Durante mais um dia de trabalho em campo, atuando em comunidades tradicionais no bioma amazônico, a geógrafa Meline Machado ouviu a seguinte chacota durante o expediente: “isso é coisa de mulher mesmo, né? Se preocupar com protetor solar e repelente”. A frase foi dita por um dos colegas de profissão da cientista, levando-a a reflexões instantâneas. “Me perguntei como ele fazia para lidar com essas situações durante o exercício. E tão logo descobri: me pediu emprestado [risos]”, relata a profissional.
Assédio, constrangimento, menosprezo, desigualdade salarial e escassez de oportunidades são elementos presentes na rotina de muitas mulheres, principalmente em ofícios tradicionalmente ocupados pelo sexo masculino. “Essas situações ainda são comuns, mas não julgo normais, são de cenários carregados de preconceitos e estereótipos que separam papéis julgados de homens e mulheres”, comenta Machado.
Tais atitudes são reflexo de uma repressão histórica às mulheres. Mesmo quando era permitida a frequência feminina nas universidades – no final do século XIX, no Brasil -, elas enfrentavam obstáculos na vida acadêmica. A proibição do uso de certos laboratórios e até mesmo a recusa na publicação de estudos de sua autoria são exemplos de desafios que as graduandas, por muito tempo, tiveram que enfrentar – uma vez que deveriam colocar o nome de algum cientista homem antes do seu, independentemente de serem autoras únicas de seus trabalhos.
Ketherine Johnson: PhD em Matemática, trabalhou na NASA e foi responsável pelos cálculos que levaram o homem à Lua. Sua história foi contada no filme “Estrelas Além do Tempo”. Em 2015, Johnson recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, mais alta honraria americana. (Foto: Reprodução/Nasa)
Ao participar de uma festa infantil, quase sempre, as regras sociais tradicionais de gênero costumam rondar as crianças desde seu nascimento. Para as meninas, a temática das festas incluem princesas e seres de contos de fadas. Elas serão majoritariamente presenteadas com roupas em tons rosados, maquiagens e brinquedos como bonecas e utensílios domésticos. Já para os meninos, as temáticas variam entre heróis de ação e esportes, por exemplo. Os convidados ficam inclinados a presenteá-los com brinquedos como carros, jogos interativos e kits de laboratórios.
Dessa forma, quando pequenos, os meninos são encorajados a interagir com brinquedos tecnológicos e versões em miniatura de futuras possibilidades de carreiras, enquanto as meninas ainda são direcionadas ao ambiente familiar.
Uma pesquisa realizada pela Universidade de Washington, nos Estados Unidos, colocou à prova a afirmação que “matemática é para meninos”. Para isso, o estudo selecionou 247 crianças entre os níveis educacionais da primeira a quinta série do ensino básico, que deveriam relacionar quatro categorias de palavras: nomes de meninos e de meninas, termos matemáticos e comuns.
Assim, concluiu-se que a maioria das crianças de ambos os gêneros associou a matemática como um campo masculino. Além disso, os testes incluíram uma avaliação individual quanto ao gênero com o qual o pequeno se identificava e sua habilidade com cálculos – sendo este último com maior aptidão entre os meninos.
Com o objetivo de reverter este cenário, foram criados projetos a fim de apresentar as áreas científicas às meninas, motivando-as a pensar na tecnologia e inovação como uma aliada e uma opção de profissão no futuro. Um exemplo é o Meninas na Ciência, iniciativa de pesquisadores do Museu Espaço Memorial Carlos Chagas Filho, localizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o Laboratório de Neurobiologia, que visa apresentar notícias, artigos, divulgar e criar eventos, a fim de oferecer um breve panorama do cenário mundial da ciência e como as mulheres estão inseridas nesse meio.
