Crianças compõem grande público do YouTube e levantam preocupação com liberdade de compartilhamento e acesso de conteúdos na plataforma
Imagem de destaque: aisletwentytwo/Flickr
Por Guilherme Sette, Jéssica Dourado e Nathane Agostini
Criado em 2005, o YouTube – uma plataforma online para envio e acesso livre de conteúdos audiovisuais – surgiu com o intuito de facilitar o compartilhamento de arquivos de vídeos que na época eram grandes demais. Hoje, a missão do serviço é “dar a todos uma voz e revelar o mundo”, acreditando “que todos têm o direito de expressar opiniões”.
Baseado em ideais de liberdade de expressão e direito à informação, os valores da plataforma defendem que “as pessoas devam ser capazes de se expressar livremente, compartilhar opiniões, promover o diálogo aberto” e “que todos devam ter acesso livre e fácil às informações e que o vídeo tem grande influência na educação, na construção do entendimento e na transmissão de informações sobre acontecimentos no mundo”.
Justamente o fato de o site poder ser acessado quase que livremente por qualquer pessoa levanta uma preocupação, dada a grande presença de um público infantil na plataforma. 36 dos 100 canais mais assistidos no YouTube no Brasil, totalizando mais de 17 bilhões de visualizações, são voltados a crianças de até 12 anos, conforme aponta a pesquisa “Mapeamento do Comportamento Infantil no YouTube: crianças de 0 a 12 anos, Brasil”, desenvolvida por Luciana Corrêa, coordenadora da área Famílias e Tecnologia do ESPM Media Lab.
Atualmente, o YouTube conta com um aplicativo denominado “YouTube Kids”, “repleto de vídeos apropriados para a família”, conforme descrição no site do app, que são selecionados através de filtros criados por algoritmos.
No entanto, conteúdos não tão apropriados para crianças circulam pela plataforma e apenas aqueles não indicados para menores de 18 são bloqueados por uma tela que exige o login por uma conta Google para que possam ser acessados; contas essas que, no Brasil, podem ser criadas apenas por pessoas com 13 anos ou mais, segundo regulamento do próprio site.
Por outro lado, Luciana avalia que o Kids ajuda em relação a mediação do que uma criança assiste, mas não resolve completamente o problema pois não há curadoria no conteúdo que é disponibilizado no site. “O que define a plataforma são os usos e apropriações da plataforma. É complicado culpar o Google, ele até se esforça para evitar casos extremos como pornografia, o que consegue em certo ponto. Se você tá deixando seu filho ver, arque com as consequências”, analisa a pesquisadora.
No dia 31 de dezembro 2017, o youtuber Logan Paul, o 43º mais visto do mundo com mais de 15 milhões de seguidores, publicou um vídeo na chamada “floresta do suicídio” durante uma viagem ao Japão. No vídeo, entre piadas e brincadeiras com os amigos, Logan exibe um corpo enforcado. O Youtuber encarou uma enxurrada de críticas, deletou o vídeo e agora está “dando um tempo” da plataforma.
https://platform.twitter.com/widgets.js
O vídeo de Paul despertou a preocupação de pais com o conteúdo que seus filhos assistem no YouTube, já que parte de seu público são crianças. Jordanna Yadegar, mãe de Sam, de 10 anos de idade, relata – em reportagem produzida por Tanya Chen e Remy Smidt ao BuzzFeed – que bloqueou o canal de Paul em todos os dispositivos em sua casa, após assistir o vídeo em questão.
Crianças na plataforma
É evidente, como aponta a pesquisa de Luciana Côrrea no ESPM Media Lab, que as restrições de idade do YouTube não têm afastado as crianças da plataforma. E não apenas como consumidoras dos vídeos, mas também como produtoras – os chamados youtubers mirins, crianças que possuem um próprio canal, o alimentam com vídeos regularmente e ganham uma legião de fãs.
Entre eles está Julia Silva (12), youtuber mirim brasileira que posta vídeos sobre “vlogs, viagens, brincadeiras, tutoriais, coleções, desafios, tags, entrevistas, resenhas, lançamentos e muito mais”, conforme descrição de seu canal no YouTube. Atualmente com mais de 2,9 milhões de inscritos, Julia começou a postar vídeos na plataforma quando tinha apenas 6 anos.
E ela não está sozinha. Muitas outras crianças no Brasil e no mundo possuem um canal próprio com milhares de inscritos no YouTube, outros exemplos são os brasileiros Manoela Antelo – 12 anos e mais 1,5 milhões de inscritos em seu canal – e Tiago Riesemberg – 4 anos e mais de 78 mil inscritos.
Infográfico feito com a ferramenta Infogram. Acesso direto em: https://infogram.com/youtubers-mais-seguidos-1hd12yngn17x4km
Se os mecanismos de restrição de idade do YouTube para o acesso de conteúdos não se mostra amplo e eficiente o suficiente, cabe aos pais fazer o controle que acham necessário. “Se há ou não uma mediação sendo realizada pelos responsáveis, é preciso considerar que esta é uma decisão deles, uma vez que o YouTube é um plataforma para maiores de 18 anos”, defende Luciana.
