Entenda melhor a trajetória das mulheres na arte e a importância da representatividade
Quando o assunto é arte, elas marcam presença tanto quanto os homens, mas nem sempre são vistas. Na moda, na música, na pintura, na literatura, na arquitetura ou em qualquer outra forma de expressão artística: elas fizeram (e fazem) história todos os dias e, infelizmente, muitas de suas obras ainda são atribuídas a artistas homens. Há igualdade de gênero na produção cultural? Basta lembrar e listar: quantos artistas homens você conhece? E artistas mulheres? Os números respondem.
Elas começaram há muito tempo. Christine de Pisan, franco-italiana do período medieval, por exemplo, foi a primeira mulher a viver do seu próprio trabalho e, ainda, a primeira mulher a escrever sobre feminismo. Pouco depois, na Inglaterra Virginia Woolf fez história na literatura modernista do período entre as duas guerras mundiais.
Na música, Chiquinha Gonzaga não só foi a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil como também a primeira compositora popular e a primeira chorosa (pessoa que compõe, toca ou canta choro – gênero de música popular e instrumental brasileiro). Nos Estados Unidos, a voz de Aretha Franklin ecoa para mostrar que não à toa ela foi a primeira mulher a entrar no Hall da Fama do Rock’n Roll.
Na pintura, Sofonisba Anguissola teve muitos de seus quadros confundidos com os de Leonardo da Vinci e outros artistas homens de seu tempo. Renascentista e pintora da corte espanhola por cerca de 20 anos, Sofonisba foi a primeira mulher a se tornar famosa dentro das artes plásticas. No Brasil, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti marcaram presença na Semana de Arte Moderna de 1922.
No México, a pintora Frida Kahlo não só se tornou um ícone na arte como também um grande símbolo de resistência para muitas mulheres. Foi um das primeiras a expressar a identidade feminina e a confrontar padrões de beleza, quebrando muitos tabus sobre corpo e sexualidade.
Além dessas, muitas outras mulheres marcaram (e ainda marcam) a história do mundo todo, expressando aquilo que veem, sentem e pensam através da arte. A produção cultural feminina aumenta a cada dia e cada vez mais mostra sua força.
“Simplesmente surge”: é assim que a ilustradora Mariella Patti resume o seu. Ela acredita que todos os livros, filmes, músicas, seriados, peças de teatro, textos, conversas, pessoas, vivências viagens e mudanças que ficam armazenados no inconsciente emergem como criação artística quando tem que ser colocado para fora.
Filha de uma artista plástica e professora de arte, Mariella teve contato com o mundo artístico desde pequena. Mas, nunca se envolveu com ele por não acreditar ter habilidade nem sentir conexão com o meio. Depois de se formar na faculdade na área da ciência, entrou numa fase de autoconhecimento e mudanças e, na busca de tentar entender quem estava se tornando, explodiu em arte. “Um dia simplesmente peguei um lápis, tentei desenhar e deu muito certo – até hoje não sei explicar. A partir daí a arte tem sido meu maior meio de autoconhecimento, que me ajuda a me descobrir como mulher, a entender o poder que todas nós temos, a me valorizar e a lutar contra a posição inferior e submissa que a sociedade nos impõe”, conta.
“Além da música, eu também desenho, escrevo, faço artesanato, cozinho, crio filhos… E tudo isso requer criatividade!”: explica cantora e compositora Cátia Machado, que faz de seu processo criativo uma forma de expressão daquilo de que deseja transmitir. Com pai e mãe artistas, ela não poderia seguir outro rumo: “Sou artista. Nasci para isso e falo sobre isso em minhas músicas. Meu primeiro contato com a arte deve ter sido quando comecei a perceber o mundo, quando criei minha primeira historinha imaginária, fiz minha primeira música no chuveiro, meu primeiro castelinho de areia…”
“A melhor e a mais tocante forma de expressão vai ser, sempre, através da arte! Através dela, de sua beleza e sensibilidade, nossa alma é tocada sem os filtros da racionalidade com que nos acostumamos a viver.” – Cátia Machado
“Processo criativo? Eu não tenho isso, a minha arte não é racional, é emocional totalmente, é alma… Só”: reflete a cantora e instrumentista Marthynha Ferraz. Para ela, arte é manifestar pensamentos e é através do seu canto que transmite as ideias em que acredita. Além de cantora, é também professora de música.