“Em nosso projeto, trabalhamos a ameaça por estereótipo (Stereotype threat), que é um fenômeno no qual pessoas pertencentes a grupos estigmatizados sentem-se ameaçadas pela confirmação de um estereótipo negativo atribuído ao grupo do qual fazem parte. Diversas populações encontram-se sob este risco, especialmente mulheres, negros e pessoas de baixo status socioeconômico”, explica Mendes, uma das pesquisadoras do Meninas na Ciência. Ao serem submetidas à realização de tarefas específicas sob influência da ameaça pelo estereótipo, os níveis de estresse e ansiedade aumentam, dificultando a atividade em execução.
Margareth Hamilton: ao lado do sistema de orientação e navegação da missão Apollo, que escreveu manualmente com sua equipe do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). Por suas contribuições à ciência, a engenheira de software recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade em 2016. (Foto: Reprodução/MIT Museum)
Quase todos conhecem ou já ouviram falar em personalidades como Albert Einstein, Nikola Tesla, Isaac Newton ou Charles Darwin. Ainda que as pessoas não estejam necessariamente familiarizadas com os feitos desses senhores, sabe-se que tais cientistas são referência em seus campos de estudo. Inclusive, são considerados, muitas vezes, como fonte de inspiração para diversos indivíduos. Mas e quanto às cientistas mulheres? Por qual razão elas não são lembradas tão automaticamente quanto os homens citados logo acima?
Faça o seguinte exercício reflexivo: elenque cinco pesquisadoras de destaque na carreira acadêmica e suas realizações. Essa é uma tarefa um pouco mais complicada de ser concluída, mesmo que estas cientistas tenham tido papel fundamental no desenvolvimento do conhecimento humano.
Por exemplo, você já ouviu falar de Annie Jump Cannon, a física norte-americana responsável por catalogar mais de 250 mil estrelas através de sistema único criado por ela? Ou de Maria Gaetana Agnesi, a matemática espanhola que descobriu uma solução para equações que, até hoje, é utilizada? Ou então de Cecilia Payne-Gaposchkin, a astrofísica que desvendou os elementos que compõem as estrelas, além de autora da tese de doutorado considerada a mais brilhante da história?
O desconhecimento perante essas especialistas pode parecer uma questão meramente trivial. Contudo, em vista das descobertas revolucionárias dessas estudiosas, qual a explicação para seus nomes permanecerem, até hoje, escondidos dos livros de história?
A leitura sobre os feitos femininos no campo científico é ainda considerado algo difícil de ser encontrado nas mídias, mesmo após a facilitação de acesso à informação pela internet. E a carência nesse tipo de informação pode ser um elemento decisivo para as meninas e jovens que desejam ingressar na carreira acadêmica, mas não enxergam um modelo passível de ser seguido. “As mídias deveriam assumir um papel mais primordial na divulgação das conquistas femininas, seja com relação às descobertas, olimpíadas científicas ou cargos de relevância ocupados por essas pessoas”, pontua Gabriella da Silva Mendes.
Sabrina Gonzalez Pasterski: é considerada a sucessora de Einstein. Aos 14 construiu seu próprio avião, acontecimento que abriu as portas para sua formação antecipada no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Seus estudos atuais envolvem buracos negros e física quântica, chegando a ser citada no trabalho de Stephen Hawking. (Foto: Reprodução/Instagram @sabrina.pasterski)
Suzane Herculano-Houzel: ex-neurocientista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das maiores neurobiólogas do mundo. Em maio de 2016 teve de abandonar a faculdade carioca em vista da precariedade de recursos e equipamentos nas quais trabalhava em seu laboratório. Suzane desenvolveu um sistema único para a contagem das células cerebrais, permitindo que novas teorias sobre a evolução das espécies fossem formuladas. Apesar do sucesso na elaboração desse procedimento, ele foi insuficiente para que a cientista permanecesse com seus estudos no Brasil, migrando a convite para a Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. (Foto: Wikimedia Commons)
Se os diversos desafios presentes na infância e na adolescência não levam as mulheres a abdicarem do campo científico, após a escolha de seu curso de graduação e sua carreira outros obstáculos surgem.
Mesmo as mulheres representando a maioria das estudantes universitárias, com 57,2% das matrículas (segundo dados do Censo da Educação Superior de 2016, última edição do levantamento), a graduação mostra-se ainda como um cenário desigual para essas alunas. Uma realidade que pode ser notada, inclusive, nas salas de aula.
