Público feminino cresce no segmento de jogos eletrônicos e pode desbancar o masculino em todo o mundo
Por Livia Cadete, Luana Brigo e Thais Modesto
A indústria global de jogos eletrônicos está em constante expansão. Além do elevado faturamento, que deve atingir US$ 108 bilhões (R$ 342 bilhões) até o fim do ano, o segmento tem estimulado o aumento do número de títulos, campeonatos, jogadores e profissionais que trabalham no setor (entre eles pro-players, ilustradores, designers, programadores, produtores e desenvolvedores de games). Isso sem contar a diversidade de cursos voltados não apenas para a criação, mas também para desenvolvimento, comercialização e distribuição de jogos.
Novas linguagens e dispositivos são criados em um ritmo eletrizante. O espaço digital é transformado, novos públicos ganham terreno. As mulheres ocupam cada vez mais esse ambiente, aumentando a sua vantagem sobre os homens. É o caso da empresária brasileira Cristina Santos, que conquistou em 2013 o 1º lugar no ranking mundial do Super Street Fighter IV: Arcade Edition – um dos jogos mais populares de luta – e da estudante do MIT e proprietária da JCSOFT Inc, Jenny Wu, que tem apenas 18 anos e já desenvolveu mais de 50 games online, jogados por mais de 4 milhões de pessoas.
As estimativas comprovam essa mudança. Segundo a Pesquisa Game Brasil 2017 – realizada pela agência de tecnologia interativa Sioux em parceria com a Blend New Research e a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), as mulheres que jogam já são a minoria. Em 2016, o público feminino representava 52,6% dos jogadores brasileiros; hoje, ele já corresponde a 53,6%. Um ano antes, era 47,1%.
O estudo, que contou com a participação de 2.947 pessoas de 26 estados e do Distrito Federal, aponta também que 36,2% das players têm entre 25 e 34 anos, 59% dedicam-se aos jogos eletrônicos de uma e três horas por semana, e 53,3% preferem os dispositivos móveis, como celulares e tablets, em função da praticidade. Enquanto os homens têm predileção por games de ação e corrida, as mulheres optam pelos de estratégia e aventura.
Nos Estados Unidos, não é diferente. Com base em um levantamento divulgado neste ano pela Entertainment Software Association (ESA), a participação feminina nos games vem crescendo anualmente. Até 2014, o público representava 48%. Entre os jogadores assíduos, as mulheres têm em média 37 anos. As players de 18 anos ou mais representam, significativamente, a maior parte da população regular de jogos que os meninos menores de idade. Além de conter informações sobre o perfil de jogadores, as pesquisas feitas pela ESA fornecem dados sobre vendas, economia dos games e violência e jogos.
O fundador e CEO do Brasil Game Show (BGS), Marcelo Tavares, assinala que o número substancial de mulheres na comunidade gamer não é apenas observado no universo virtual, mas também em eventos realizados em espaços físicos. Na última edição do BGS, a maior feira de jogos eletrônicos da América Latina, 28% do público pertencia ao sexo feminino. Até algum tempo atrás, as mulheres só compareciam a esses eventos como espectadoras, para acompanharem os maridos, namorados, amigos e filhos. Agora, elas experimentam novos títulos, disputam torneios e atuam na construção de videogames.
Apesar de aumentarem, de forma gradativa, em número nos segmentos de criação e desenvolvimento de games, as mulheres ainda são a minoria; além de não seguir a mesma proporção que a das jogadoras, a presença feminina é baixa em comparação ao de homens no meio. O I Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais averigua que existem no Brasil, pelo menos, 133 produtoras de jogos que empregam cerca de 1.130 pessoas, das quais 173, ou seja, 15% são mulheres. A pesquisa foi realizada pelo Núcleo de Política e Gestão Tecnológica (PGT), da Universidade de São Paulo (USP), em 2014.
Em outros países, essa situação também é recorrente. Em empresas estadunidenses do setor, as mulheres representam de 15% a 20% dos profissionais e recebem quase US$ 13 mil a menos por ano que os seus colegas de trabalho que pertencem ao sexo masculino. A Gamasutra Salary Survey 2014 revela que os homens no país ganham em média US$85,074, enquanto as mulheres tiram cerca de US$72,882 (em média 86 centavos para cada dólar), para realizarem o mesmo serviço.
