Em meio a manifestações atuais contra o governo Temer, entenda o comportamento repressivo da Polícia Militar e suas origens
Por Giovanna Falchetto e Tatiana Olivetto
Quarta – Feira, 31 de Agosto de 2016, poucas horas após o Senado votar à favor do Impeachment da então presidente Dilma Rousseff, às 18:30 tinha início o ato contra a tomada de posse de Michel Temer. Em frente ao MASP (Museu de Artes de São Paulo Assis Chateaubriand) dois grupos manifestavam suas ideias políticas; um pequeno grupo comemorava o resultado do voto do Senado, enquanto outro, em maior número de pessoas, protestava o por eles denominado golpe de Estado.
O ato, convocado pelo coletivo Luta pela Democracia, ocupou as duas faixas da Avenida Paulista e após cerca de duas horas, seguiu sentido Consolação; foi quando a situação fugiu do controle. Na descida para o centro de São Paulo, por volta das 20 horas, houve um desentendimento entre os manifestantes e os policiais. Bombas de efeito moral foram lançados sobre os manifestantes, para dispersar o movimento; caminhões da Tropa de Choque foram usados, ao jogar jatos de água nos manifestantes. Algumas das pessoas foram perseguidas até o Centro; um grande número de manifestantes, não divulgado pela PM (Polícia Militar) ficou ferido e teve de ser atendido pela Santa Casa.
Casos como esse do dia 31 são mais comuns do que a mídia apresenta. Em Dezembro de 2015, quando Eduardo Cunha, então Presidente da Câmara dos Deputados, aceitou a denúncia por crime de responsabilidade contra Dilma Rousseff, o país se dividiu por conta de ideias políticas; aqueles que eram a favor do impeachment, da tomada de posse do então vice presidente Michel Temer e aqueles que o chamavam de golpe. Manifestações ocorreram durante o processo e casos de violência policial não foram raros durante as manifestações.
Duas categorias de manifestações ocorreram durante esse tempo e apenas uma foi duramente reprimida. Em todas as manifestações contra a tomada de posse de Michel Temer houveram casos de repressão por parte da PM, indicando uma possível relação da repressão policial por parte do Estado. Isso fez com que muitos cidadãos relacionassem os fatos com a Ditadura Civil Militar, período em que a repressão militar era escancarada e brutal.
O governo de Temer está marcado como um dos mais insatisfatórios da política brasileira, devido ao número de cidadãos que manifestam uma opinião contrária, com 70% de reprovação. A repressão a essas manifestações parte da polícia militar e do seu relacionamento com o governo. A repressão nem sempre é física, como no fato ocorrido durante o desfile de 7 de Setembro (Dia da Independência do Brasil) no Planalto. Durante o desfile o discurso dos policiais era um: “Qualquer ato de manifestação contra o atual presidente e a pessoa será banida do evento”. Mesmo com esse discurso, o desfile começou com os gritos “Fora Temer” e “golpista”.
A relação de repressão do governo para com a população, por meio da polícia não é exclusividade do Brasil ou dessa época. O próprio país já sofreu de algo ainda mais recorrente, escancarado e brutal como a Ditadura Militar que começou na década de 60 e terminou na década de 80. Os próprios presidentes eram militares e/ou possuíam alguma relação muito próxima com os militares. Foi uma época complicada para a política e seu debate. Opiniões contrárias à do governo eram rechaçadas, seguidas de tortura e até morte.
Fatos assim ocorrem, em democracias consolidadas e que ferem de forma direta os direitos civis. Questionado sobre a situação atual da atuação da PM nas últimas manifestações, o professor de Direito Constitucional Conrado Mendes, da faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) respondeu: “Nessas últimas manifestações de massa, a PM pecou, curiosamente, mais pela omissão do que pela ação. Não houve a brutal repressão que assistimos nos casos do Movimento Passe Livre e dos estudantes secundaristas, para ficar com exemplos mais imediatos. Por outro lado, a PM permaneceu inerte diante de agressões verbais e sobretudo físicas entre os manifestantes (em geral, agressões contra os enquadrados no estereótipo “petista”). Também demorou quase dois dias para agir quando um grupo diminuto pró–impeachment bloqueou a avenida Paulista para protestar contra a nomeação de Lula. Bloqueou a Paulista, nada menos que isso. Que manifestação conseguiu fazer isso, em plena quinta-feira, de surpresa, com apenas algumas dezenas de pessoas?”
Histórico Policial
No ano de 2014, o país presenciou a entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Essa Comissão foi instituída em maio de 2012 pela então presidente Dilma Roussef, a fim de investigar a fundo crimes e violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura militar. Após dois anos de estudos e investigações, percebe-se uma premissa que permeia nosso país: a Segurança Pública Brasileira é improdutiva, age com extrema violência e reproduz discursos de desigualdade social.
