Em um momento de crise de credibilidade, grupos terraplanistas afirmam que nem a gravidade é real
Heloísa Scognamiglio e Mariana Hafiz
Tudo o que você pensa sobre o nosso planeta e sobre todo o Universo está errado. A Terra não é um globo como estamos acostumados a ver em suas representações por aí: ela é plana, um disco cercado por uma parede de gelo (que seria a Antártida) e coberto por uma redoma invisível na qual o Sol e a Lua giram sobre o plano terrestre. Se nas bordas está a Antártida, no meio fica o Polo Norte. Não há planetas. A gravidade não existe e só ficamos presos ao chão porque a Terra discoide é puxada para cima por uma força misteriosa, com aceleração constante.
Em um primeiro momento, esse conjunto de informações pode parecer um roteiro de ficção científica – mas é nisso tudo que os terraplanistas acreditam. Esse grupo de pessoas tem atraído a atenção da mídia e de curiosos, principalmente através de vídeos e textos publicados na internet. Há grupos no Facebook, páginas, blogs e canais no Youtube dedicados ao tema.
Os terraplanistas ficaram ainda mais em evidência em agosto de 2017, quando ocorreu o eclipse solar nos Estados Unidos – pela primeira vez em 99 anos, um eclipse solar total cruzou o país de uma costa à outra. Na época, milhares de postagens questionando o eclipse e tudo o que a humanidade, na visão dos terraplanistas, “julga” saber a respeito do fenômeno pipocaram na internet, provocando debates, discussões e brigas em comentários. Mas a ideia de que a Terra é plana não é uma novidade.
Por séculos, a humanidade acreditou que o nosso planeta era plano. No entanto, atualmente, a ciência considera a teoria da Terra plana como ultrapassada, por conta dos inúmeros estudos e pesquisas que provam que o planeta se assemelha mais a um globo – o que os terraplanistas chamam de teoria globalista. Os argumentos que refutam a tese de que o planeta é um disco e corroboram com a teoria globalista são muitos: vão desde a Grécia Antiga até a Física Moderna.
O filósofo grego Aristóteles, por exemplo, defendeu a esfericidade do planeta em seu livro “Sobre o Céu”, a partir das mudanças de configuração das estrelas de acordo com a posição do observador na Terra. O matemático Eratóstenes, também grego, calculou a circunferência terrestre a partir da comparação de ângulos de incidência da luz solar em dois postes de cidades distantes. Séculos mais tarde, o português Fernão de Magalhães, ao circunavegar o planeta, trouxe ainda mais evidências de que a Terra se assemelha a um globo, além de colaborar para a descoberta de novas rotas marítimas. Há ainda os estudos de Albert Einstein, Nicolau Copérnico, Isaac Newton, Galileu Galilei, Johannes Kepler, entre outros, que ajudaram a estabelecer a noção do planeta Terra e do Universo como a temos hoje.
Com o passar dos anos, toda a comunidade científica passou a atuar com a hipótese de que a Terra é um globo. No século XX, com a exploração do espaço pelo homem e as missões enviadas à Lua pela NASA (sigla em inglês para National Aeronautics and Space Administration ou Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço, em português), a esfericidade terrestre passou a ser uma certeza. Mesmo assim, os terraplanistas da atualidade refutam todo o avanço científico dos últimos séculos, retornando a uma tese ultrapassada e superada, alegando que vivemos uma farsa e que a representação da Terra como um globo é fruto de uma grande conspiração mundial.
O primeiro sinal de pessoas que acreditavam na ideia da Terra plana na modernidade surgiu em 1881, quando, sob o pseudônimo de “Parallax”, o inventor e escritor britânico Samuel Rowbotham publicou “Astronomia Zetética: A Terra Não é Um Globo”. A publicação era uma mistura de anos de estudo da astronomia e interpretações de passagens da Bíblia e tinha como objetivo desmascarar as “falsidades” em relação ao formato da Terra que, segundo ele, eram mantidas pela ciência.
