Por Camila Valente, Giovanna Cornélio, Isabelle Hoffmann,
Julia Gottschalk, Laís Bianquni
Gêneros musicais como o jazz, o reggae e o axé, marcas de importante expressão artística e legitimação da cultura negra, se espalharam pelos quatro cantos do mundo. Isso não ocorreu apenas através de intérpretes negros, mas principalmente de artistas brancos como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Claudia Leitte, que movimentam a indústria milionária do axé.
O Axé Music completa 30 anos em 2015. O estilo musical que surgiu durante os carnavais de Salvador, é composto por uma mistura de ritmos, como samba-duro, ijexá, deboche, merengue, galope, samba-reggae e outros gêneros semelhantes de origem africana e influência caribenha. Ao longo do século XX, essa festa incorporou as mais variadas manifestações culturais da cidade e se tornou palco de uma das maiores festas do Brasil, mas deixou profundas marcas de segregação espacial e social. Com a explosão do Axé Music nos anos 90, os tradicionais trios elétricos, que um dia democratizaram o carnaval soteropolitano, desencadearam um negócio milionário. “Nem a bossa-nova, nem qualquer outra coisa, nem a Tropicália, tudo isso, ninguém nunca vendeu tanto disco quanto a gente vende e fez tanta alegria quanto a gente faz”, afirmou o cantor Luiz Caldas. Porém, o povo, que antes era conduzido democraticamente pelo trio elétrico, hoje, fica de fora da grande festa. Os trios foram transformados em mercadoria e neles apenas entram quem pode pagar, e pagar caro.
Um pacote de um camarote famoso para três dias chega a custar mais de R$ 2 mil. O prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), conta que o carnaval da cidade movimentou, em 2014, R$ 1,3 bilhão e gerou cerca de 210 mil empregos temporários. Apesar de gerar tanto dinheiro, a festa é palco de pobreza e exploração. A indústria do carnaval passa, por meio da mídia e da movimentação de grandes recursos financeiros, gerando altos lucros para os empresários, a imagem de que o carnaval de Salvador é a maior festa do mundo. Porém, esconde um grande problema social, o da desigualdade de classes. O carnaval marginaliza a maior parte da população local, que não pode ter acesso aos blocos e camarotes, que acaba se sujeitando a serviços pesados, com baixa remuneração e nenhum reconhecimento.
Segundo Clímaco Dias, professor de Geografia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), as condições de trabalho são precárias, principalmente dos “cordeiros”, pessoas que carregam as cordas dos blocos particulares para manter afastados aqueles que não pagaram. Esses trabalhadores recebem cerca de R$10,00 por dia, trabalham em torno de 10 horas seguidas, se alimentam mal e, por vezes, sofrem com problemas auditivos, causados pela falta de protetores auriculares. “O trabalho infantil também é algo assustador, principalmente com os catadores de latas de alumínio. Isso eu já venho denunciando desde 2000 e ninguém toma uma providência. São problemas que precisam de soluções urgentemente”, alerta.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Cordeiros do Estado da Bahia, Matias Santos, defende o reconhecimento e valorização desses trabalhadores. Ele diz que, na capital baiana, há cerca de 50 mil profissionais que estão expostos a brigas e agressões daqueles que querem transgredir a corda. Segundo ele, alguns foliões chegam a jogar cerveja e água nos trabalhadores. Para melhorar as condições de trabalho, ele defende a assinatura de um contrato formal entre o trabalhador e os empresários. “Esse profissional tem importância para o carnaval, assim como Ivete Sangalo, Bell Marques, os blocos e as grandes cervejarias. Ele faz parte do carnaval”, ressalta.
Desde 2006, o Ministério Público do Trabalho na Bahia assina um termo de compromisso com o sindicato, os blocos carnavalescos e a Superintendência Regional do Trabalho. Entre os compromissos assumidos pelos empresários, estão a garantia de lanches, protetores auriculares, luvas, camisetas de identificação, filtro solar e seguro coletivo contra acidentes, mas essas medidas nem sempre são atendidas.
“Que bloco é esse? Eu quero saber.
