Com a hiperconcentração de museus nas regiões sul e sudeste e em poucos municípios, o acesso físico aos acervos de arte do país ainda é um privilégio da população dos grandes centros econômicos e urbanos
Por Beatriz Milanez e Bianca Moreira
Segundo um levantamento feito pela nossa equipe a partir da base de dados do Cadastro Nacional de Museus (CNM), sistema que mapeia as instituições museais do país, apenas 23,3% das cidades brasileiras possuem museus e 68,5 % de todas as instituições estão localizadas nas regiões sul e sudeste.
São Paulo é o estado que possui mais museus, com 638 unidades. No entanto, dentro do próprio estado há mais centralização: somente 33,6% dos municípios paulistas possuem museus e a capital concentra 25,2% deles.
Segundo o relatório “Investimentos no Setor Museal”, publicado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em 2015, apenas 23,8% da verba destinada aos museus advém de recursos orçamentários do Tesouro: unidades orçamentárias estatais; como o Ministério da Cultura (Minc); Instituto Brasileiro de Museus (Ibram); Fundo Nacional de Cultura (FNC); Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); Fundação Cultural Palmares (FCP); e Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB).
Os outros 76,11% da verba total advém de Incentivo Fiscal, através de projetos. Um deles é o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que capta recursos de empresas privadas e de pessoas pagadoras de impostos.
Essa dinâmica faz com que alguns estados sejam mais beneficiados do que outros, já que as empresas que são incentivadoras fiscais não estão distribuídas de forma uniforme pelo país. De acordo com o relatório, 32,9% dos incentivadores fiscais do setor museal estão no estado de São Paulo. Em 2015, o mesmo estado fez a maior captação de recursos por incentivo fiscal, arrecadando 60,5%, seguido pelo Rio de Janeiro, que captou 17%.
Esse cenário reflete de forma expressiva em cidades onde há poucos incentivadores fiscais, como é o caso de muitas cidades do interior. Luiza Mendes Barbosa, museóloga e coordenadora dos museus de Bauru, relata que é um desafio trabalhar com pouca verba: “a gente tem uma verba bem reduzida. A Pinacoteca, por exemplo, sobrevive a partir de parcerias. É um desafio trabalhar aqui. Sem divulgação e com uma equipe pequena é difícil quebrar a imagem do Museu como um lugar inóspito. É difícil atrair um público mais diverso. A gente faz de tudo, mas ainda temos alguns empecilhos. Seria fundamental abrir os museus aos finais de semana, por exemplo, mas por falta de verba e de funcionários não conseguimos”, expõe.
Paulo Miyada acrescenta que a falta de uma política cultural continuada acaba afetando não só as cidades que possuem menos recursos, mas também toda articulação do universo artístico do país. “Não temos uma escala de política cultural continuada e isso fica evidente quando tentamos trazer projetos de artistas menos consagrados ou de outras regiões do país para o Instituto. Por falta de uma infraestrutura básica nas outras regiões, deixamos de amadurecer projetos que poderiam trazer outro nível de visibilidade para as produções feitas fora do eixo Rio-São Paulo. Até mesmo para os artistas que já fazem parte do mercado, que poderiam mostrar seu trabalho para o Brasil e acabam mostrando apenas para São Paulo e para o Rio, quando muito”, problematiza.
Curadoria é uma atividade realizada por um profissional responsável por produzir a parte conceitual de uma exposição. O curador é quem faz a escolha das obras. É ele o responsável por: disposição das peças no espaço da mostra; itinerário percorrido; levantamento de informações sobre o artista e as obras; elaboração do catálogo informativo.
Como atua nesse papel, Paulo Miyada ressalta que o processo de curadoria vai muito além das subjetividades, do gosto e repertório pessoal do curador. Este tem a missão de tornar os conteúdos mais acessíveis possível a todos.
“O curador é que vai tomar decisões sobre como compartilhar essa experiência com o máximo cuidado. Ele é público, como todo mundo, mas se procura em compartilhar, da melhor maneira possível, a fruição artística Não é para dirigir a experiência do público, mas para fortalecer. Ele tenta reconstituir as condições mais intensas possíveis, para que esses trabalhos possam existir junto de um público muito diverso”, Paulo Miyada.
