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O projeto Agenda Preta valoriza a cultura de negros para negros e traz visibilidade para artistas não representados na mídia hegemônica

Por Clara Tadayozzi e Giovana Murça
 

A Agenda Preta é um calendário cultural online e colaborativo da comunidade negra da capital paulista e Grande São Paulo. A iniciativa foi idealizada por Junior Rocha e hoje conta com o apoio de Bruna Salles na organização do site. O projeto busca, por meio da divulgação de eventos que envolvem ou são promovidos pela população negra da metrópole, fomentar a visibilidade dessas pessoas.

Considerando o cenário sócio-histórico brasileiro, que é fortemente marcado pelo preconceito racial e pela ascensão de determinados grupos sociais em detrimento de outros, ações como esta são de extrema importância para desconstruir padrões culturais nocivos à sociedade.

Por ser um projeto colaborativo, as pessoas podem enviar os eventos que pretendem divulgar, desde que atendam a alguns requisitos especificados no site, como o de serem voltados exclusivamente para a comunidade negra. Além disso, também são divulgadas notícias que envolvem esse segmento e textos opinativos que promovem a reflexão sobre temas importantes que influenciam a construção sócio-cultural em seu entorno. “A gente precisa documentar. É importante porque a comunidade precisa disso”, destaca o idealizador Junior Rocha.

É inegável a importância das contribuições da cultura africana na construção da identidade brasileira. As influências dessa cultura se refletem em toda parte, mas devido a um processo de apropriação cultural que se consolidou no país, acabaram se perdendo de suas raízes e passaram a ser valorizadas apenas quando associadas à cultura dominante que as apropriou, ou seja, aos brancos.

Não só um meio de romper com preconceitos, a Agenda Preta se figura como um ato de resistência e de luta. Trata-se de um portal que vai contra os meios de comunicação tradicionais e que é feito pela e para a população negra brasileira, em busca de uma sociedade mais igualitária. “Existem ações quase todos os dias, se você não vê no Facebook ou na Agenda Preta, você não vê em lugar nenhum. Precisamos estar lá, uma vez que a gente produz também conteúdo, capital intelectual. A gente precisa também ocupar esses espaços que por vezes nos é negado”, ressalta Bruna Salles.

Conheça mais sobre o projeto na entrevista com os idealizadores.

 
Representatividade: a gente (não) vê por aqui

A figura do negro é pouco apresentada na mídia. Os dados da pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, revelam que apenas 4% de mulheres não-brancas protagonizaram novelas da Rede Globo, entre 1995 e 2014. Nenhuma dessas novelas teve um protagonista masculino preto. Essa representatividade é ínfima, considerando que a população negra concentra 53,6% dos brasileiros, segundo pesquisa do IBGE de 2014. “O que a gente vê na TV não é a realidade do povo brasileiro”, expressa o sociólogo do Instituto Cultural Samba Autêntico, Tadeu Augusto Matheus.

“Não há uma representatividade, tem-se uma sub-representatividade”, esclarece a advogada e graduanda em Ciências Sociais, Sara Araujo, “e quando se vê um negro dentro dessas mídias, é de forma estereotipada e desumanizada”, completa. A exemplo disso, esses 4% de protagonismo concentraram papéis representados por apenas três atrizes: Taís Araújo, Juliana Paes e Camila Pitanga. As três refletem o perfil da “mulata brasileira”, a mulher negra com pele mais clara, que revela traços da branquitude valorizada por trás das câmeras.

Essa sub-representatividade se dá sem estranhamento por parte dos telespectadores, visto que há num cenário de normatividade branca. “No mundo racista, o padrão cultural é branco, então uma literatura branca é só literatura, e uma literatura feita por negros é literatura negra”, afirma Junior Rocha. Para a pedagoga especializada em Educação e Relações Raciais, Marlene Britto, essa ausência de representatividade tem como pano de fundo a definição de espaços sociais que a população negra deve ocupar. “A falta de representatividade faz parte de uma engenharia de controle que define destinos e mantém todas as formas de desigualdade”, explica Marlene.