No Reino Unido, o volume total de funcionárias na área é ainda menor, em torno de 6%. Lá, a média de desenvolvedoras mulheres nas empresas de jogos é de 14%, de acordo com a pesquisa The Gender Balance Workforce, conduzida pelo Next Gen Skills Academy nos anos de 2014 e 2015. Entre as 311 participantes, 33% já sofreram assédio ou bullying no escritório, devido a questões de gênero, e uma a cada três já se sentiu insultada, objetificada, intimidada ou oprimida nesse ambiente. Do montante, 40% atribuem à diferença de sexo a razão de não progredirem no trabalho – em termos de hierarquia – da mesma forma que os companheiros homens.
AMBIENTE HOSTIL
A participação das mulheres nos ramos da ciência, tecnologia e desenvolvimento de jogos se deu em meados dos anos 1970. Quase quatro décadas depois, elas ainda enfrentam preconceito, sofrem assédio, são desacreditadas profissionalmente e ainda compõem a minoria no setor. Segundo pesquisa da International Game Developers Association, realizada em 2014, 22% dos funcionários de empresas de games do mundo pertencem ao sexo feminino. Em 2001, o número era menor: 7,1% dos funcionários eram mulheres.
Mesmo com o crescimento gradual, no mercado de videogames, as mulheres estão em menor número por uma série de fatores. Entre eles está a dificuldade encontrada por corporações de tecnologia de manter talentos: uma boa parcela das desenvolvedoras que entram no ramo, acabam saindo após pouco tempo em função de hostilidades e de ações sexistas, que variam de rebaixamento das capacidades das mulheres e de piadas cobre o corpo de colegas, e chegam até a realização de reuniões executivas, que servem de pretexto para encontros não profissionais. Há, ainda, casos em que os chefes impedem as funcionárias de se enturmarem de forma profissional e pessoal, deixando de convidá-las para determinados eventos corporativos por se tratarem de ambientes masculinos.
Em 2006, a economista Sylvia Ann Hewlett, da Universidade de Harvard, conduziu um estudo a respeito da presença feminina em companhias de tecnologia estadunidenses, a fim de compreender as razões de tamanha evasão. Hewlett chegou a conclusão que 52% das mulheres pediram demissão em função da rejeição por parte de colegas do sexo oposto. De acordo com pesquisa, vigorava nessas empresas uma cultura de trabalho excludente e machista; 63% dos casos relatados tratavam de assédio sexual. As declarações, que não abordavam a questão do assédio, se referiam a ausência de convite para confraternizações depois do expediente.
Para tentar solucionar esses tipos de situação, algumas empresas dos Estados Unidos têm incentivado a criação de programas corporativos, capazes de demonstrar receptividade às cientistas e de equilibrar a proporção de gênero entre os profissionais contratados. Outras procuram incluir mais mulheres no setor a partir da promoção de workshops de programação, como os projetos The Yellow Thread Society, The Different Games Conference e Code Liberation, nos quais o próprio público feminino reivindica os seus direitos.
No caso do Brasil, em 2015, a publisher facilitadora e incubadora de jogos independentes Labindie divulgou a sua pesquisa sobre o cenário de jogos digitais no Brasil. O levantamento aponta que apenas 10% das desenvolvedoras de games no Brasil são mulheres, mesmo com games que estimulam protagonistas femininas. O número contrasta com o estudo da Entertainment Software Association (ESA), que em 2014 apontou que até 48% do público gamer da América do Norte é feminino. Ou seja, há poucas desenvolvedoras, pelo menos no Brasil, para o tamanho do público feminino.
Quanto a predominância masculina entre os profissionais da área de games, a administradora da página Garotas Que Jogam Videogame, Ana Carolina Salomão, acredita que no momento há muita predominância feminina, se comparado com estatísticas de anos atrás. “De acordo com as pesquisas, 50% da população feminina no Brasil joga videogame, fora a alta porcentagem em outros países também. Só na página, temos 63% mulheres de 27 mil pessoas”. Para a administradora, o mercado de games foi modificando o público alvo ao longo dos anos, criando jogos que incluem uma cartela de cores mais colorida, músicas mais divertidas e a caracterização das personagens de estilo mais agradável ao público feminino.
