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Como formas não-convencionais de cultura vêm ajudando diferentes grupos a superar o isolamento social em tempos de pandemia

Por Aline Bonholi Barbosa e Mayara Marques Breviglieri

Visitas online a museus, plataformas de streaming e brincadeiras tradicionais passaram ser as formas de cultura mais consumidas na quarentena.
(Créditos: Aline B. Barbosa/Canva.com)

Há séculos, diversas áreas sociais procuram formas de sintetizar a definição de cultura. Certamente, não é uma tarefa fácil. De certa maneira, todos nós crescemos cercados de cultura, e, sobretudo, sabemos sobre sua importância. Mas como defini-la?

Antes de entender o papel que a cultura exerce sobre a sociedade em que está inserida, é preciso compreender quais as definições que melhor se aplicam a esse conceito e tudo que ele engloba.

O que é cultura?

A primeira concepção efetivamente aceita foi elaborada por Edward Taylor, considerado um dos pais da antropologia britânica; futuramente, ele viria a inspirar antropólogos e sociólogos americanos, que também criaram outras teorias sobre o que é cultura.  Mesmo assim, a definição de Taylor é uma das mais aceitas globalmente, reiterada, posteriormente, por Roque de Barros Laraia, estudioso brasileiro.

Segundo esses estudiosos e pesquisadores, cultura se define como sendo: “Um complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e quaisquer hábitos adquiridos pelo homem como membro individual ou social”.

Trata-se de um conjunto de padrões de comportamento, passados de geração em geração, mutáveis e adaptáveis. De fato, estas são algumas das principais características que podem sintetizar, ao menos um pouco, toda a complexidade e importância que esse conceito representa para nós.

A cultura se modifica com o tempo. Diferentes gerações, de diferentes partes do mundo, carregaram diferentes formas de cultura, que também se adaptaram às situações vividas por esses povos.

Você pode estar se perguntando: a cultura também pode se adaptar até mesmo à, digamos, uma pandemia global?

A resposta é sim.

Jovens de etnias e culturas passaram a usar máscaras como forma de prevenção da Covid-19 (Créditos: freepik.com)

A sociedade moderna nunca passou por situação semelhante à que vivenciamos no ano de 2020. A pandemia global ocasionada pela COVID-19, uma doença respiratória causada pelo vírus SARS-CoV-2 (coronavírus), fez milhares de mortos pelo mundo todo, e uma das soluções encontradas foi o isolamento e o distanciamento social, capaz de minimizar o contágio e os feitos da doença.

A abrupta mudança na forma como nos relacionamos e a impossibilidade de sairmos de casa fez com que procurássemos novas formas de lazer e de distração da situação e das preocupações cotidianas. E é neste ponto que a cultura exerce um papel de suma importância.

Cultura em tempos de pandemia

Nossa sociedade consome diferentes formas de cultura como principal fonte de lazer, e essas formas também se alteraram com o tempo. A principal diferença, sem dúvidas, é o número, cada vez maior, de adeptos à cultura caseira.

O consumo de produtos culturais, normalmente feitos em teatros, cinemas, passou a ser feito em casa, de maneira virtual. Nos últimos anos, o número de usuários que consomem diferentes formas de cultura convencional por meio da internet cresceu exponencialmente, com as chamadas plataformas de streaming.

Enquanto isso, é possível traçar uma relação bastante simples entre as formas de consumo e a quantidade de tempo dedicada a elas. Com a pandemia, e o subsequente isolamento social, as pessoas passaram a ficar mais tempo dentro de casa, o que, eventualmente, levou ao aumento do consumo de produtos culturais.

Dados oficiais disponibilizados por algumas plataformas de streaming ilustram a situação. A Netflix®, serviço de streaming de filmes, séries e documentários, registou um aumento de 61% de usuários. Na média geral, acredita-se que as pessoas passaram a ficar 3 horas a mais por dia, consumindo os produtos oferecidos na plataforma.

O Spotify®, serviço de streaming de músicas e podcasts, também relatou aumento de 30% em relação ao número de usuários, chegando a 270 milhões de ouvintes e pouco mais de 130 milhões de assinantes do pacote premium.