A presença expressiva do público infantil no YouTube aponta ainda outro fenômeno: a naturalização da tecnologia e até mesmo das mídias sociais na vida das crianças. Irene Sarranheira, youtuber portuguesa de “faça você mesmo” (DIY) e mãe da youtuber mirim de 10 anos Mariana Sarranheira – que tem um canal na plataforma desde seus 8 anos -, afirma que possui uma “dose certa” de preocupação com a exposição de sua filha, mas que “a Mariana já nasceu diante de uma máquina fotográfica, sempre teve inúmeros seguidores no Flickr desde muito pequena”.
Formação
Uma questão que preocupa educadores e grande parte dos pais é o que a falta de mediação sobre os conteúdos veiculados no Youtube pode causar nas crianças. Parte dessa preocupação se deve ao fato de que muitos estão expostos a assuntos que deveriam ser debatidos por especialistas, mas que são tratados por pessoas não qualificadas.
Para a psicóloga Marina Cristina Zotesso, mestre e doutoranda na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP- Bauru) em psicologia do desenvolvimento e aprendizagem, esta é uma grande preocupação para a área da saúde em especial. “Tomemos como base famosos na internet que são referência em auxílio para emagrecimento (…) pouquíssimas vezes esses famosos tem capacitação teórica para falar e orientar”, afirma ela.
A psicóloga fala que a criança que tem acesso constante a diversos canais do YouTube pode ter influências não apenas em sua personalidade, “mas em seus comportamentos e atitudes, podendo muitas vezes prejudicar seu desenvolvimento e sua aprendizagem quando determinadas informações são errôneas ou reproduzidas de forma inapropriada”, defende.
Marina salienta que “assuntos que agregam conhecimento e geram reflexões pertinentes à atualidade, como formas de minimizar e eliminar preconceitos sempre são válidos”. A professora Cinthia Ariosi, do Departamento de Educação da Unesp de Presidente Prudente, acredita que nem todos os valores e ideologias das redes sociais são de ódio. Lembra que “esses ambientes são democráticos e há todo tipo de valores e ideologia, mas o fundamental são os valores e ideologias da família, que conduzem as escolhas”.
A professora alerta para outra questão. “O risco de crianças acessarem conteúdos não mediados também pode ser o consumo de notícias falsas e informações não verificadas”. Alguns youtubers gostam de produzir vídeos com informações que não são de sua “alçada”. O brasileiro Felipe Castanhari, do Canal Nostalgia, que possui cerca de 10 milhões de seguidores e produz vídeos sobre games e cultura geek, recentemente produziu um vídeo intitulado “os 10 maiores mitos da saúde”, em que aborda alguns dizeres da sabedoria popular como “friagem causa gripe” ou “o ser humano só utiliza 10% do cérebro”.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=QjhuUmLFPro]
Apesar de Castanhari não ser da área da saúde, Luciana esclarece que os youtubers mais assistidos costumam possuir uma equipe de produção, para que nenhum conteúdo impreciso seja veiculado em suas plataformas de enorme alcance. “Essa discussão da credibilidade fake news ainda vai se desenrolar. Por enquanto está no campo do gosto, por exemplo, eu gosto do youtuber X e acho que ele não fala besteira, já o Y tenta vender mais publicidade e produtos”, explica a pesquisadora.
Para compreender a dimensão da preocupação em torno da influência do YouTube sobre as crianças, é preciso entender que as novas tecnologias estão agregando valores, conhecimentos e proporcionando relacionamentos de formas diferentes. E uma delas é pelo YouTube. Em muitos lares brasileiros, não há mais a mediação dos pais, não são mais eles, em muitos casos, que conduzem a criança até o conteúdo. É comum, hoje em dia, que a criança o alcance sozinho.
Segundo Luciana Corrêa, em seu estudo, “na prática, os resultados desta pesquisa demonstram que 19,8% das crianças assistem este conteúdo [destinado ao público infantil] apenas quando as interessa”. Por isso é importante o cuidado.
A professora Cinthia Ariosi, do Departamento de Educação da Unesp de Presidente Prudente, explica que os padrões de comportamento das crianças estão sendo alterados pelas tecnologias. “Elas [crianças] estão deixando de brincar e interagir com seus pares, a falta de movimento tem afetado o desenvolvimento global das crianças”, fala a professora.
Em um mundo moderno, onde o acesso à informação está disseminado em muitos lugares do Brasil, fica a questão: quem deve se responsabilizar pelo o que a criança assiste? Para os entrevistados, tanto pais quanto especialistas acreditam que o maior responsável por essa mediação são os pais e responsáveis.
Ana Carolina Lins, publicitária, é mãe da Melissa, de cinco anos, e acredita que tanto os pais quanto o YouTube deveriam estar atentos. Segundo ela, “cada pai sabe o que é melhor para o seu filho, mas também a plataforma deveria monitorar melhor os vídeos classificados como infantis, pois já vi muita coisa ‘sem noção’”.