Além disso, Ana Carolina ressalva uma maior inclusão de personagens femininas até em jogos de guerra, como Rainbow 6. “Antigamente estes jogos só possuíam personagens masculinos, fora os de luta que colocavam as personagens femininas semi nuas para agradar o público masculino”. Mortal Kombat, Street Fighter, Tomb Raider e Grand Theft Auto (GTA) são jogos que para a administradora contém muita sexualização, especialmente nas vestimentas das personagens femininas.
Sobre assédio, Ana Carolina conta que sempre há algum homem que a ofende em jogos. “Já recebi mensagens de homens me xingando falando que ‘eu sou uma p*** e para eu mudar de personagem’. Outra mensagem criticava o meu clã só porque ele é composto 100% de mulheres.” Para ela, ainda há homens que não aceitam bem mulheres jogando mais e melhor que eles, o que resulta em críticas e falas machistas como “o lugar de mulher não é no videogame, mas sim na louça”.
Além do preconceito e da descrença nas suas habilidades como jogadora, Ana Carolina já passou por vários momentos de assédio nos jogos, nos quais homens a chamavam de linda e de gostosa, e pediam que desse o seu contato no WhatsApp, Facebook ou Instagram, sendo que eles nunca nem viram uma foto dela. Ainda assim, a administradora acredita que essas práticas machistas tem diminuído. “Agora você vê muito respeito por parte de outros garotos ao jogarem com mulheres, nos tratando como parte do time”.
CASO GAMERGATE
Um dos casos conhecidos que ataques e ameaças a mulheres nesse meio é o Gamergate. Tudo teve início com o término do relacionamento entre o cientista da computação Eron Gjoni, de 24 anos e a desenvolvedora americana Zoe Quinn. O cientista não aceitou bem a situação e a partir disso publicou um texto chamado The Zoe Post, no qual comenta sobre como a ex-namorada o manipulou, o traiu e até mesmo teria dormido com o jornalista Nathan Grayson, do popular site de videogames Kotaku, com intuito de obter matérias positivas sobre seus jogos, mais especificamente um que havia acabado de desenvolver: o Depression Quest.
O jogador acompanha um personagem doente ao longo de suas tarefas diárias. Apesar dos elogios de jornalistas, o Depression Quest foi criticado por outros gamers, uma vez que acreditavam que as acusações de Eron Gjoni eram verdadeiras. Apesar das justificativas do editor e chefe de Nathan Grayson em afirmar a ética do seu repórter, isso não protegeu Zoe de mais ofensas e ameaças. Alguns jogadores começaram a agredi-la, sendo que tais agressões eram planejadas em fóruns anônimos da internet.
A situação não melhorou para a desenvolvedora quando, o ator e ativista de direita, Adam Baldwin, publicou, em sua conta do Twitter, vídeos difamando Zoe. Junto às difamações havia a hashtag #GamerGate. A nomenclatura Gate faz referência ao escândalo Watergate, da década de 1970, caso que levou à renúncia do então presidente Richard Nixon. Em uma semana, a hashtag foi reproduzida mais de 240 mil vezes, segundo o site de análises de Twitter Topsy. Frequentemente, a menção incluía também ataques a uma desenvolvedora. Além das ameaças de estupro por parte dos Gamers, informações pessoais de Zoe como senhas de serviço online e endereço de sua residência foram divulgadas na rede.
Outras mulheres, como a crítica de mídia Anita Sarkeesian e a jornalista Leigh Alexander, do Gamasutra, já vinham sofrendo ameaças vindas da mesma comunidade. Anita Sarkeesian recebeu ameaças de morte em resposta a sua luta contra hipersexualização feminina nos games. Em seu programa, “Damsel in Distress” (“donzela em apuros”, em tradução livre), Anita Sarkeesian aponta como as mulheres são diminuídas nos enredos dos games, sempre em detrimento dos muitos músculos e da agressividade exacerbada dos personagens principais. Por causa de suas críticas, milhares de frequentadores de fóruns da internet acabaram dando força ao GamerGate, sendo a “menor” das agressões um jogo em Flash no qual o jogador deveria espancar Anita.
ENTRAVES DAS JOGADORAS
As jogadoras também não estão isentas do assédio e preconceito. Um levantamento realizado, em 2012, por Emily Matthew e divulgado pelo blog PriceCharting revelou que 63% das 874 players entrevistadas já sofreu assédio em jogos virtuais. Por causa das investidas, ameaças e xingamentos, 35% delas optaram por abrir mão, temporariamente, do joystick; 9% adotaram uma alternativa mais drástica e mudaram de hobby.
