Você já pensou em como os objetos ao nosso redor são produzidos? Desde os mais simples, como uma cadeira ou um utensílio de cozinha, até os mais complexos, como aparelhos eletrônicos: todos eles precisaram ser fabricados por alguém. Na escola, aprendemos que, ao longo dos anos, os processos de produção foram se desenvolvendo para que o preço e a velocidade de fabricação fossem cada vez melhores, ao passo que a personalização foi também diminuindo – afinal de contas, é mais fácil produzir 100 celulares idênticos do que 100 celulares diferentes.
É nesse ponto que entra a cultura do faça-você-mesmo, expressão adaptada do inglês Do It Yourself, ou DIY. Estima-se que o DIY começou a se popularizar a partir da década de 1950, e trata-se de um método de construir, consertar ou modificar coisas sem o auxílio de profissionais especializados. Por exemplo, se seu ventilador quebrou, em vez de levá-lo à assistência técnica, você mesmo pode abrir o aparelho, encontrar o defeito e consertá-lo. Nesse processo, você provavelmente terá de pesquisar e aprender a mexer em coisas que não conhecia. Ou por que não construir o seu próprio ventilador, do jeito que você preferir?
Do faça-você-mesmo ao Maker
O Movimento Maker pode ser considerado uma “vertente” do faça-você-mesmo, pois envolve aspectos mais contemporâneos e está diretamente ligado à tecnologia – softwares livres e impressoras 3D. Significa, além de estimular o desenvolvimento de produtos próprios, compartilhar o conhecimento com outros “makers”.
Do faça-você mesmo, a cultura maker adotou o processo de aprendizagem ativa, ou seja, é preciso colocar a mão na massa e se aventurar em áreas que você ainda não domina, e desenvolver suas habilidades enquanto trabalha.
Eu posso ser maker?
Quem entra em contato com o movimento maker pela primeira vez pode se perguntar se é capaz de fazer parte dele, se vai ter boas ideias ou contribuir de alguma maneira. É evidente que designers, programadores e pessoas familiarizadas com eletrônica, marcenaria e trabalhos manuais em geral estão mais ligadas à esse universo.
Elas geralmente entram em contato com esse mundo na universidade, mas isso não quer dizer que elas não tenham enfrentado dificuldades no começo. “Meu primeiro contato com o movimento maker foi logo no primeiro ano de faculdade. […] Fiquei maravilhada, mas não tinha a mínima noção do que se tratava tudo aquilo. Me senti intimidada por estar em um Fab Lab sem ter ideia alguma para compartilhar ou produzir, então me afastei”, conta Giulia Yosue, aluna de Design da Unesp de Bauru.
Após aulas sobre makerspaces e Fab Labs ela pôde compreender melhor essa cultura, e em junho do ano passado, junto com seu namorado, passou a desenvolver o TOGOTOY, um brinquedo inclusivo para crianças com deficiência visual. “O projeto nos puxou para dentro do movimento maker. Em contato com os Fab Labs Livres da prefeitura de São Paulo, fomos capazes de desenvolver os nossos próprios protótipos, trocar ideias com pessoas muito interessadas e isso me conquistou. A partir daí comecei a ter ideia do que significava ser um maker e a importância dos makerspaces e Fab Labs”, ela explica.
Já Vitor Marchi, aluno de Design de Produtos da Unesp de Bauru, e que trabalha com Fab Labs há três anos, conta que seu primeiro contato com espaços do tipo Fab Lab e movimento maker aconteceu em 2013, durante um evento na faculdade. “Hoje eu lembro a sensação de surpresa após o evento e o pensamento de ‘nossa, esse é o futuro do designer de produto!’”.
Por que me tornar um maker?
Vitor explica que se tornou maker pela característica dessa cultura de estimular a autonomia de fabricação de seus próprios itens e a liberdade e satisfação pessoal que ela proporciona. E vai além. “O movimento maker propõe um jeito mais íntimo e ativo de nos relacionarmos com os objetos que estão sempre ao nosso redor. É uma forma de ver o mundo físico menos estático e isso faz bem, pois te coloca como protagonista em pequenos processos e usos de objetos que impactam muito a qualidade do nosso cotidiano”, conta.
Fab Labs: a casa do Movimento Maker
A corrente maker usa, além da própria internet – fóruns e comunidades online responsáveis por compartilhar ideias -, espaços físicos para elaborar produtos concretos. São os fab labs (do inglês, em tradução livre, laboratórios de fabricação). Nesse espaço, os adeptos da cultura se organizam e viabilizam projetos, desde cadeiras e maquetes até outros mais complexos. Os fab labs são garagens e laboratórios comunitários, ou até mesmo governamentais, e servem para o compartilhamento de ideias e técnicas, outra base do movimento. Assim, makers de diferentes lugares do mundo podem modificar produtos desenvolvidos por outras pessoas, de acordo com suas necessidades – e também compartilhá-las.
