia, do Mecanismo de Combate à Tortura, do Ministério Público e do Ministério Público de Trabalho. Visitou hospitais da região noroeste do interior paulista, e afirma que em alguns encontrou pacientes há nove meses internados aguardando a liberação de um juiz. “Então não é a equipe de saúde que define o tempo, é uma questão judicial”.

Roberto Tykanori, que no governo Dilma durante cinco anos foi coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde, recorda que os avanços em torno das políticas de saúde mental ocorreram juntamente com a construção da democracia no país. 

“Se você quer uma sociedade democrática você não pode ter mecanismos onde alguém vai, aponta o dedo e suspende o direito de ser cidadão de qualquer pessoa. A Lei 10.216 [Lei da Reforma Psiquiátrica], o espírito central mais importante que ela trouxe é exatamente a ideia de que um cidadão, mesmo acometido de doença mental, continua sendo cidadão”, enfatiza, se referindo ao caráter anti-democrático da nova lei.

Além da internação contra a vontade do paciente, a Lei 13.840 também estabelece a abstinência como forma de tratamento. Segundo o artigo “Redução de danos: posições da Associação Brasileira de Psiquiatria e da Associação Brasileira para Estudos do Álcool e Outras Drogas”, impedir a pessoa de usar substâncias psicoativas não é o melhor método para reduzir o problema.

 “O princípio de tolerância zero estabelece uma dicotomia absoluta entre nenhum uso e qualquer uso, sem distinguir as diferentes dimensões de danos associados aos distintos padrões de uso. (…) A abordagem de redução gradual estimula os indivíduos que tenham comportamento excessivo ou de alto risco a dar um passo de cada vez para reduzir as conseqüências prejudiciais de seu comportamento”, diz o texto.

O Movimento Antimanicomial argumenta que tais políticas pretendem o lucro em cima dos corpos de pessoas em sofrimento psíquico. De acordo com dados obtidos por Guilherme Peres Messa em seu livro “Psicopatologia fenomenológica contemporânea”, na década de 70, quando ocorreu a mais ampla privatização de serviços de saúde no Brasil, haviam 340 hospitais no país, do quais 277 eram privados e 63 públicos. Em 1981, a rede hospitalar privada cresceu ainda mais, alcançando 425 hospitais. Nenhum hospital público foi aberto entre 1971 e 1981.

Dados do Ministério da Justiça de 2015 mostram que, quatorze anos depois da Reforma, o financiamento público para comunidades terapêuticas beneficiava 371 unidades privadas, gerando mais de oito mil vagas em todo o país. Eram pagos mil reais por mês para cada paciente adulto e 1.500 reais para adolescentes ou mães.

Hoje, a maior parte dos atendimentos são feitos pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), um dos sete serviços oferecidos pela RAPS, vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Não é só ofertar atendimento e consulta, mas essas redes são fontes de leitura, de ler a realidade das pessoas para pensar a política”, descreve Tykanori.

Juliana Pizano, que é psicóloga no CAPS I de Bauru, afirma que o que vem ocorrendo é a desconstrução do SUS. Com isso, o trabalho dos funcionários é dificultado. “A gente precisaria de uma rede que tivesse um investimento, funcionando com um grande número de serviços, profissionais contratados. Então isso não foi feito da maneira como deveria para dar conta”, contesta.

O desmonte do SUS, aliado ao aumento de políticas consideradas “autoritárias”, são vistos com receio pelos trabalhadores em saúde mental. Segundo eles estão sendo trocados recursos que foram adaptados por estudos por recursos “anti-científicos”.

“Esse governo que hoje está aí desconsidera a ciência. Quando você tira a educação do foco central como estratégia de crescimento da sociedade, quando você ‘desinveste’ em pesquisa científica, desmonta a universidade, acho que mais que não ser científico, é um projeto onde não é necessária a ciência, não é conveniente para os interesses das pessoas que estão no governo. Onde a verdade atrapalha”, declara Roberto. 

Para ele, essas são estratégias usadas para esconder a profundidade do problema. O psiquiatra cita Alberta Basaglia, psiquiatra italiana, que protestou: “Não consigo entender, a pessoa diz que está com fome, você dá uma cama de hospital psiquiátrico, a pessoa diz que está com frio, você dá uma cama de hospital psiquiátrico, a pessoa está perdida, você dá uma cama de hospital psiquiátrico”. Se referindo a respostas totalizantes para obstáculos concretos.

Cartaz oficial do II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental ocorrido em Bauru, cidade do interior paulista, em 1987. Nele foi escrita a Carta de Bauru, referência do movimento antimanicomial brasileiro.
Cartaz oficial do II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental ocorrido em Bauru, cidade do interior paulista, em 1987. Nele foi escrita a Carta de Bauru, referência do movimento antimanicomial brasileiro.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), determinantes sociais da saúde são fatores externos que influenciam no processo de adoecimento psíquico. Caroline Cusinato, diretora do CRP de Bauru, considera que “a gente já tem superado o modelo biologizante e reducionista do processo de saúde-doença”. Ela cita o racismo, a homofobia, a transfobia, a violência de gênero, a pobreza e a miséria como exemplos desses determinantes. “Tudo isso são violências estruturais que fazem parte do modo como a gente está organizado socialmente”, adverte.

Para os três trabalhadores em saúde mental entrevistados, as políticas da área devem ser feitas reconhecendo as necessidades específicas do contexto e do indivíduo. E para além, precisam andar junto com a garantia de direitos básicos da população. “Deve-se criar então política de moradia, política de trabalho, política de educação, política de inclusão”, especifica Tykanori. 

Conhecido nacionalmente por seu envolvimento e contribuições significativas para as questões de saúde mental no país, o ex-coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde, diz que após quase quatro décadas de militância, percebe que um dos eixos fundamentais para a estabilização emocional é a moradia.

“Depois desses anos todos, me parece que vai ficando nítido o quanto é necessário ter um política de moradia digna para todos. Emocionalmente, você ter um local que é sua referência, sua identidade, onde você pode se proteger, pode voltar todo dia, um lugar que você tem para você se colocar sem medo, acho que isso é essencial”.

Discursos da mídia e do governo federal, segundo as psicólogas entrevistadas, reforçam a ideia do usuário de drogas como “o novo louco”, trazendo de volta a imagem que se tinha, durante o século XX, de prostitutas, pessoas em situação de rua, mulheres que não se adequaram aos padrões sociais, ciganas, pobres, e qualquer pessoa que incomodasse a ordem – consideradas loucas sem diagnóstico real e isoladas do convívio social.

O Movimento Antimanicomial Nacional, no entanto, mantém-se na luta, aliado a diversos movimentos sociais que hoje se posicionam contra as políticas públicas de “retrocesso”. Todo ano, em 18 de maio, é comemorado ao redor do país o Dia Nacional da Luta Antianicomial – data determinada pelo II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental em 1987. Setores de saúde mental aliados a Secretarias da Saúde organizam atividades para relembrar dos avanços e apresentar, para as gerações que chegam, onde a luta está e também para onde vai. “O movimento antimanicomial se torna mais necessário do que nunca”, finaliza Tykanori.

Redação

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