“A Polícia Militar tem uma organização e formação preparada para a guerra contra um inimigo interno e não para a proteção. Desse modo, não reconhece na população pobre uma cidadania titular de direitos fundamentais, apenas suspeitos que, no mínimo, devem ser vigiados e disciplinados, porque assim querem os sucessivos governantes, ontem e hoje”, diz o capítulo sobre a militarização brasileira, presente no relatório final Comissão da Verdade “Rubens Paiva”.
Para a Comissão Nacional da Verdade, os abusos policiais e os números altos de violência são apenas continuidade do período ditatorial e que a polícia militarizada é uma “anomalia”, uma vez que ela é treinada para combater o inimigo e não proteger o cidadão. A necessidade de uma reforma na segurança e da desmilitarização é algo que grita toda vez que algum crime é cometido por policiais ou justificado por “legítima defesa”.
A necessidade de reforma política se justifica através dos números da violência no país. No ano de 2016, foi divulgado o Mapa da Violência, estudo feito por Julio Jacobo Waiselfisz, sociólogo e coordenador da Área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Segundo dados desse estudo, o Brasil teve 57 mil assassinatos no ano de 2014, o que corresponde a 6,5 crimes por hora. O número de homicídios por armas de fogo passou de 6.104, em 1980, para 42.291, em 2014, um crescimento de 592,8%. A vitimização da população negra do país, que em 2003 era de 71,7%, em 2014 alcançou 158,9%, o que significa que morrem 2,6 vezes mais negros que brancos vitimados por arma de fogo. Em escala mundial, o Brasil, que possui taxa de 20,7 homicídios por arma de fogo por cada 100 mil habitantes, está na 10ª posição entre os 100 países analisados.
Segundo dados da 9ª edição do Anuário de Segurança Pública, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2014 também, policiais civis e militares mataram ao menos 3.022 pessoas no Brasil, numa média de oito vítimas por dia e um total que supera o número de mortes no atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos em 2001, em que 2.977 pessoas morreram.
De acordo com Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional do Brasil, a polícia de São Paulo matou em apenas seis meses, aproximadamente, quase o que todas as polícias dos Estados Unidos matam em um ano: “Isso reforça um padrão histórico de alta letalidade nas ações policiais decorrente de um conjunto de fatores, que incluem uma polícia formada para a “guerra” e para a eliminação do “inimigo”, despreparo técnico e psicológico dos profissionais que atuam na ponta do policiamento e, sobretudo, uma doutrina de segurança pública estruturada desde sempre por uma lógica de repressão e controle das “classes perigosas””. Estes fatores levam a uma alta concentração de jovens negros e pobres da periferia entre os mortos pela polícia, comenta o diretor.
Trechos do relatório produzido pela Comissão da Verdade informa que o caos instaurado pela excessiva violência da Polícia, que impede a efetiva segurança, é a incapacidade do regime militar se adequar às normas de um regime democrático: “A Polícia Militar foi e continua sendo um aparelho bélico do Estado, empregada pelos sucessivos governantes no controle de seu inimigo interno, seu próprio povo, ora conduzindo-o a prisões medievais, ora produzindo uma matança trágica entre os residentes nas periferias das cidades ou nas favelas”, afirma o texto divulgado pela Comissão. O fato da polícia ter se fortalecido na época da ditadura militar ainda se reflete nos dias atuais; mesmo com a democracia imperando no país, vive-se num estado de alerta, onde a polícia vive para proteger o Estado e manter o controle político e não para garantir a segurança e prevenir a violência.
Na linha do tempo do Brasil, desde a criação da polícia nos tempos da Colônia até a República, sua criação desde os primórdios como responsável por consolidar a ordem interna de maneira militarizada. Tanto para garantir a ordem e a subimissão dos escravos na época da Colônia quanto para ser um exército particular a serviço da elite cafeeira. Essa força se consolidou em 1967, através do decreto da Doutrina de Segurança Nacional, que relatava a ideia da polícia como repressora a fim de combater um inimigo interno, que na época era o comunismo. É aí que se forma a ideia de uma polícia interna, afirma Fábio Gonçalves, coronel reformado da Polícia Militar: “O Exército tem o seu inimigo externo, mas na Doutrina de Segurança Nacional se cria a figura do inimigo interno, que é para fazer o combate à luta armada”. De lá pra cá, com a consolidação da ditadura, há a formação da Polícia Militar tal como se conhece hoje, através da unificação entre a Força Pública e as Guardas Civis Estaduais.