A maioria das garotas passou a utilizar nomes ou nicknames neutros ou masculinos para evitar os misóginos; a minoria resolveu lidar de maneira diferente, utilizando as ofensas (“Volta pra cozinha, volta!”, “Já terminou de lavar a louça?” ou, então, “Pega uma cerveja pra mim”) como incentivo para melhorar o desempenho nos jogos e conquistar espaço nesse meio. O levantamento também apontou que 84% das entrevistadas acredita que o sexismo é algo muito presente na comunidade dos games.
Com uma relação de grande familiaridade com games e tecnologia, a jornalista e jogadora, Lidia Zuin, conta que nunca ocorreu nenhum assédio pelo fato de ser jogadora. Esse assédio e preconceito ocorreram no meio virtual por outros motivos, como ser mulher e escrever sobre videogames. Zuin faz publicações no site Kill Screen sobre a dominância masculina nos videogames e impressões sobre a representação feminina nos títulos.
“Já aconteceu de um editor modificar meu texto e publicá-lo sem minha autorização, incluindo informações e opiniões com as quais eu não concordava. Isso gerar um thread de ódio contra mim e pelo fato de ser mulher”. A jornalista explica que descobriu sobre a alteração em seu trabalho mais de um mês depois do ocorrido e somente uma pessoa tentou confrontá-la diretamente. “Fiquei com um misto de raiva e de tristeza”
No caso das pro-players, o problema é ampliado, uma vez que o assédio e o preconceito estão presentes também em equipes e campeonatos de eSports (ou esportes eletrônicos), onde suas habilidades são, comumente, colocadas à prova, como se o fato de serem mulheres as tornassem menos capacitadas a participar de torneios lado a lado com jogadores homens. Na tentativa de solucionar essa situação, foram abertos torneios femininos; porém, eles ainda são controversos, visto que muitas jogadoras acreditam que a separação de competições de homens e mulheres reforça divisões de gênero.
Tais competições, apesar de permitem uma maior oportunidade das jogadoras se expressarem sem receio de ofensas e assédios, não colaboram para que elas se insiram no ambiente competitivo dos videogames. A exemplo disso pode-se citar a campanha, lançada no início de 2017, “24×7 – Fechado com as Minas #csgirls” realizada por equipes femininas de Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO) do Brasil e diversas personagens do cenário brasileiro para incentivar o cenário feminino em nosso território.
A campanha foi válida, mas a medida traz somente uma solução temporária. Já que a real solução seria a inserção das jogadoras dentro de equipes ditas masculinas, sendo que as grandes franquias de eSports deveriam olhar para esse lado e dar oportunidades para essas garotas. Campeonatos exclusivamente femininos pode até fazer com que as próprias jogadoras tenham essa mentalidade de se segregarem, quando na verdade deveriam lutar pela inserção e aceitação.
Além desse entrave, estes torneios esbarram nas questões de rendimento e patrocínio. Os ganhos dos principais pro-players homens ultrapassam US$ 2,5 milhões, enquanto os de jogadoras importantes não alcançam US$ 200 mil. O mesmo acontece com os patrocínios e a cobertura na imprensa, que são reduzidos e inferiores nos times femininos por não renderem tanto quanto as equipes masculinas.
REPRESENTAÇÕES NEGATIVAS
Apesar de ter recebido, nos últimos anos, uma série de críticas em relação à forma como as figuras femininas são retratadas, a indústria de jogos eletrônicos ainda conta com jogos nos quais o estereótipo da mulher como sexo frágil é mantido. Além de qualidades consideradas quase abstratas, como falta de autonomia, sensualismo (proporções exageradas e vestimentas inadequadas) e papéis secundários, que não conferem aos avatares valores nobres, como inteligência e heroísmo.
Nos primeiros jogos, Lara Croft, de Tomb Rider, era bastante sensual e dispunha de um corpo irreal, criado para agradar o imaginário masculino. Já nos jogos mais recentes, a personagem é retratada com proporções mais humanas. A jogadora Ana Carolina Salomão conta que Lara Croft é grande fonte de inspiração para meninas. “Antigamente a colocavam com os seus atributos bem exagerados, mas agora você não vê tanta sensualização nela. O foco está no que ela é, no que ela faz para escapar das lutas com muita adrenalina”, conta a administradora que criou a página há cinco anos para se conectar com outras meninas que também jogavam PlayStation 3.