O consumo de produtos em plataformas de streaming, como o Netflix®, tornou-se mais popular com o isolamento social (Créditos: freepik.com)

Esses são só alguns dos exemplos que confirmam o aumento do consumo de diferentes formas de cultura após a instauração do isolamento social, decorrente da pandemia. Além disso, outras instituições também deram sua contribuição para proporcionar mais conforto e alternativas para as pessoas isoladas.

O Ministério da Cultura compartilhou diferentes conteúdos para acesso online e gratuito para a população. Museus, exposições, feiras e oficinas também disponibilizaram visitas pela internet, sem taxas. Ainda, muitos artistas aderiram à moda das lives em casa – apresentações musicais feitas pelas redes sociais e outros serviços de transmissão.

Essas são algumas das tentativas de popularizar o acesso a cultura em tempos de pandemia. E, por mais que elementos tecnológicos ainda não estejam presentes em um número considerável de casas, as mobilizações proporcionaram o acesso de materiais que, antes, poderiam ser considerados elitizados, como, por exemplo, as visitas a museus famosos, as quais puderem ser feitas a partir do computador, sem nenhum gasto.

Por outro lado, muito se fala sobre o acesso à cultura convencional. Apesar de se tratar de um conjunto de expressões, crenças, ideias e comportamentos, algumas formas de cultura, especialmente voltada para lazer, se popularizaram mais que outras. São os casos dos produtos audiovisuais, em especial, os filmes e as séries.

No entanto, existem muitos elementos da cultura não-convencional que tomaram força durante a pandemia causada pelo coronavírus. E, se esses elementos pudessem ser resumidos em poucas palavras seriam tradição e brincadeiras infantis.

Brincadeiras de criança: uma tradição recuperada na quarentena

Jênifer Lopes, 22, é uma das muitas pessoas que estão passando pela quarentena na companhia, em tempo integral, de uma criança pequena. No caso, sua irmãzinha, de apenas 3 anos, teve que deixar de frequentar a creche, onde ficava durante a tarde.

Em casa, Jênifer conta com a ajuda dos pais para distrair a irmã de um jeito saudável e educativo.

“Meus pais compraram massinha, slime, tinta, além dos brinquedos que ela já tinha. Aqui em casa, a ente se reveza pra brincar com ela e tentar fazer as atividades que a professora passa”, relata a jovem.

Essa situação não é incomum, principalmente, neste período que vivemos. Milhões de crianças, em todo o país, deixaram de frequentar as creches e as escolas, que, além de incentivar o desenvolvimento e a criatividade das crianças, também ajudavam os responsáveis a conciliar as horas de trabalho com o cuidado com os filhos.

“Ela gosta muito de assistir Luccas Neto [Youtuber que produz conteúdo infantil], mas a gente tenta fazer ela brincar fora do tablet também”, conta a estudante e operadora de telemarketing. “A gente faz ela brincar de pega-pega, esconde-esconde, jogar bola no quarto dela, cantar as músicas Frozen [filme infantil da Disney], pra incentivar”, explica Jênifer.

Essas brincadeiras “fora do tablet” se tornaram menos frequentes com o passar dos anos. A falta de tempo e a mudança das casas para os apartamentos e, até mesmo, as tecnologias são alguns dos fatores que levaram a uma menor ocorrência dessas atividades entre crianças.

Por outro lado, o isolamento social proporcionou mais tempo livre e aumentou a busca dos pais e familiares por alternativas para distrair e entreter as crianças. Sendo assim, muitas dessas brincadeiras mais “tradicionais” acabaram voltando à popularidade em diversas famílias.

Emília Santana, 36, foi afastada do trabalho de secretária em uma clínica de advocacia durante a pandemia, e está passando a quarentena com sua filha, de 5 anos. Ela conta que o tempo livre foi fator essencial para resgatar brincadeiras da sua infância.

“Ela ficava na escolinha o dia inteiro, enquanto eu trabalhava, e a noite a gente acabava assistindo TV e indo dormir. Agora, eu estou tentando fazer as atividades da escola com ela, e acabo aproveitando para brincar de coisas que eu fazia quando eu era criança. Boneca, casinha, esconde-esconde, até ensinei ‘adoleta’ pra ela”, relata Emília.