Os tempos da ditadura deixaram resquícios na sociedade; o legado deixado para a polícia atual perdura até os tempos de hoje. De acordo com Luiz Eduardo Soares, ex-funcionário da Secretaria Nacional de Segurança Pública, algumas práticas repressivas e o treinamento policial com intuito de propagar a violência ainda é presente: “Nós nos esquecemos que a transição da democracia passou de forma insuficiente pelas áreas da Segurança Pública. Até 1996, na formação da Polícia Civil do Rio de Janeiro havia aulas sobre como bater. Não é defesa pessoal, porque é indispensável, é como bater”. De acordo com Luiz Eduardo, o BOPE oferecia, até 2006, aulas de tortura. “E não estou me referindo, portanto, apenas às veleidades ideológicas de um e de outro, nós estamos falando de procedimentos institucionais”.
A polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo e é uma das que mais possuem assassinatos de policiais. Segundo dados do relatório divulgado pela Comissão da Verdade, são 490 só em 2013, 43 a mais do que em 2012. Esse fator é condicional para alguns policiais de baixa patente concordarem com a desmilitarização, uma das principais medidas que amenizariam a questão da violência policial.
Outro fator é uma maior intervenção política. “É necessário um comprometimento mais amplo de todas as esferas do estado, em especial do governador e das instâncias legislativas, para a implementação de políticas efetivas de redução da letalidade, o que inclui não apenas treinamento e protocolos claros sobre as circunstâncias em que o uso de armas de fogo é aceitável, mas, sobretudo, investigação rigorosa e independente sobre as situações que resultam em mortes de suspeitos”, afirma Atila Roque. Para o diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, sem uma mudança na doutrina da segurança pública e na estrutura militarizada das polícias, juntamente com um compromisso efetivo das altas autoridades do estado, com um policiamento voltado para a garantia do direito à segurança pública de todas as pessoas, independente da classe social, local de moradia ou cor da pele, continuaremos a conviver no Brasil e em São Paulo com a triste realidade de ter uma das polícias que mais mata e mais morre do mundo.
Polícia x Política
Diante dos casos de abuso policial em manifestações, muitas vezes de cunho político, percebe-se que a polícia cada vez mais se torna um instrumento dos ideais do atual governo; esse vínculo vai muito além de apenas prestar um serviço público à sociedade. Como a própria história política brasileira demonstra, a relação de instaurar o medo e a ordem social sempre causou um efeito positivo no sentido eleitoral, fazendo com que os políticos ganhassem vantagens ao instaurar esse tipo de postura. Essa dependência é consciente por parte dos policiais, que fortalecem e afirmam a sua ação violenta através dessa atitude repressora dos políticos.
Conforme analisa o professor Conrado Mendes, a polícia está desamparada e é preciso trazê-la à democracia: “A polícia tornou-se marionete dos políticos mais primitivos da democracia brasileira. É instrumento para realização de objetivos políticos escusos: pratica a repressão violenta de demandas populares, dissemina o medo, oferece casos numerosos para os programas sensacionalistas que celebram qualquer coisa que a polícia faça”. Segundo ele, os policiais são mal remunerados, trabalham em situação precária e de alto risco, mas continuam sendo agentes disciplinados de uma política que só os prejudica. “São reféns da própria miopia”, analisa Conrado.
Em casos de manifestações, existem diversas leis e parâmetros que cerceiam a ação policial e previnem atitudes violentas. A Organização das Nações Unidas possui parâmetros em casos como esses; existem normas constitucionais, decisões de cortes internacionais de direitos humanos e normas internas da própria Polícia Militar. Porém, nada é respeitado e a ação da polícia fica acima do bem e do mal, uma vez que ela garante a “segurança nacional”. Conrado conclui que ações da PM são antijurídicas sob qualquer uma dessas referências normativas: “Mas como o Governo estadual prefere blindar a polícia e jogar fumaça sobre os fatos, o Ministério Público não exerce seu dever de controle, e a mídia de massa não problematiza, o que produzimos, de fato, é a imunidade policial, uma zona sem lei dentro do regime democrático”.
Analisando os fatos aqui expostos, entende-se a relação da polícia com o Estado como dependente um do outro. Observa-se que as manifestações com altos índices de violência policial e de repressão, são aquelas que pleiteiam por objetivos que vão contra os interesses políticos do governo vigente. O meio político se aproveita da força policial para poder fazer valer os seus interesses, instaurando a ordem social e, consequentemente, deixando a população em alerta. Já a polícia, afirma as suas ações através do aval do governo. O jurista Marcelo Neves conclui: “Estamos caminhando para um Estado policial”. Criticar apenas a polícia, que se vê no fogo cruzado, é um erro, uma vez que a política é responsável por esses atos.