Outros exemplos de sexualização exagerada são as personagens Mai, de The King of Fighters, e Cammy, de Street Fighter, ambas lutadoras que possuem corpos distorcidos com curvas e pouca roupa.
As personagens femininas, que não são hiperssexualizadas nos jogos, apresentam traços fracos de personalidade e atuam como forma de suporte em relação às figuras masculinas, vivendo apenas como bonecas vivas, frágeis e indefesas. Nesse sentido, elas servem como um elemento de cena, uma espécie de troféu para o protagonista alcançar seus objetivos. Entre as bonecas vivas mais famosas está a Princesa Peach, da série Super Mario Bros, uma donzela sem influências no jogo, que fica à espera do herói.
A jornalista e gamer, Lidia Zuin, acredita que essa representação vem de um machismo estrutural dentro do mundo dos games. “Até algum tempo atrás, o mercado de desenvolvimento de jogos era muito dominado por homens, então é por isso esse tipo de idealização, pois é o olhar masculino diante das personagens femininas”, explica a jornalista que já trabalhou como game tester na Rockstar, uma das grandes desenvolvedoras da atualidade, responsável por sucessos GTA, Max Payne e Red Dead Redemption.
As mulheres jogam e ocupam um espaço considerável no universo dos games, no entanto. os desenvolvedores ainda não as enxergam como verdadeiras consumidoras, que merecem ser representadas de maneira mais realista. Ana Carolina considera isso como um reflexo da vida real. “A educação antigamente sempre determinava o que as meninas e o que os meninos tinham que gostar, e com isso, o videogame era titulado só para os homens. O material produzido pela indústria dos games é só para eles. O mercado precisa entender que não queremos só jogar jogos de vestir roupa em bonecas e cuidar de bebês virtuais”, comenta a jogadora.
EVOLUÇÃO DE PERSONAGENS
O crescimento gradual de jogadoras e pro-players, bem como o de desenvolvedoras e outras profissionais, tem inaugurado um novo cenário no segmento de games. Uma etapa na qual as mulheres desafiam o machismo e ganham espaço dentro do clube do Bolinha. As mulheres não são mais a minoria dentro do público dos jogos eletrônicos. Elas agora são parte expressiva do setor e, como tal, têm a chance de lutar mais ativamente por visibilidade e por representatividade, alterando o espaço e tornando-o mais receptivo às mulheres e aos avatares femininos poderosos, dotados de habilidades físicas e mágicas, personalidades e histórias mais bem desenvolvidas.
Até então, as personagens se resumiam à figuras sexualizadas, objetificadas, frágeis e secundárias, que eram construídas para satisfazer os desejos e as expectativas dos homens, público antes majoritário do mercado. Com as transformações da indústria, as características dos avatares também se alteraram. “Vejo muita melhoria na representação feminina nas personagens tanto nas vestimentas e nos papéis em que elas participam dentro dos jogos. No início, não eram apresentadas como protagonistas nos jogos, sempre dependiam de um personagem masculino e com visuais que agradassem os homens. Agora a indústria dos games mudou, colocando-as nos papeis mais modernos. Elas são independentes, guerreiras, fortes e lutadoras”, aponta Ana Carolina Salomão..
Segundo um estudo da Indiana University, nos Estados Unidos, as retratações antigas reduziram de forma considerável, ainda que não tenham sido erradicadas. Intitulada Sexy, Strong and Secondary: A Content Analysis of Female Characters in Video Games across 31 Years, a pesquisa analisa o conteúdo de 571 títulos (lançados entre 1983 e 2014) e revela que a tendência de personagens femininas sexualizadas foi ampliada na década de 1990 e têm sofrido queda desde 2008. O que não melhorou foi a quantidade de figuras de mulheres com papel primário nos games: nos últimos anos, apenas 42% de todas as personagens são principais contra 52% entre os jogos examinados mais velhos.
Apesar das problemáticas que ainda cercam o segmento, os avatares femininos ganham a cada dia mais destaque no meio e se aproximam mais do real. Duas personagens que desfazem os estereótipos reducionistas da mulher e a representam de forma mais realista são a Terra Branford, de Final Fantasy VI, e a comandante Shepard, do aclamado jogo eletrônico Mass Effect.
