O futebol é um elemento preponderante na formação da cultura brasileira, fazendo parte da rotina e comportamento das pessoas.
Porém, o que acontece quando algo que deveria significar união resulta em segregação e agressões, físicas, morais e verbais? Essas atitudes afugentam torcedores de estádios e outros locais, por causa do clima de guerra gerado pela ação de alguns participantes de torcidas organizadas, que usam como fachada as cores e vestimentas de seus times para cometer atos de violência e vandalismo pelas cidades do estado.
Os registros de violência envolvendo torcedores em qualquer site de pesquisa são inúmeros, principalmente a partir da década de 90, que ficou marcada por episódios trágicos. Em 2003 foi criado o Estatuto do Torcedor, para garantir deveres e direitos dos entusiastas do futebol. Alguns artigos do Estatuto estão presentes desde a sua criação, como a obrigação de haver uma área reservada no estádio exclusivamente para essas organizações, com o uso de suas representações visuais e de vestuário.
Apesar disto, no Estado de São Paulo, com o número de casos ainda alto, em 2016 ocorreu o estopim para que uma atitude fosse tomada pelo Ministério Público junto à Federação Paulista de Futebol (FPF). Após um confronto entre Palmeirenses e Corintianos que resultou na morte de uma pessoa e na detenção de outras 57, a ordem foi de que apenas a torcida do time mandante poderia estar presente nos clássicos do estado de São Paulo, mesmo fora da capital. Apesar da medida, as ocorrências não diminuíram, mas apenas mudaram de local, das redondezas dos estádios para outros pontos das cidades.
A cidade de Campinas também foi afetada com a lei, pois os principais times locais, a Ponte Preta e o Guarani, registram confrontos entre seus torcedores mesmo quando não há jogos entre os clubes, causando danos à cidade. Por causa disto, os grandes times da capital, Corinthians, Palmeiras e São Paulo, e também o Santos, que já tiveram casos de violência na cidade, além dos dois campineiros, passaram a jogar entre si somente com a presença de torcida única em seus respectivos estádios.
Outro ponto importante são os casos de homofobia, que geralmente são caracterizados por cantos entoados durante os jogos, além de gestos e gritos racistas, que configuram crime.
A mídia também reflete este cenário. Um estudo de mestrado realizado por Marcelo Palhares, da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, e que examinou 2.258 notícias, caracterizou três principais tópicos de análise: fidelidade, fiscalização e violência.
O Jornal da USP informa que a pesquisa identificou que “o primeiro refere-se principalmente ao amor da torcida pelo time, e ao compromisso dela em acompanhá-lo e transformar as arquibancadas em festa. O segundo diz respeito à cobrança feita pela torcida sobre o time, frente a algum resultado ou situação insatisfatória. Já o terceiro traz episódios de violência que envolvem a torcida. Neste último, porém, foi identificado que a associação da violência à torcida restringe-se apenas à violência física”. O autor complementa ao argumentar o seguinte: “outros fenômenos violentos além dos físicos, como a homofobia, racismo, xenofobia, entre outras, não se vinculam à palavra violência nas matérias. Assim, o debate sobre o assunto fica reduzido, o que propicia uma associação simplista das torcidas organizadas à violência nos jogos, sendo esta retratada como a grande responsável pelas brigas nas arquibancadas”.
Durante a pandemia, o número de casos diminuiu devido à ausência de torcedores nos estádios e nas ruas, reflexo das medidas que impuseram restrições à circulação de pessoas em eventos esportivos. Porém os casos voltaram a aparecer com a liberação do público nos estádios.
Um caso ocorrido em 28 de setembro de 2022 mostrou algo que não acontece normalmente: torcidas de Cruzeiro e Palmeiras promoveram cenas de agressão na Rodovia Fernão Dias, envolvendo pessoas que só estavam de passagem pelo local. Em entrevista ao portal Terra, César Saad, delegado da DRADE (Delegacia de Polícia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva, em São Paulo) comentou a situação. “Temos mantido reuniões semanais com torcedores dos grandes clubes paulistas. Há um diálogo e maior controle neste sentido. Mas o que tem acontecido são muitas brigas com torcedores de fora do Estado, que, quando vêm para São Paulo, têm se envolvido em confusão, apesar de todo o trabalho do Batalhão de Choque da Polícia Militar”, disse ele.
Porém, mesmo com este cenário, não se deve generalizar o comportamento de membros das torcidas organizadas. Elas também cumprem um papel social importante, como em ações beneficentes para populações carentes e na difusão de mensagens de solidariedade. Datas como o Dia das Crianças, Páscoa e Natal servem de mote para as causas sociais das torcidas. Também houve união das torcidas para defender o estado democrático no Brasil diante de manifestações golpistas.
Em 9 de janeiro de 2023, após os atos de terrorismo em Brasília, as vertentes de torcidas que se denominam antifascistas se reuniram em frente ao Museu de Arte de São Paulo (MASP) para protestar contra a tentativa de golpe de Estado. O maior exemplo histórico desse posicionamento é o da iniciativa “Democracia Corinthiana”, que apoiava o movimento Diretas Já, contrário à Ditadura Militar no Brasil.
É importante que a relação entre os casos de violência no futebol e o papel da justiça seja entendida de forma mais profunda, e não somente como senso comum. Essas organizações, complexas, são movidas pelas cores de seus times, mas também extrapolam o papel esportivo e abrangem grandes causas sociais. Cabe ao Estado garantir a segurança de todos, independentemente de suas bandeiras.