Já em 1956, foi criada a Flat Earth Society (Sociedade da Terra Plana, em tradução livre), pelo astrônomo inglês Samuel Shenton. Segundo o site da organização, ela passou por um período sem atividade – até 2004, quando foi reativada por Daniel Shenton, que hoje é o presidente. A sociedade reabriu para novos associados em 2009 e agora conta com aproximadamente 500 membros.
Mas é nas redes sociais que o movimento cresce mais hoje em dia. A página da Flat Earth Society no Facebook tem mais de 120 mil curtidas. No Brasil, a maior página que se dedica ao tema na rede social é A Terra é Plana, que tem mais de 95 mil curtidas.
Os terraplanistas também estão muito presentes no YouTube, com vários canais que se dedicam a desmascarar as “falácias globalistas”. O canal Sem Hipocrisia, por exemplo, de Jota Marthins, que se dedica a falar sobre a Terra plana e outras teorias conspiratórias, tem mais de 12 milhões de visualizações. Marthins, dono do canal, lançou o livro “O Universo Que Não Te Apresentaram – Expondo a Maior Mentira da Humanidade” como publicação independente. Em entrevista publicada na Super Interessante, Marthins diz que o livro “expõe a verdade” e chama as obras do físico Carl Sagan de “ficção científica”.
De modo geral, o que os terraplanistas defendem nas redes sociais é que o nosso planeta não é um globo, mas sim um disco achatado. Esse disco seria coberto por um domo ou “firmamento”, espaço no qual o Sol e Lua, corpos muito menores do que acreditam os globalistas, realizam seus percursos. No centro do disco estaria o Polo Norte e, nas bordas, a Antártida, que seria um muro de gelo que preveniria que a água do planeta caísse no “vazio”. Não haveria gravidade, mas sim uma força que empurra a Terra para cima a uma aceleração constante, o que nos mantém firmes no chão. Os planetas não existiriam – eles seriam apenas estrelas firmadas em uma abóbada.
A ideia de “firmamento” defendida pelos terraplanistas é um conceito parecido com o apresentado no Velho Testamento da Bíblia. O criador da página A Terra é Plana, conhecido como Samuel Trovão (ele prefere não usar o seu nome real), afirma em entrevista publicada no portal Terra que parte significativa dos terraplanistas é criacionista, ou seja, acredita que o planeta e os homens são uma criação divina. Segundo Trovão, terraplanistas acreditam na Bíblia sem seguir uma religião específica.
“A descrição da Terra na Bíblia condiz com outras cosmologias. Egípcios, maias, gregos, romanos, incas, praticamente todas as civilizações extintas falavam em Terra plana. Estamos tentando reconstruir esses conhecimentos. Todo mundo que tenta provar que a Terra é um globo vira terraplanista, porque não tem prova. A única comprovação do globo seriam fotos da NASA. Isso é fé, você está acreditando na teoria deles. Seja sua própria autoridade”, diz Trovão. “Existe uma bibliografia de mais de 150 livros sobre a Terra plana. O debate nunca morreu: ele foi ocultado e censurado”, declara.
Administrador de um grupo sobre o assunto no Facebook, o Terra Plana Brasil Exclusivo, que tem mais de 9 mil membros, o advogado Pedro (ele prefere não revelar o sobrenome), fala, em entrevista ao portal O Tempo, que a teoria globalista afasta as pessoas de Deus. “A ideia do globo nos afasta de Deus. Além do mais, a NASA arrecada muito dinheiro com seus projetos falsos. Iria à falência caso a verdade fosse revelada. A maçonaria perderia a força dominante mundial e Deus estaria presente em todos. Quanto mais globo, mais dinheiro e menos Deus”, afirma.
De acordo com a Flat Earth Society, para os terraplanistas, as agências espaciais falsificam viagens e explorações espaciais para manter a farsa da teoria globalista, lucrando muito com isso. Um texto no site da organização afirma que a origem das falsificações teria sido durante a Guerra Fria, quando a União Soviética e os Estados Unidos começaram a forjar suas conquistas, pois estavam obcecados em derrotar um ao outro. “A NASA é uma agência de efeitos especiais. Ela é uma pequena fatia do todo. Se não existe satélite, espaço, alguém ficou com bilhões. A motivação é sempre o dinheiro”, afirma Trovão.