Apesar da importância desse profissional para a construção da identidade dos museus, e para a organização e democratização dos conteúdos das exposições, a maior parte das instituições museais do país não possui um profissional exclusivo dessa função. De acordo com o artigo “Dimensão Econômica da Cadeia produtiva à Gestão Sustentável”, publicado pelo Ibram, em 2014, 62,8% dos museus brasileiros têm curadoria. Somente 25,7% das instituições consideram-na como atividade prioritária.
A pesquisadora Karen Kipnis acredita que isso é preocupante: só é possível uma experiência museológica completa através da interação entre objeto, as pessoas e o próprio espaço físico do museu. A falta de curadoria, segundo ela, pode trazer uma lacuna enorme na concretização dessa experiência e, consequentemente, na formação de público.
“A fruição artística não é completa se um museu não possuir uma curadoria para causar uma relação entre o expectador e o objeto, para dar uma justificativa do porque ele está lá e do porque foi escolhido naquele momento. Muitas exposições acabam ficando muito jogadas, sem muitas explicações. Ainda temos muitos museus que não compreenderam a importância de estabelecer uma aproximação com o público”, enfatiza Karen Kipnis.
A priori, a função social dos museus era limitada apenas a guardar objetos sacralizados. Na contemporaneidade, o cenário dessas instituições culturais já mudou de configuração: o objetivo agora é encontrar um diálogo com o público. “Se não tiver público, ele [o museu] não acontece. Ainda assim, ao mesmo tempo em que há os que estão preocupados em fazer essa aproximação, existem outros que não tem condições para tal, por questões de falta de recursos humanos e financeiros”, explica Karen Kipnis.
Felipe Tenório, Bacharel em Artes Visuais, coordenador de Projetos no Instituto Arte na Escola e ex-coordenador de Educação e Mediação do Instituto Tomie Ohtake, acredita que as instituições museais cumprem apenas parte de sua função social. Isso porque, segundo ele, também é papel dos museus trazer produções de toda a comunidade, incluindo as minorias que ainda não estão presentes nos acervos tradicionais. “O trabalho, por exemplo, da Guerilla Girls, que é um coletivo de artistas feministas, mostra muito bem isso. Elas questionam qual é a representatividade, em especial de mulheres e negros, dentro dos museus”, indaga ele.
O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), por exemplo, foi criado apenas em 2009. A partir daí, colocou-se em prática o Estatuto. Nele consta que “os museus deverão promover ações educativas e a participação comunitária, contribuindo para ampliar o acesso da sociedade às manifestações culturais […]”. Ademais, é função dos museus arcar com a criação de projetos de exposições adequados, de acordo com a linha curatorial de cada instituição, para que seja promovido o acesso a esses locais e o incentivo das artes no âmbito educacional.
Pouco se fala do museu como espaço político, no entanto. Trata-se, também, de um local de identidade e identificação: aberto a discussões e que dá poder a quem o freqüenta. “É um espaço de vanguarda, de cultura. As pessoas deviam se aproximar mais dos museus para entender não só a função de fruição artística, mas para democratizar a cultura”, opina Luiza Mendes Barbosa.
Como consequência aos deveres exigidos pelo Estatuto, programas que viabilizam algumas questões foram idealizados. É o caso do Programa Nacional de Educação Museal (PNEM). O projeto, lançado, pelo Ibram, em 2011, tem como objetivo central custear a atuação profissional dos educadores, para que o meio profissional ganhe mais força e os próprios funcionários da área possam ter condições de praticar atividades educacionais dentro dos museus. Contudo, quem trabalha no setor ressalva: “atuar em museus traz um público restrito, mesmo os professores sendo interessados. O alcance não é tão grande”, conta Felipe Tenório.
A ideia de promover um encontro entre local e público engloba, instintivamente, a missão educativa dos museus. O educativo traz o conceito de problematizar: questionar o porquê de um recorte em certa obra de arte, bem como quem está representado nesse recorte e quem foi que o selecionou. Felipe Tenório vê uma conjuntura positiva no cenário brasileiro: “os projetos educativos funcionam em diálogo com o trabalho escolar. O objetivo é enriquecer o processo de ensino de arte e facilitar o acesso”, defende.