A psicóloga Marina Cristina destaca que o YouTube passa a ser um referencial de interação e propagação de conhecimento. “Podendo ocasionar em um comprometimento de habilidades sociais, por exemplo, ou defasagem de aprendizagem quando não controlada a frequência dispensada pelas crianças na internet, e a qualidade dos vídeos assistidos”, fala a psicóloga.
O trabalho dos pais, além de encaminhar seu filho até as fontes da informação e do conhecimento, inclui monitorar e mediar o acesso a esse mundo de informação. Ana Carolina diz que quando sua filha reproduz discursos equivocados por conta do que vê no YouTube ela explica o que é certo, “e agora ela segue o que as pessoas da nossa família dizem ao invés de confiar apenas em um pequeno youtuber”.
Na visão de Danhana Barbosa, mãe do Bryan, de cinco anos, “os pais precisam saber que as crianças têm acesso a tudo, para, a partir daí, explicar e tirar dúvidas que surgirem. Cabe aos pais orientar da melhor forma possível”.
Consumo
As crianças são expostas a publicidades e ao consumo desde seus primeiros anos. Para a pesquisadora Luciana Corrêa, é a educação que deve agir, não o controle da propaganda. “A publicidade faz parte da vida infantil desde que éramos crianças. O meu posicionamento, é muito mais a favor da educação ao consumo do que a proibição dele, porque na vida adulta essa pessoa vai encontrar propaganda e consumo também”.
O efeito do YouTube nos desejos de fim de ano das crianças pode ser verificado neste ano. Luciana conta que acompanha grupos de maternidade por causa de sua pesquisa e que, neste fim de ano, a busca foi pela “Low Surprise”, bonecas que vem dentro de embalagens redondas, muito bem embaladas, para que a criança só descubra qual modelo ganhou após um processo de “unboxing”, método bastante repetido por youtubers que possuem um público infantil.
A popular Julia Silva costuma fazer vídeos mostrando brinquedos para seus seguidores. Oito meses atrás, gravou um deles com unboxing de uma Low Surprise. O vídeo é um dos mais populares de seu canal, com 1,3 milhão de visualizações.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=I5i6S86Upqc]
Existem mais de 45 modelos de Low Suprise, que no dia da apuração da reportagem custavam aproximadamente 60 reais nas lojas online do país. Uma pesquisa conduzida pela jornalista Fátima Futema da Veja, constatou que a busca pela boneca na plataforma de vendas Mercado Livre cresceu 61% em relação a novembro e foi o sexto brinquedo mais buscado para o natal de 2017.
Outra questão que pode ser levantada é em relação ao próprio conteúdo veiculado, afinal, em alguns canais infantis ele é direcionado a crianças que estão assistindo sozinhas e que não possuem formação intelectual completa.
A youtuber portuguesa Irene Sarranheira se preocupa com o conteúdo que veicula. “Levo este fator totalmente em conta, meu canal rege sempre pela regra de ser uma canal que qualquer mãe possa assistir junto com os filhos, muitos dos meus trabalhos podem, e devem ser feito com as crianças, portanto, tenho o cuidado de selecionar vídeos com conteúdo bastante família”, conta.
Os esforços da rede estão em expansão. Como aponta Jefferson Graham do USA Today, o YouTube pretende contratar mais 10 mil revisores de conteúdo para plataforma, 25% a mais do que possui hoje, para evitar que vídeos inapropriados cheguem até as crianças. A reportagem aponta que desenhos infantis contendo linguagem sexualmente inapropriada e uso da seção de comentários por pedófilos estão entre os principais conteúdos a serem combatidos.
Apesar da série de resguardas que o YouTube proporciona para as audiências infantis, os entrevistados enxergam com bons olhos o acesso à rede. Para a professora Cinthia Ariosi “o YouTube, é um espaço muito rico, acho que por meio desta ferramenta podemos ter acesso a coisas boas e ruins, é preciso ter critérios e conhecimentos para selecionar.”
Irene, a youtuber mãe de Mariana, avalia como benéfico o acesso ao serviço. “Desde que seja bem acompanhado, a Mariana aprende muitas coisas e o faz da maneira mais natural possível, porque está se divertindo e aprendendo ao mesmo tempo. Por exemplo, ela diz que quer ser chef de cozinha quando crescer, então acompanha alguns canais de culinárias e se arrisca a fazer algumas receitas com o toque pessoal dela, é claro.”
Danhana, mãe do Bryan, acrescenta que “nossos filhos acabam copiando e reproduzindo aquilo que vêem e escutam por aí, cabe aos pais direcionar e explicar o discurso ao qual as crianças tem acesso, pois as crianças estão expostas a opiniões e informações diferentes, não há como evitar”.
A mãe da Melissa, Ana Carolina, diz que há muitas coisas prejudiciais classificadas como infantil, mas os pais não devem deixar a cargo da plataforma a educação de seus filhos. “A educação e formação de caráter vem de casa, de valores familiares, não de YouTube, televisão, desenhos animados, etc”, afirma ela.