Para eles, há uma conspiração mundial envolvendo cientistas e agências espaciais para que todos acreditem que a Terra é esférica. Além da NASA, o Tratado da Antártida também é visto como um modo de encobrir a verdadeira forma do nosso planeta. O documento foi assinado em 1959 por países que reclamavam posse de partes do território do continente – com o tratado, os países se comprometeram a suspender seus objetivos por um período não determinado, permitindo a exploração científica do continente em regime de cooperação internacional. “Alguns terraplanistas acreditam que existem outros continentes depois da Antártida. Por isso, existe o tratado da Antártida e ninguém pode dormir lá se não for cientista”, diz o empresário João (ele não revela o sobrenome), terraplanista e participante de grupos no Facebook, ao portal O Tempo.
Em um texto publicado no blog Cinegnose, Wilson Roberto Vieira Ferreira, mestre em Comunicação Contemporânea, discorre sobre a recorrência histórica do que ele chama de pseudociências, usando como exemplo a teoria da terra oca revivida pelo nazismo. “Teorias pseudocientíficas e antigas concepções místicas alimentaram o nazismo em um momento de polarização política e catástrofe econômica com a hiperinflação e desemprego pós-guerra. Em momentos como esse, sempre o intelectualismo surge de forma franca”, afirma.
Para ele, é só observar a história para perceber que momentos políticos difíceis fazem florescer o anti-intelectualismo, o irracionalismo e os fundamentalismos e que “o pensamento crítico cede lugar à fé cega e ao ressentimento”. Ferreira ainda diz que, “historicamente, as pseudociências têm se demonstrado como sintomas de radicalizações políticas sérias”. “O apego a epistemes antigas e medievais como fossem a própria expressão do atual radicalismo político e conservadorismo […] esse submundo pseudocientífico sempre existiu, sempre à espera de uma tradução política que o fizesse sair à luz do Sol”, ele escreve.
Seria então, o ressurgimento e ascensão de uma teoria antiga e supostamente superada como a defendida pelos terraplanistas apenas mais um sintoma dos tempos de crise de credibilidade em que vivemos? Afinal, estamos na era da pós-verdade, na qual os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. Na qual saem a razão e o pensamento lógico, centrais para o estabelecimento do método científico (que é largamente ignorado pelos terraplanistas que tentam produzir provas de que o nosso planeta não é um globo com experimentos sem base nenhuma postados na internet), e entra o fundamentalismo.
O tempo atual, de desgaste político, frustração, mentiras e corrupção, desesperança, insegurança social e expansão de um conservadorismo exacerbado seria então o espaço perfeito para o surgimento de algo que não tem compromisso com a realidade e apenas reafirma crenças anteriores (no caso da teoria da Terra plana, há certa ligação com a religião). Até mesmo o homem mais poderoso do mundo, o presidente dos Estados Unidos, fala em “fatos alternativos”, criando novas verdades que lhe convém enquanto nega fatos objetivos, o que compõe um clima de insegurança e desconfiança propício para a expansão de teorias da conspiração.
No âmbito do jornalismo científico as notícias relacionadas ao movimento da Terra plana são uma das dificuldades, apesar de ser a mais nova, enfrentada por escritores e jornalistas que baseiam suas histórias na ciência empirista, pois contradizem o cerne definidor de sua atividade. Torna-se mais complicado escrever sobre ciência quando na internet essa ciência é constantemente contestada por grupos como a Flat Earth Society.
A quebra ao fundamentalismo e à crença no que foi comprovado empiricamente não é a única barreira ao desenvolvimento do jornalismo científico, pois o jornalismo em geral passa por outra crise em função das fake news. A partir do ano de 2016 as fake news (notícias falsas, em inglês) ficaram em evidência durante a eleição presidencial estadunidense que elegeu Donald Trump como presidente dos Estados Unidos.