Os personagens negros, quando aparecem, são, na maioria das vezes, personagens sem aprofundamento psicológico e protagonismo nas cenas. Acabam por ocupar papéis subalternos, com perfis que variam entre escravos, trabalhadores braçais, em situações de pobreza e criminalidade, homens malandros e mulheres hipersexualizadas.

A série “Sexo & as Negas”, de Miguel Falabella, foi uma releitura da famosa série “Sex & the City” e estreou na Rede Globo em 2014. A série recebeu muitas críticas, mesmo antes de ser lançada, pois reforçava os estereótipos da mulher negra pobre, sofrida, favelada e hipersexualizada – Foto: Estevam Avellar/TV Globo/ Divulgação

Com o objetivo de aumentar essa representatividade, o senador Paulo Paim (PT-RS) propôs o projeto de lei 4.370/1998.5, que estabelecia a cota mínima de participação de negros na dramaturgia e publicidade brasileiras. Para elencos de programas de televisão e teatro, a cota proposta era de 25% e, para peças publicitárias de televisão e cinemas, 40%. O projeto foi arquivado em 2006.

 
A voz do sistema

Uma pesquisa da Vaidapé de 2017 investigou a quantidade de apresentadores negros em sete emissoras de televisão brasileiras, em 204 programas transmitidos entre o segundo semestre de 2016 e o primeiro de 2017. Nos resultados, apenas 3,7% de apresentadores negros. Dos 272 apresentadores analisados, apenas 10 eram negros e estavam, sobretudo, em programas culturais, de entretenimento e de caráter religioso. Não figurava um apresentador negro sequer na programação jornalística, educativa e infantil.

Os dados revelam o quanto esses espaços de poder ainda são dominados pela população branca, que, embora em número seja minoria, continua detendo a maior parte do controle de todos os setores sociais do país. “O racismo não é apenas estrutural, ele é sistêmico, orgânico e perverso. As grandes mídias reproduzem, infelizmente, aquilo que é pensado pelo Estado brasileiro”, opina Tadeu Augusto.

Essas informações refletem o racismo intrínseco à sociedade brasileira, fruto de 358 anos de escravização da população negra, que teve o espaço negado nos ambientes de influência, mesmo após a abolição da escravatura em 1888 com a Lei Áurea. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, em 1988, portanto, um século desde a implementação da lei, a taxa bruta de escolaridade no nível superior da população preta era de apenas 3,6%.

“Formam-se jornalistas brancos, que vão olhar para o mundo branco, que tem patrões brancos; e tem um dinheiro que é produzido pela população preta, mas todo o capital intelectual é branco. Então é natural que se tenha uma mídia que é racista na sua estrutura”, enfatiza Junior Rocha. O sociólogo e sambista Tadeu concorda com essa ideia e relata: “Infelizmente vivemos numa sociedade que vai discutir a questão de produção cultural do ponto de vista de quem detém os meios de comunicação, de quem detém o grande capital; e por conta de um fator histórico, nós não estamos inseridos nesse processo”.

 
O racismo é “de lei”

A supremacia e valorização da cultura branca não é um fato novo. Em 1945, no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial, foi instituída uma lei por Getúlio Vargas que comprova o racismo do Estado brasileiro e reafirma a exaltação da cultura branca europeia. O decreto-lei estabelecia que, na entrada de imigrantes em território nacional, seria necessário “preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.

Legislação imigratória brasileira de 1945 – Reprodução

É possível notar que, além de existir uma preocupação em relação ao desenvolvimento da cultura europeia no país, subentende-se que os imigrantes aceitos só teriam essa ascendência. Ou seja, em um país onde existe o maior contingente populacional de negros fora da África e que foi primeiramente habitado por indígenas, teriam a entrada admitida apenas os europeus.

Essa visão eurocêntrica que caracteriza a cultura europeia como superior acabou por gerar um embranquecimento simbólico da produção cultural brasileira, que, em sua maioria, é composta por elementos trazidos pelos negros. Consolidou-se um processo de apropriação desses elementos, retirando-os de suas raízes originais e atribuindo-lhes um valor comercial, que atende a interesses da população branca dominante.