A primeira é uma heroína forte que recebe destaque em grande parte do game e que é fundamental para o enredo. Ela é constantemente considerada a protagonista, apesar do jogo não admitir personagens centrais, e dispõe de poderes cósmicos fenomenais. A segunda é um soldado de elite que é enviada para missões de exploração espacial. As características que a tornam admirável e extremamente bad ass: força, determinação, presença dominante e status de “a maior campeã da Terra”. O seu gênero não é apresentado, em momento algum, como um fator limitante para o trabalho que desempenha. Inicialmente, comandante Shepard era um homem; no entanto, para agradar e atender às demandas de seus fãs, a desenvolvedora Bioware lançou a versão feminina do personagem.
Outros exemplos positivos de títulos em relação à representatividade feminina é o Overwatch, que trabalha com a diversidade de biotipos das personagens e o desenvolvimento individual de cada uma delas, e Life is Strange, jogo que incorpora avatares femininos corajosos e independentes, e inclui também retratações positivas do público LGBT.
Existem, ainda, outras formas de quebrar a linearidade de estruturas de personagens e narrativas de videogame. Jogos que possibilitam a personalização de avatares e escolhas, ao longo da história, oferecem um escopo maior para as pessoas que não se sentem confortáveis ou não se identificam com algum protagonista pré-selecionado. Entre esses títulos está The Sims 4, que oferece mais de 700 combinações, incluindo características gender fluid (em tradução livre “gênero fluido”, opção na qual o avatar se sente homem em determinados dias e/ou ocasiões, e mulher em outras).
MUDANÇA DE MENTALIDADE
Diferentemente do que muitos pensam, existem inúmeras mentes femininas por trás da criação de jogos famosos – Assassin’s Creed, Altered Beast, Phoenix Wright e Sonic the Hedgehog -, que não recebem o crédito que merecem. Além do número reduzido de mulheres no segmento e da falta de reconhecimento, o público feminino ainda conta com a falta de representatividade no que diz respeito às protagonistas dos games, cujo percentual é mínimo e corresponde a 9% de todos os títulos lançados no último E3. Apesar disso, as mulheres seguem lutando pela igualdade de gênero e respeito nesse ambiente.
A fundadora do blog Feminist Frequency, Anita Sarkeesian, foi uma das pioneiras na discussão da causa feminista nos games. A canadense milita há mais de sete anos contra a representação machista e estereotipada da figura feminina na cultura pop, em especial nos jogos eletrônicos. Em seu canal no YouTube, ela adota uma postura firme em relação à temática e se utiliza, além de suas experiências como jogadora, de seus conhecimentos acadêmicos para defender a igualdade de gênero. Anita é mestre em Pensamento Social e Política pela York University e graduada em Estudos da Comunicação pela California State University.
Para transformar o universo dos games em um ambiente mais igualitário e acolhedor para as mulheres, outras estratégias vêm sendo criadas, desenvolvidas e colocadas em prática. São torneios mistos e femininos, palestras, oficinas, workshops e campanhas, que não apenas incentivam a inserção desse público na indústria, como também criam espaços de confiança nos quais as mulheres se sentem seguras para comentar e compartilhar o seu apego aos jogos eletrônicos. Exemplos disso são a campanha Jogue como uma mulher e as atividades desenvolvidas pela associação femdevs e pelo movimento Women Up Games.
A iniciativa “Jogue como uma mulher”, lançada nas redes sociais em agosto de 2015 pela publicadora Ongame, tinha o objetivo combater o machismo no meio digital. A campanha era semelhante à ação Fight Like a Girl, da ilustradora e desenvolvedora gaúcha Carolina “Kaol” Porfírio, que empodera o público feminino através de ilustrações de heroínas dos games e da cultura pop. Na época em que foi divulgada, a iniciativa da Ongame pedia que as internautas postassem fotografias no Instagram, segurando um controle e uma folha de papel com a hashtag #Joguecomoumamulher. A publicação pedia também que as mulheres marcassem a @ongamebrasil.