É o mundo negro que viemos mostrar pra você”
Com o maior e mais famoso carnaval de rua do mundo, Salvador recebe, em média, 600 mil turistas por ano. Nele, os blocos afros e a população da cidade que o compõe, já foram a atração principal da festa. Hoje, o foco do carnaval são os trios elétricos e os visitantes que os acompanham. Em média, há 140 entidades de Carnaval de matriz africana na cidade e, apesar de serem a origem da festa, lutam para manter sua presença na folia.
O especialista Paulo Miguez, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA, ressalta que é preciso dar atenção aos blocos afros, que sofrem de “invisibilidade”, já que a mídia está mais interessada em grandes celebridades. O professor afirma que blocos de origens africanas “devem ser apoiados com base em políticas culturais, sob pena de correrem o risco de desaparecer”. Ele ressalta que esses blocos afros têm uma importância na cena cultural baiana que ultrapassa o carnaval e que produziram um impacto de grande envergadura na cultura e no cotidiano de Salvador. “Quando emergem, causam um impacto que vai se espraiar pelo conjunto da cultura baiana e vai trazer não só um desejo de participar da festa, mas um desejo de afirmação étnica e política das comunidades negras e mestiças”
Dentro da Bahia existem diversos carnavais, cada um é voltado para um público e, de acordo com Clímaco Dias, professor de Geografia da UFBA, o carnaval de Salvador não segrega apenas classes e grupos sociais, mas também o espaço físico. Para ele, a hegemonia dos blocos particulares acabou com a festa popular mais famosa do Brasil. Houve uma descaracterização do carnaval e a apropriação pela elite de uma manifestação cultural própria do povo e que “embranquece” uma festa “negra”. Esse foi o caminho que o carnaval seguiu para se transformar no que é hoje, e os blocos tomaram a dimensão de um negócio cultural lucrativo, que envolve a participação de milhões pelas cidades brasileiras.
Na Barra é onde desfilam os principais nomes do Axé Music, a hegemonia de artistas que a iniciativa privada se interessa em patrocinar, já que atraem um grande número de turistas. Nessa festa, feita basicamente para a classe média, só entra quem pode pagar e o povo fica apenas como um espectador secundário. “O povo é um espectador de segunda categoria. O carnaval do centro da cidade é popular, mas é um popular que não tem uma organização e disposição de divulgação dos desfiles de blocos afros. Isso acaba deixando o espaço um tanto esvaziado”, acrescenta o professor. Mas, segundo Clímaco, existem vários carnavais na Bahia. Agora, todos os carnavais são hegemonizados por um pequeno grupo de artistas. Desde meados dos anos 90, uma quantidade pequena de artistas são responsáveis por organizar as principais atrações do carnaval. “Aí o que acontece? Ivete Sangalo tem fila de patrocinadores e, enquanto isso, a prefeitura de Salvador não conseguiu fechar uma cota ínfima de patrocínio de R$ 8 milhões”, diz. O governo do estado ajudou, mas ainda existiu um déficit para completar a cota. Percebe-se que a prefeitura fica sem muitas opções e o que fazer. E a iniciativa privada não se interessa, pois os blocos dos artistas consagrados dão mais visibilidade às marcas. “No começo, os trios elétricos chegaram e romperam com a festa elitizada dos clubes e mansões. Só que, hoje, ele é quem atende à elite e foi transformado em mercadoria e instrumento de ganho de capital”, explica o professor. Alberto Pitta, presidente da Liga dos Blocos Afros, acrescenta: “O Carnaval de Salvador foi vendido e ninguém quer abrir mão de sua parte, porque os lucros são grandes. Só que ninguém lembra que tudo isso só existe por causa dos blocos.”
O processo de comercialização do carnaval cresce cada dia mais e obriga a festa a aprimorar-se. Toda a beleza plástica e visual se converte em um grande espetáculo de cores, som, luz, movimentos e efeitos, e que, a partir da transmissão, realizada pelas emissoras de TV e outros meios de comunicação, alcança distâncias ainda maiores. A principal preocupação tornou-se atender ao crescente público da elite que participa da festa e gera lucro aos empresários do meio, que investem no aprimoramento, cobertura e transmissão do evento, porém foge das concepções iniciais da festa carnavalesca.