O administrador e cientista político do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, Marco Konopacki, fez comentário sobre ambos assuntos em fala que combina esses dois elementos. “Nesse cenário de bolhas narrativas, em que as fake news pipocam e se reproduzem indiscriminadamente por instant messages com notícias que as pessoas acreditam ser verdadeiras, podem ser produzidos mundos alternativos, e realidades paralelas, que permitem que as pessoas acreditem que a terra é plana”, analisa.
Ele ainda explica que muitas vezes as pessoas acabam envolvidas em bolhas de argumentos e atacam aqueles que apresente informação ou opinião contrária. Esse comportamento, de acordo com Marco, explicaria, por exemplo, “a formação de grupos radicais que acreditam que a terra seja plana”.
Tanto o movimento da Terra plana quanto as fake news acontecem com mais força nos Estados Unidos, país no qual se originaram. Trump, desde que foi eleito presidente, declarou o que os cientistas chamam de “guerra à ciência”. Em setembro de 2017 a Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina recebeu ordem do Departamento do Interior dos Estados Unidos para que o estudo realizado acerca dos riscos de saúde relacionados à mineração de carvão fossem interrompidos.
O estudo de 1 milhão de dólares (3,2 milhões de reais na cotação de janeiro de 2018) foi requerido por duas agência da West Virginia sugerindo que aumentaram os índices de deficiências de nascença, câncer e outros problemas de saúde entre pessoas que moram nas proximidades de minas de carvão em Appalachia, cidade no estado de Virginia. A ordem para que o estudo fosse cessado foi feito horas antes que os cientistas se encontrassem moradores afetados em Kentucky, outro estado do país.
O Departamento alegou que o estudo fora suspenso devido a revisões no orçamento de todas bolsas e projetos que superassem o valor de 100 mil dólares. Essa explicação, entretanto, não foi bem aceita entre os cientistas e veículos jornalísticos do país, que, desde a eleição de Trump, têm monitorado com extensas críticas seu governo. O New York Times publicou um editorial analisando e criticando a chamada “guerra à ciência”; Scientific American utilizou o mesmo termo ao discorrer sobre o assunto, assim como a Vanity Fair.
Em janeiro de 2018, depois de um ano como presidente, Trump ainda não nomeou conselheiro de ciência nem diretor para o Escritório de Ciência e Tecnologia da Casa Branca. O físico, professor e ex-conselheiro de ciência de Bill Clinton Neal Frances Lane e o economista professor na Columbia University deram sua opinião sobre o que isso significa para o status da ciência no país. O que eles dizem, em coluna no New York Times, é que “desde a Segunda Guerra Mundial, nenhum presidente americano têm demonstrado tamanho desdém pela ciência – ou menos noção de seus prováveis custos”.
Essa conjuntura é responsável por criar no país espaço para que a ciência seja contestada, fazendo com que teorias como a da Terra plana adquira força em detrimento à credibilidade científica oriunda de experimentos e estudos empíricos. Com a internet, mesmo que os movimentos surjam nos Estados Unidos, não é demorado com que essas informações sejam traduzidas para quaisquer idiomas e comecem a permear outros países do mundo.
Vê-se, então, uma cultura que não só favorece a descrença e dúvida aos avanços científicos, como permite resgate de teorias há muito refutadas e a ruína do racionalismo. Uma cultura que dificulta o exercício de jornalistas em geral, pois entre notícias falsas e verdadeiras há a facilidade de confusão entre fato e invenção, assim como desafia a atividade puramente científica de físicos, pois seu empirismo básico é colocado em cheque. Estaríamos vivendo o fim do racionalismo ou apenas um retrocesso pontual do processo evolutivo?
Queria agradecer, abertamente, pois eu procurei muito (passei por muita teoria de conspirações) até chegar nesse artigo. Uma pessoa muito querida me pediu um livro sobre terra plana e foi extremamente difícil encontrar conteúdo de qualidade que falasse sobre esse assunto, ainda mais dessa forma: Informação é ciência e o jornalismo espalha a verdade, parabéns pelo trabalho, não desistam. Excelente artigo.