Seu contato com a música começou quando ainda estava na barriga de sua mãe, que era cantora na Igreja Presbiteriana. “Acho que cantei antes mesmo de falar”, conta. Aos 15 anos já dava aulas de violão e não demorou muito para começar a cantar profissionalmente. “Se eu fui uma desbravadora eu não sei, mas fui uma das primeiras mulheres a cantar em barzinhos em Bauru. Lá por 1978 e 1979 eu já cantava”, revela.
De acordo com Cátia, se não está na grande mídia, a arte é tratada como um trabalho menor e, assim, tratada como hobbie. “Meu pai desenhava, pintava, cantava. Minha mãe tocava piano, acordeom e percussão. Na arte, eram autodidatas. Profissionalmente, bancários”, conta. A cantora explica que no capitalismo a arte é um assunto menor, e complementa: “Mulher é, historicamente, um gênero que pode menos. Juntar os dois ingredientes, mulher e arte, na mesma receita, sem dúvida será um prato indigesto para muitos tradicionalistas por aí.”
“Se você me perguntar: ‘Cátia, mas o mundo não está mudando?’, obviamente vou responder que sim. Mas o que eu planto hoje, colho somente na próxima safra. Hoje, ainda colhemos muito do que foi plantado antes destes valores começarem a mudar”, ela ainda ressalta.
Para a ilustradora Mariella, a maneira como a sociedade enxerga a mulher artista é paradoxal, já que a sociedade vê a arte como uma atividade “menor”, um hobbie e, portanto, “coisa de mulher”. Ela ainda conta: “Quando digo que sou artista pra alguém que não é do meio, percebo esse tipo de reação, como “ah que bonitinho, ele faz uns desenhos”, até incentivando, mas sem dar muito valor, como se não fosse algo sério, uma profissão – tanto que acham estranho quando peço valores que não são muito baixos pelos meus trabalhos. Só que quando é pra olhar pra arte como trabalho sério, profundo, valorizado, os artistas homens tem muito mais espaço e saem na frente. Se um cara é competente e faz algo diferente é muito mais fácil que ele seja levado à sério, visto como um artista ‘de verdade’, e consiga ter uma carreira considerada bem sucedida. Já uma mulher tão competente, criativa e inovadora quanto, ou até mais, tem que lutar muito apenas pra ter seu trabalho levado à sério. Como em todas as áreas, a gente tem que se provar duas, três, dez vezes, pra termos o mesmo nível de reconhecimento que um artista homem, e se esforçar ainda mais pra se manter lá.”
Ocupar espaços artísticos e culturais igualmente aos homens ainda é uma tarefa a se cumprir, segundo Cátia. Na música, a artista afirma haver uma musicista mulher para cada dez musicistas homens. E, apesar dos obstáculos como tempo, preconceito, misoginia e machismo, ela acredita que o que deveria ser feito está sendo: “As mulheres perceberam a diferença pejorativa de tratamento que sofriam, deixaram de aceitar, se uniram e hoje falam em alto e bom tom sobre o que aceitam ou querem para si.”
Sobre a importância da presença feminina na arte, a ilustradora Mariella é clara: “Quando mulheres criam, independente do tipo de arte, é um pedacinho a mais de território que conquistamos, tanto no meio cultural quanto na sociedade como um todo”. Segundo ela, a arte feita por mulheres cria uma rede de conexões poderosa e isso tem ligação direta com a luta feminista. “Quando percebemos a arte feita por outra mulher, deixamos de estar sozinhas e passamos a nos enxergar como parte de um grupo”, explica. Assim, as mulheres obtém apoio umas das outras e deixam de competir entre si.
“Não haveria minha vida sem arte e, claro, não haveria arte sem a minha vida” – Marthynha Ferraz
O movimento que busca a igualdade de gênero, principalmente em relação a conquista de direitos, liberdade de escolha e ocupação dos espaços, certamente não começou agora, de acordo com Cátia, e, tampouco está perto de alcançar seus objetivos. “É só o começo de uma trajetória que se demonstra ser bem longa e a representatividade da mulher na cultura é um espelho desse caminho social que percorremos”, afirma.