Esses espaços makers estão presentes em diversas cidades ao redor do mundo, inclusive no Brasil. É possível encontrá-los através do site da Fab Foundation, uma das primeiras instituições do mundo a criar Fab Labs. Além de disponibilizar as ferramentas e equipamentos necessários para o desenvolvimento de projetos, os Fab Labs também oferecem cursos específicos para os interessados.
No Brasil, merece destaque o Fab Lab Livre SP, iniciativa da prefeitura de São Paulo. São doze laboratórios funcionando na cidade, e você pode encontrar os endereços e horários de funcionamento no site da rede. Por ser uma iniciativa pública, sua utilização é gratuita, mas também existem Fab Labs privados, que cobram taxas de uso, mas podem ser mais vantajosos, dependendo da situação.
Mas é acessível?
Faz parte do movimento maker trabalhar com impressoras 3D, programação e robótica, coisas que envolvem tecnologia de ponta – e nem sempre baratas. Por isso, a ideia de que ser maker é caro pode existir na mente de quem ouve falar do movimento pela primeira vez.
Giulia Yosue acredita que os Fab Labs e makerspaces ainda se mantém distantes da população. “São espaços com os quais as pessoas não tem familiaridade, então é preciso um pouco mais de paciência para que as comunidades makers se fortaleçam e se tornem mais atuantes e convidativas para aqueles sem muita intimidade com as ferramentas”, ela afirma.
Segunda ela, outro fator que pesa na hora de atrair públicos novos são as taxas cobradas por tempo de uso das máquinas – valores necessários para manter os makerspaces funcionando, mas que nem sempre são convidativos para quem é novo na área. Entretanto, ela acredita que makers estão se esforçando para mudar esse cenário, de diversas maneiras, “seja por oferecer dias gratuitos em seus makerspaces, cursos e palestras”. Giulia ainda cita os Fab Labs livres da cidade de São Paulo como o grande cartão de visitas do universo maker atualmente, pois são espaços gratuitos e que oferecem uma grande variedade de cursos.
Já Vitor Marchi possui uma visão diferente da questão.“A percepção de que custa caro participar da cultura maker é resultado da associação do termo maker aos espaços da rede Fab Lab, que podem requerer alto investimento em ferramentas e insumos, dependendo do propósito e tamanho dos projetos e das máquinas”, ele afirma.
Por isso, ele explica que ser maker não é, necessariamente, trabalhar com fabricação digital. “O elemento mais importante da cultura maker é o ato de construir algo em qualquer material ou nível de complexidade e compartilhar o processo”, afirma.
Além disso, na prática, a maioria dos espaços utiliza ferramentas dos próprios frequentadores, máquinas construídas com financiamento coletivo ou reaproveitamento de materiais. Em junho de 2015, por exemplo, os participantes do Sagui Lab (laboratório colaborativo da Unesp de Bauru inspirado em Fab Labs) organizaram a montagem de uma impressora 3D de projeto aberto durante um fim de semana. Foram gastos R$ 1.600, e desde então a impressora encontra-se disponível para os alunos que desejam usá-la, sendo necessário pagar apenas pelo insumo utilizado.
Consumismo e sustentabilidade
Ser maker significa criar e desenvolver produtos. Mas de onde vem as matérias-primas para que isso ocorra? Quanto material é utilizado nos projetos? Esses são questionamentos que fazem parte da cultura maker. Sem pestanejar, Giulia Yosue garante que “a cultura maker contribui, sim, com um mundo mais sustentável”.
“É como aprender a cozinhar em casa e depois começar a deduzir como a comida é preparada em um restaurante”, explica Vitor Marchi. Segundo ele, quando uma pessoa se propõe a construir suas próprias coisas, ela se relaciona de uma forma diferente com o mundo dos objetos, e, a partir daí, passa a ter um olhar mais apurado sobre usabilidade, qualidade e o custo de produção”.
Portanto, quando uma pessoa se envolve com a cultura maker, ela aprende a olhar os processos de maneira mais ampla e a considerar a origem, extração, consumo e descarte de matérias-primas. Essa tomada de consciência é benéfica para toda a sociedade, pois as pessoas passam a evitar compras compulsivas e processos maléficos de fabricação industrial. “Mais importante do que conhecer processos de fabricação, empoderar as pessoas para fabricarem aquilo que desejam é chave”, explica Giulia.
Além disso, a cultura maker estimula o conserto e extensão da vida útil dos produtos. Saber desmontar um eletrônico e conhecer seus componentes e materiais aumenta o reaproveitamento, a reciclagem e evita o descarte desnecessário.