Tenório enxerga alguns fatores para a baixa freqüência no acesso às instituições. “No Brasil, a formação de artes é uma formação de imagens. Não há uma frequência grande nos espaços institucionais, por conta disso. Quando se pensa no estudo das obras e nos artistas, o conhecimento se dá via livros ou via internet. É uma relação muito mais com a imagem do que com a obra em si”, complementa.
Soma-se à função sócio-educativa dos museus, então, os desafios de trazer novos e maiores públicos. O número de visitantes, por mais que tenha aumentado, se difere, quando se compara dados dos grandes centros urbanos com cidades do interior.
De fato, os museus ainda mantêm certa distância do público geral, passando uma imagem pouco convidativa aos potenciais novos públicos. Outras maneiras estão sendo utilizadas para que novas pontes façam essa ligação, como é o caso da internet. “As imagens dizem muito. Não é preciso conhecimento prévio para ser tocado por alguma obra. A internet quebra essa barreira institucional que coloca o artista de uma forma distante e inatingível, e possibilita um diálogo mais próximo de diferentes públicos. Vejo como uma tendência e excelente forma de disseminação de artistas”, pontua Ana Elise Ferrari, artista visual e idealizadora do Projeto Curadoria.
O projeto – um site que serve de galeria para artistas mulheres – nasceu de uma motivação pessoal da artista, que e enxergou na internet uma possibilidade de se conectar as pessoas. Trata-se de um trabalho que visa compartilhar conhecimento e inspiração; entender questões humanas através da expressão de histórias das próprias mulheres. Ana Elise conta que escolheu as artistas que “se expressam principalmente através de produções visuais. Mas aos poucos tenho procurado representar novas formas expressivas, como a escrita, a performance e a dança”.
As entrevistas entre Ana Elise e potenciais artistas acontecem por e-mail: estão todas conectadas. O número de interessadas no projeto é crescente, e são as mulheres que procuram o site. “Elas precisam fazer um esforço maior para ter seu trabalho reconhecido, por isso são mais ativas em relação à divulgação do próprio trabalho em diferentes meios. Essas artistas são muito abertas às parcerias e trabalhos em colaboração entre elas. Além da presença na internet, muitas também buscam feiras, lojas colaborativas, exposições coletivas organizadas por elas mesmas e até montam coletivos de ajuda mútua”, pontua a idealizadora do projeto.
Antes mesmo do surgimento da internet, os modelos alternativos de exposição já eram procurados, como é o caso do Museu da Pessoa, que hoje compartilha histórias de quaisquer cidadãos nas redes digitais. Nesse caso, qualquer um pode inserir a própria história no site, além de ter a capacidade de colaborar com a história do outro. A ideia é que o público colabore e crie de forma coletiva. “Agora estão digitalizando todo o acervo de 25 anos atrás. Além de escolher as histórias, o museu tem que pensar nas mídias, em quais nuvens salvar os arquivos”, explica a responsável pelo museu, Karen Kipnis.
O acervo do Museu Pessoa é composto por histórias de vida tidas como patrimônios da humanidade. É um local que funciona para além da obra de arte no sentido tradicional. O povo cria suas histórias e ganha espaço para colocá-las no mundo, com visibilidade e voz.
Ainda assim, reconhecimento é algo difícil de alcançar, no mundo da arte. Leandro Ferreira é artista plástico em Bauru, e há 15 anos luta por espaço na cidade. “Até hoje a minha arte não é bem recebida aqui. É difícil ser artista em alguns ramos, é comum o profissional ser visto como vagabundo. As pessoas não dão valor à arte. É algo desvalorizado, até porque arte não é bem explicada na escola. O despertar da arte no aluno é muito fraco”, problematiza.
Devido à falta de apoio e incentivo, a capacidade de artistas exporem em instituições de renome é limitada. Isso porque, muitas vezes, quem tem de arcar com as despesas é o próprio expositor. Leandro conta que “Bauru tem a ideia de que, se você é artista da cidade, você não recebe. Diversas vezes fui convidado para expor de graça. Hoje, já não tenho o sonho de fazer uma exposição em um museu. Na verdade, quem possibilitou que eu crescesse como artista foi a internet, que é uma vitrine mundial muito mais democrática que o museu”, conclui.