Essa apropriação cultural denuncia uma relação de poder, na qual uma cultura apreende e distorce a outra. O homem branco europeu detém o discurso e o poder de contar a história a partir de sua visão. Há, portanto, uma dinâmica que coloca a cultura branca europeia como o padrão, como centralizadora, restando a todas as outras culturas a posição de inferiores e periféricas.

Para a advogada Sara Araujo, é muito problemático ter somente uma narrativa colocada como a ideal e possível de ser ouvida. “A cultura negra e popular é sempre tida como marginal, exótica, estranha. É como se existisse algo que é real, validado, que merece ser contemplado, e outro está ali para aguçar a curiosidade”, explica.

 
Por trás da máscara branca

Os elementos culturais africanos foram determinantes para a formação da identidade brasileira. Entre eles, o samba, a capoeira, o maracatu, as religiões umbanda e candomblé, a feijoada, o acarajé, os dreads, as tranças, os turbantes e muitos outros.

Alguns desses elementos foram criminalizados, como é o caso da capoeira, que foi considerada crime pelo Código Penal de 1890. Outros foram, e ainda são, associados a estereótipos negativos de malandragem e criminalidade, como o samba, o rap e o funk. No caso das religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, o preconceito e a intolerância ainda são muito presentes. É comum, inclusive, verificar ataques de depredação aos terreiros dessas religiões, ainda que a discriminação religiosa seja considerada crime federal desde 1997.

Terreiro de candomblé Axé Oyá Bagan, no Distrito Federal, que foi incendiado em 2015. Segundo relatórios do Ministério dos Direitos Humanos, entre 2015 e 2017, a cada 15 horas foi feita uma denúncia por motivo de intolerância religiosa – Foto: Toninho Tavares/Agência Brasília

Esse desrespeito torna-se sistemático quando se trata de uma cultura vinda de um povo que era escravizado. “As pessoas negras na sociedade brasileira foram, até pouco tempo, tidas como não-humanas, como animais. Por que vai se respeitar?”, exclama Sara Araujo.

Parte desses elementos, como o samba, a capoeira e o turbante, hoje são exaltados pela mídia e sociedade, mas isso não significa que são valorizados. Isso porque ocorreu um processo de embranquecimento desses elementos para que fossem aceitos pela elite branca. Para o sociólogo Tadeu Augusto, essa elite enxerga a riqueza da cultura negra e a valoriza ainda mais quando pode reproduzir e lucrar com ela. “O branco é vendável. A cultura negra vende quando ela tem uma máscara branca”, justifica Junior Rocha.

Campanha da grife Farm, 2014. À direita, representação de Iemanjá, orixá de grande poder e importância no universo religioso afro-brasileiro – Foto: Instagram Farm/Reprodução

Uma vez apropriados pela cultura hegemônica, esses elementos perdem seu significado e são deslegitimados. “Quando o branco utiliza elementos que são considerados essencialmente da cultura de matriz africana, é considerado cult, legal. Quando é o negro que utiliza seu símbolo, valorizando suas raízes, não é aceito”, aponta Sara Araujo.

Na visão da pedagoga Marlene Britto, a reprodução da cultura negra sem o negro faz parte de  um processo de apagamento e exclusão da contribuição e presença dos negros em vários âmbitos. “Amam a cultura do preto, mas não o preto”, ressalta também a cantora e ativista da causa preta, Regiane Cordeiro.

A cientista social e professora de Sociologia, Vanessa Santos, acredita que “fazer com que o povo negro retome sua autoestima só é possível através da educação e da representatividade, que vem justamente colocar as coisas no lugar”.

Veja no infográfico abaixo alguns dados que revelam a apropriação cultural.

Produção: Clara Tadayozzi


 
O som dos tambores

Ainda hoje, mesmo com as transformações conquistadas pela incessante luta do povo preto no país, a discriminação racial é escancarada na televisão brasileira diariamente. Um exemplo atual é a novela da Globo “Segundo Sol”, ambientada na Bahia, um estado declaradamente negro em sua composição, porém, sem um protagonista negro sequer. “A mídia tradicional tem reforçado e perpetuado estereótipos raciais ao longo dos anos. O que vemos na mídia é um país branco e ideal do ponto de vista eugênico. Ainda temos o sonho da eugenia por aqui”, realça a educadora Vanessa Santos.