Giulia afirma que o estímulo para buscar suas próprias soluções e dedicar-se vários dias ou meses em um projeto faz com que a pessoa desenvolva uma relação especial com sua criação, que torna muito mais difícil o descarte. “Você guarda consigo, por mais capenga que possa ser (risos)”, ela diz. Opinião reforçada por Vitor, que acredita que “Compreender a narrativa de fabricação de um objeto, seja ele amador ou profissional, cria laços afetivos de identificação e promove a valorização da originalidade de um produto”, afirma.
De olho no futuro
Uma das partes essenciais do movimento maker é criar uma nova percepção do mundo e seus processos de produção e, nesse ponto, crianças e jovens são um alvo importante. Nutrindo as ideias da cultura maker desde a infância, podemos criar uma mentalidade diferente nos jovens, além é claro de serem atividades que divertem e ensinam sobre as tecnologias que permeiam suas vidas.
Com essa finalidade surgem projetos como o Garage Kids em Bauru, fruto da instituição de ensino Cisne Real – Sciens, que oferece cursos para crianças de 5 a 11 anos e as introduz ao universo do DIY. Entre as oficinas oferecidas estão as de programação e impressão 3D, incentivando a experimentação e estimulando o desenvolvimento e produção de projetos próprios. A soma desses elementos ajuda a preparar as crianças a serem inovadores, criativos e confiantes em projetos futuros tanto na infância como na vida adulta.
Mas, como seus próprios ensinamentos orientam, a cultura maker incentiva a liberdade não só na produção, mas no ensino de suas práticas. Iniciativas que possibilitam o ensino gratuito de técnicas e conceitos tecnológicos também se tornam cada vez mais comuns e populares com o crescimento do movimento maker como um todo.
Veja por exemplo o RUTE, um kit educacional simples e de baixo custo que tem como objetivo ampliar o alcance do ensino da produção de pequenos componentes eletrônicos para o público infantil. Com apenas seis reais já se pode comprar um kit básico para a construção de pequenos circuitos e bugigangas que educam e entretêm. O projeto também conta com as vantagens da fácil integração de seus componentes com sucata eletrônica que barateia ainda mais sua utilização. Outros produtos, como littleBits, oferecem sistemas modulares de fácil aprendizado também focados para a educação, mas em uma faixa de preço mais elevada de 200 dólares.
Programação e educação
A programação também é uma peça fundamental do universo maker, mas vai além desse nicho. Com a tecnologia e a internet cada vez mais permeadas em nossas vidas, a habilidade de programar vem se tornando mais popular e necessária. Conhecer o código dos produtos que consumimos acaba se tornando tão relevante quanto conhecer os produtos em si. Em entrevista com a Exame, o empreendedor Marco Giroto comenta: “É importante crianças aprenderem programação, mesmo que não venham a ser programadoras ou cientistas da computação, assim como você não aprende matemática só para ser matemático ou biologia só para ser biólogo. São disciplinas que fazem parte da nossa vida”.
Marco é o fundador da Supergeeks, uma escola de programação para crianças de 5 a 16 anos de idade. Com inspiração na sua própria experiência – ele aprendeu a programar aos 12 anos de idade -, Marco viu a importância do ensino da disciplina quando entrou em contato com escolas no Vale do Silício.
Simplificando o processo
Enquanto o ensino de programação começa a ser adotado em cursos dentro e fora da escola, práticas como o “Hour of Code”, criado pela Code.org, tentam facilitar o aprendizado e ensino de linguagens de programação para todos. Como o próprio nome indica o projeto tenta ensinar elementos básicos da programação com tutoriais e lições de uma hora. Obviamente os alunos não saem experts em programação, mas o objetivo é mostrar que a programação não é o bicho de sete cabeças que parece ser e que qualquer um pode começar a escrever suas primeiras linhas de código.
O projeto oferece mini cursos em mais de 45 línguas para as mais variadas idades, incluindo tutoriais temáticos de favoritos infantis, com personagens de Frozen, Star Wars e Minecraft. A ideia é ser abrangente, todos podem tentar aprender ou ensinar com os cursos.
Liberdade
Uma das principais vantagens da cultura maker são as liberdades proporcionadas por suas práticas, libertar consumidores da cadeia de produção cria novas oportunidades criativas, financeiras e proporciona inovações que não seriam possíveis com seus adeptos “presos” aos sistemas de produção tradicionais. Seja por meio do software livre, pela prototipagem e exploração de novos conceitos e produtos que fazem do consumidor mais dono de seus próprios bens.
Os caminhos para essa libertação são dos mais variados, basta por as mãos à obra: escreva suas primeiras linhas de código usando plataformas como o Hour of Code ou CodeAcademy, colabore em projetos de software livre colaborativos no GitHub, crie seu próprio mini computador ou centro de multimídia com o Raspberry Pi, monte circuitos customizados com o Arduino, aprimore seu código com CodinGame, ensine seus filhos ou alunos com o Rute ou littleBits. Os primeiros passos para se tornar um produtor são mais fáceis do que parecem e vão te recompensar com uma nova habilidade a ser usada no dia a dia.