Ao contrário do que diz o senso comum, crianças podem sim apresentar sinais de crueldade e desvios de conduta; atitudes podem evoluir para um quadro de psicopatia
Renan Moraes
Em “Nós precisamos falar sobre o Kevin” (We need to talk about Kevin, no título original), Kevin Katchadourian contesta o que boa parte da sociedade insiste em reproduzir continuamente: crianças são puras, não mentem. Desde pequeno, o protagonista do filme demonstra sinais de desvio de conduta. Sempre ríspido com a mãe quando sozinho com ela, e exemplo do esteriótipo de criança perfeita quando está na companhia do pai, Kevin mostra o poder de subversão e os instintos de crueldade que uma pessoa pode apresentar já na infância. Quieto e fechado para o mundo, simpático quando lhe convém, e cruel em atitudes banais, o garoto desenvolve um transtorno de personalidade que gera um tenso desfecho à obra do cineasta Lynne Ramsay. A ironia em questão é que, mesmo tendo um comportamento questionável desde pequeno, os pais nunca sequer discutiram a situação do filho, contrariando, portanto, o que diz o título do filme.
Saindo do mundo da ficção, temos o caso do menino inglês Daniel Blair, de apenas quatro anos. Ele atirou seu cachorro na privada (e deu descarga!) após ver que o animal estava sujo. A mãe percebeu a tempo e o animal conseguiu sobreviver. As perguntas que ficam são: crianças como Daniel são “normais”? Elas sentem prazer na dor alheia? Podemos chamá-las de psicopatas? “É necessário enfatizar que não se pode falar em ‘crianças psicopatas’, nem em qualquer outro adjetivo nosográfico que aponte para uma patologia, como ‘crianças fóbicas’, ‘obsessivas’ etc.”, explica a psicoterapeuta Tárcia Davoglia. Segundo a especialista, nessa fase da vida é natural que a criança apresente muitas características – boas ou ruins – que vão construindo a sua personalidade. É por essa razão que a Associação Americana de Psiquiatria (APA) determina que nenhum menor de 18 anos pode ser chamado de psicopata, uma vez que sua personalidade ainda não está totalmente formada. Esse processo, segundo Tárcia, é contínuo até a adolescência, quando é esperado que o jovem tenha atitudes mais agressivas e confusas ao externalizar suas emoções. Com o passar da idade e com as experiências que a pessoa vai tendo no contato interpessoal e social, essas manifestações devem se tornar cada vez mais esporádicas. O que se espera é que a pessoa vá aprendendo outras estratégias mais socializantes para lidar com as demandas e com os desejos. “Se isso não ocorrer e se na adolescência ainda preponderar apenas a visão auto inflada de si mesmo, a intensa desconsideração pelos sentimentos/necessidades dos demais, a frieza e a insensibilidade frente à situações que se espera empatia, aí sim temos que prestar atenção”, alerta a pesquisadora. O desvio de conduta é comum geralmente até os sete anos, que é até quando a criança pode não saber discernir o que é certo ou errado; ou seja, se uma criança de quatro anos colocar um gato no microondas não vai ser tão preocupante quanto se uma de 12 o fizer.
De onde vem?
A inglesa Mary Bell chamou atenção de psiquiatras e psicólogos do mundo todo. Aos dois anos, ela já se diferenciava das outras crianças de sua idade por ter o costume de destruir seus brinquedos e não chorar ao se machucar; já aos quatro, tentou enforcar outra criança e dizia saber que tal violência poderia matar a vítima; aos cinco, não esboçou nenhuma reação ao ver um colega ser morto num atropelamento; após ser alfabetizada, começou a pichar muros e incendiou a casa onde morava, além de maltratar os animais; aos 11, estrangulou dois meninos, um de três e outro de quatro anos, sem nenhuma piedade.
Esse é um típico caso de psicopatia, e as razões, segundo os estudiosos, estão na violência que a menina sofreu por parte dos pais: filha de uma prostituta viciada em drogas, Mary teve contato com entorpecentes logo cedo, chegando a ser internada por overdose. Além de tudo, era obrigada a se prostituir quando tinha somente quatro anos. Segundo Marco Antônio Alvarenga, doutor em Psicologia do Desenvolvimento Humano pela Universidade Federal de Minas Gerais, existem vários aspectos que estão relacionados à origem da psicopatia, entre eles problemas na gestação, quantidade de hormônios recebidos pela mãe, ambientes violentos, pais com transtornos mentais, alterações cerebrais induzidas, entre outras. Para se ter ideia, de acordo com uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), 3,4% das crianças apresentam problemas de conduta como mentir, brigar, furtar e desrespeitar outras pessoas.
Como tratar?
Segundo Marco, hoje a ciência sabe bastante sobre a psicopatia, mas ainda existem controvérsias: a primeira delas é que, por enquanto, ela não tem cura, apesar de ser tratável. Ao longo dos anos, foram experimentados tratamentos com e sem encarceramento, mas os resultados não foram nada animadores em ambos os casos. A segunda é que a psicopatia, conforme alguns costumam dizer, não é genética. O que ocorre é que alguns fenótipos do transtorno podem advir de uma influência biológica, como, por exemplo, das quantidades de transportadores e receptores de serotonina e dopamina, respectivamente. A última controvérsia é a de que o psicopata é fruto de uma mazela social: outro mito, já que os psicopatas estão em todos os níveis sociais e a divisão de classes não contribui com o desenvolvimento do transtorno.
Como a psicopatia em adultos não tem cura, o ideal é que o distúrbio seja detectado e trabalhado desde muito cedo, ainda na infância. A abordagem psicoterapêutica em adultos tem pouco resultado porque a própria pessoa não reconhece o mal que faz às outras, pelo contrário, as atitudes cruéis suprem uma demanda interna de satisfação pessoal e, com isso, ela não consegue enxergar que necessita de ajuda especializada. É por isso que quando se trata de crianças e adolescentes, há possibilidades maiores e melhores de intervir com medidas interdisciplinares, clínicas e psicossociais, que vão envolver o indivíduo e seu entorno, como a escola, a família etc., explica a doutora Tárcia.
Para a psicóloga, ainda não podemos dizer que o transtorno é incurável. Ela lembra que as intervenções não são simples e muito menos rápidas; por isso, é fundamental que se tenha politicas públicas sociais e de saúde que invistam em prevenção e intervenções precoces. De acordo com ela, qualquer abordagem precisa considerar a influência de aspectos socioculturais e socioeconômicos, ou seja, não podemos pensar em medidas simplesmente direcionadas ao sujeito. “No Brasil, ainda não há praticamente nada sendo feito em termos terapêuticos, ao contrário de outros países, que vem tentado diversas intervenções que envolvem a participação ativa e diretiva da escola e da família. São intervenções ao mesmo tempo protetivas e inclusivas, mas que enfrentam limitações em alguns discursos enfáticos e pseudocientíficos que afirmam que a psicopatia é intratável”, conclui.