A mesma pesquisa do Ministério da Educação mostrou que as docentes mulheres representam menos da metade do corpo de trabalho do ensino superior, com apenas 45,5% das vagas. E o cenário é ainda mais grave quando analisada essa relação perante os cursos de ciências exatas.
A Universidade Estadual Paulista (Unesp) é uma das maiores intuições de ensino superior público do Brasil. Com seu formato multi-campi, ela possui unidades em 24 cidades do estado de São Paulo. Em seis dessas unidades é oferecida a graduação em Física. Apesar dessas instituições estarem localizadas em distintas regiões do estado, todas apresentam a mesma característica com relação ao curso: a prevalência do sexo masculino. Dos 105 docentes que lecionam para estes futuros físicos, apenas 14 são professoras.
Evento similar acontece na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), segundo a Revista de Ensino Superior. De acordo com a publicação, essa instituição apresenta 81% de alunos e 87% de professores do sexo masculino na graduação. “Na época da graduação, minha turma era majoritariamente formada por homens. Hoje, somos poucas as que se envolveram com a área de campo de fato. E não acho que isso aconteceu por falta de interesse das minhas colegas, mas sim por preferências das instituições em contratar homens com ‘um perfil mais de campo’”, recorda a geógrafa Meline Machado.
Johanna Döbereiner: Uma das poucas brasileiras indicadas ao prêmio Nobel, Johanna foi uma agrônoma e pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Responsável por realizar estudos relacionados ao cultivo da soja e da produção de etanol, sua investigação sobre a fixação de nitrogênio permitiu que uma quantidade maior de pessoas tivesse acesso a alimentos mais baratos. (Foto: Acervo Embrapa)
Os primeiros cursos de graduação em Física no Brasil nasceram em meados dos anos 1930, na Universidade de São Paulo. Contudo, o país só ganharia a sua primeira doutora nesse campo em 1948, com a estudiosa Sonja Ashauer.
Sonja, por si só, fazia parte de uma parcela minúscula da população nacional: era mulher e especialista em uma área das Ciências Exatas – título incomum para alguém do sexo feminino possuir, tanto em sua época como hoje em dia. Porém, foi por meio de desbravadoras como a especialista que o caminho foi aberto para que mais pesquisadoras conquistassem seu espaço na ciência.
Mesmo Sonja tendo recebido sua especialização nos anos 1940, o Brasil só viria a ter a sua primeira negra doutora em física em 1989, quando a cientista Sônia Guimarães retornaria da Universidade e Instituto de Ciências e Tecnologia de Manchester (UMIST, na sigla em inglês), na Inglaterra, com sua tese aprovada.
Sônia, nos anos em que morou no Brasil, fez graduação e mestrado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) – até surgir a oportunidade no Reino Unido. Quando regressou a seu país de origem, começou a prestar concurso em instituições de ensino, sendo aprovada em algumas delas. Na hora de decidir sobre qual organização escolher, optou pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). “Na época eu tinha entrado para a Universidade São João Del Rei, na qual eu lecionei por dois meses. Ao mesmo tempo, eu havia feito concurso para o ITA, no qual eu também tinha passado. Minha mãe me disse que São José dos Campos (sede do ITA) era uma escolha mais perto do que São João Del Rei. Então optei pelo ITA. Para minha mãe, na verdade, tanto fazia as duas instituições, o que importava era a distância”, recorda Sônia.
Tu Youyou: farmacologista chinesa e vencedora do prêmio Nobel em 2015. Youyou e seu grupo de colegas estudaram diversas doenças infecciosas transmitidas por parasitas. Na década de 1970, baseada no campo da medicina natural chinesa, ela conseguiu extrair das plantas uma substância que inibe o parasita da malária, a artemisinina. As drogas baseadas nesse elemento levaram à sobrevivência e melhoria da saúde de milhões de pessoas. (Foto: Wikimedia Commons)
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