Além de abarcarem as propostas dessas campanhas, a femdevs e a Women Up Games realizam trabalhos focados também para as profissionais que atuam criando e desenvolvendo avatares e narrativas de jogos. A femdevs é um projeto que apresenta o objetivo de promover a interação, a participação e a presença das mulheres na indústria dos games. A organização procura reconhecer e dar visibilidade ao público feminino, transformando o desenvolvimento de jogos digitais em uma opção viável de carreira para o gênero.
A Women Up, por sua vez, é uma iniciativa feminista que tem a missão de conectar e de aumentar o percentual de mulheres (jogadoras amadoras, pro players e desenvolvedoras), de diferentes faixas etárias, nos espaços de jogos eletrônicos e analógicos. A startup surgiu em 2014, quando a designer de games, Ariane Parra, percebeu o número reduzido de garotas com as quais estudava e jogava. Ela se perguntava o que poderia fazer para que as meninas se interessassem em participar e em criar um ambiente mais acolhedor e representativo para o público feminino. Para Ariane, atuar como designer não seria suficiente para lidar com os problemas de diversidade e de representatividade. Era hora de falar sobre o assunto.
A organização é formada por voluntárias que realizam a aproximação e a retomada do contato do público com os games, por meio de eventos corporativos, palestras, oficinas, workshops de desenvolvimento de títulos e competições femininas. Em encontros como o “Game Day”, as integrantes mais ativas – Izadora Perkoski, Gabriela Emi Sanada, Gabriela Nakamura, Mariana Fonseca – reúnem garotas em espaços onde as mulheres possam experimentar jogos, conversar e trocar experiências.
Já em palestras e workshops em eventos reconhecidos, como o Google Campus, o Big Festival, Anime Friends e Campus Party Brasil, Ariane e o grupo procuram realçar o papel das mulheres nos eSports, incentivando-as a jogar, criar e desenvolver os seus próprios jogos. O foco recai também sobre a necessidade de promover a equidade no meio digital e de reduzir a ideia de que a presença feminina no meio é algo raro e estranho. A receita obtida pelas frentes de atuação da Women Up é utilizada nas próximas atividades.
Diante do quadro atual das mulheres nos videogames, Ariane busca, agora, montar times femininos de esportes eletrônicos; algumas empresas patrocinadoras de campeonatos e desenvolvedoras – FIAP, TechSampa e WebCore Games – já mostraram interesse em apoiar a iniciativa. Além da criação de times, a empreendedora planeja juntar uma equipe de desenvolvedoras para criar o seu primeiro jogo eletrônico. O objetivo é produzir um game que incentive o público feminino a se tornar um grupo forte e ativo, tanto dentro do meio virtual quanto fora dele.
No mês passado, o grupo de pesquisa ARISE (Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas) promoveu a exibição do documentário Donzelas em Defesa, das jornalistas Helena Nogueira e Monique Ferrarini, na sala 3 do MAE-USP. O evento contou com a presença das criadoras do curta metragem, que discutiram a participação e a representação das mulheres nos videogames. A equipe do portal Women Up Games foram convidadas para o debate, porém desmarcaram em função de compromissos.
As jornalistas contam que a recepção do produto audiovisual foi melhor do que o esperado, visto que o seu conteúdo é odiado pela maior parte dos gamers machistas e costuma render uma chuva de comentários maldosos e até mesmo perseguições.“O debate foi incrível! Foi a primeira vez que assistimos à reação de uma plateia ao documentário. Até então tínhamos postado no YouTube e lido aos elogios e aos comentários com discurso de ódio. Eu e a Monique nos sentimos não apenas honradas em protagonizar uma discussão tão recente ainda no meio acadêmico; nos sentimos também inseridas integralmente no problema, forte militância e vontade de ver esse cenário mudar”, explica Helena.
Monique acresenta que, após a produção do documentário, chegou à conclusão de que essa discussão não pode acabar nunca, uma vez que a indústria dos games sempre terá o que melhorar e aperfeiçoar. “Na minha opinião, esse debate só estará completamente vencido quando houver ampla representação feminina, negra, asiática, LBGTQ+ e de todas as outras minorias dentro das próprias desenvolvedoras de games grandes. Já temos certo apoio em desenvolvedoras indies, mas somente quando atingirmos as desenvolvedoras de games AAA é que poderemos ver uma boa mudança na indústria”. Hoje, Donzelas em Defesa tem 4500 visualizações no Youtube. O curta está previsto para ser exibido na TV Cultura em 2018.