O Ministério Público do Trabalho notificou a Rede Globo sobre a falta de atores negros na novela, e a emissora respondeu: “A Globo não pauta as escalações de suas obras por cor de pele, mas pela adequação ao perfil do personagem, talento e disponibilidade do elenco. E acredita que esta é a forma mais correta de fazer isso”. Nas fotos, personagens da novela “Segundo Sol” – João Cotta/TV Globo/Divulgação

A divulgação da cultura negra, quando justa e fidedigna, é um passo essencial para se alcançar mudanças. E é por isso que um projeto como a Agenda Preta é tão fundamental, afinal é feito por pessoas negras e para pessoas negras, resgatando o valor de sua presença em meio à branquitude avassaladora presente em todos os âmbitos. A estudante Flávia Campos, do coletivo Africásper, da Faculdade Cásper Líbero, relata: “É muito importante se ver nos lugares, pois penso que, se lá tem uma pessoa parecida comigo, então eu posso chegar lá também”.

Regiane Cordeiro, artista e militante, defende o valor de se conhecer e estimar a própria cultura, pois há um padrão racista imposto que diminui as oportunidades dos artistas negros. “Uma plataforma que entende diretamente a barreira do racismo só pode ser soma para qualquer artista preto (a), pois cria essas oportunidades”, reforça.

Show da banda Dubalizer, com participação de Regiane Cordeiro, no SESC Bauru em maio de 2018. “Usam palavras doces para querer te enganar/Vão fazer promessas para depois te roubar/Falam, falam, falam, mas nem sabem do que falam/E com essa história levam o povo pro buraco”, canta a ativista – Foto: Clara Tadayozzi

A Agenda Preta surge como um local de retomada de alguns significados culturais a partir de suas verdadeiras raízes, contribuindo para a visibilidade e valorização desses significados na sociedade. Um dos artistas divulgados pelo projeto, o músico Augusto Oliveira, comenta que o cuidado com seu trabalho foi diferenciado, se contrapondo à dinâmica de mercado em que se busca o lucro. Além disso, ele acredita na iniciativa como uma forma de combate à discriminação. “Você obriga a outra pessoa a te ver: ‘Olha pra mim, olha como eu não sou tão diferente de você’. E quando você consegue humanizar o outro, quando você enxerga ele como gente, fica difícil tratá-lo mal”, explica.

O site, que é colaborativo, permite que pessoas negras se expressem de forma autêntica, sem qualquer tipo de silenciamento, desde que essa expressão se dê sem qualquer tipo de preconceito ou opressão. “Ocupa, o espaço é nosso!”, clama o idealizador Junior Rocha. Assim, ainda que essa medida não seja suficiente para eliminar o racismo brasileiro como um todo, fornece recursos para que a população preta se coloque e se mostre como ela verdadeiramente é.

Segundo o mestre em Ciências Sociais, Geander Barbosa, as pessoas negras foram, por séculos, impedidas de serem negras, e agora precisam fazer um resgate para se tornarem negras novamente. “Ou seja, dizer ‘eu sou humano, tenho uma vivência, experiência de ancestralidade, de memória, de tradição, e vou resgatar isso’”, determina. Com a Agenda Preta e outros tantos projetos que se constroem da mesma forma, agora elas podem.

 
Conheça outros projetos que encontramos ao longo da produção dessa reportagem.

AfroUrbanas, evento Nós Terezas e workshop Amálgama Africana (Vanessa Santos); Grupo de estudos NEA ONNIM – Núcleo Independente de Estudos Interculturais Aplicados (Marlene Britto); Coletivo Africásper (Flávia Campos); O Lado Negro da Força (Augusto Oliveira); Instituto Cultural Samba Autêntico (Tadeu Augusto); Dawtas of Aya (Regiane Cordeiro)
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