A nova geração já está nascendo em um cenário exponencialmente tecnológico, com a presença massiva da internet e aparelhos como smartphones, tablets e smart tv. O resgate de brincadeiras antigas, que não faziam uso da tecnologia, é uma maneira de manter tradições vivas, enquanto se torna uma forma de cultura, lazer e aprendizado para esses pais e crianças.

As brincadeiras passadas de geração em geração, como, por exemplo, o pega-pega, são importantes para a formação e desenvolvimento das crianças nos níveis social, cognitivo e motor (Créditos: Yanalya/freepik.com)

Para Cleide Aparecida Purini, psicóloga especializada em ludoterapia na cidade de Bauru, São Paulo, as brincadeiras são parte essencial na vida de uma criança.

“As brincadeiras ‘tradicionais’ são importantes para as crianças, porque elas, principalmente, dos primeiros anos de vida aos 7 anos, são extremamente sensoriais, ou seja, elas apreendem o mundo através dos sentidos (paladar, olfato, audição, tato, visão) e, principalmente, por meio do movimento. Então, elas precisam brincar”, afirma a psicóloga.

Além disso, “as brincadeiras, além de desenvolverem a inteligência e toda a cognição da criança, também a ajudam a descarregar as angústias, os temores e as inseguranças que ela sente”, completa a psicóloga.

Para a especialista, incentivar as brincadeiras tradicionais, que envolvam movimentação e, principalmente, socialização, são fundamentais para um bom desenvolvimento cognitivo, psicomotor, de equilíbrio, noção espacial e convivência em grupo.

Pega-pega, esconde-esconde, amarelinha ou brincar de casinha são alguns dos exemplos citados pela psicóloga. Essas brincadeiras ensinam como a criança pode lidar com as frustrações de competir, como se preparar para a vida adulta, como se expressar e descarregar seus sentimentos de maneira saudável.

“Tudo isso é a socialização, é respeito pelo que é dela e pelo que é do outro, porque a criança quando é pequenininha até os 3 aninhos, ela acha que o mundo gira em torno dela, então o brinquedo também ajuda nessa maturidade, de sair desse egocentrismo, desse egoísmo natural, para ir para o mundo e se relacionar, enxergando o outro e também respeitando esse outro para, assim, também ser respeitada. E fora isso, também tem a bioquímica, através de toda essa riqueza, a criança também desenvolve os hormônios do humor, da alegria. Ela está em equilíbrio com a natureza, porque o ser humano precisa do outro para se desenvolver. Nenhuma criança é capaz de se desenvolver no isolamento, entre quatro paredes e um computador”, explica a psicóloga Cleide Purini.

Quarentena não é brincadeira

Apesar da situação incerta que estamos vivendo, muitos pais passaram a ter mais tempo para seus filhos, para ensiná-los a brincar e compartilhar experiências.

Além de ser essencial para o desenvolvimento da criança, como apontado pela psicóloga Cleide Purini, a proximidade dos pais com a criança e o incentivo a brincadeiras que estimulem o movimento promove um estreitamento dos laços familiares, criando uma rede de suporte importante para a criança.

Dessa maneira, formas não-convencionais de cultura, ou seja, hábitos e tradições passadas de geração para geração, também foram resgatadas durante a quarentena. As brincadeiras tradicionais, antes menos populares que computadores e televisões, agora se tornaram uma alternativa não somente para distrair as crianças durante o tempo livre, mas também para ensinar, estimular e desenvolver as capacidades e habilidades delas.

A pandemia ampliou a possibilidade de interação entre pais e filhos no dia a dia (Créditos: Yanalya/freepik.com)

Enfim, por mais que a pandemia possa nos trazer preocupações ‘de adulto’, a quarentena tem se mostrado um ambiente capaz de fazer muitos adultos voltarem a ser crianças, pois, brincando de ensinar e ensinando a brincar, eles recuperam o contato com os filhos e, ainda, revivem e recordam as experiências vividas da infância.

Redação

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