Aressa Joel Muniz, Camila Ramos, Leonardo Guerino e Luis Negrelli
Letícia tinha somente 3 anos de idade quando seus pais começaram a desconfiar que algo estava diferente. Ela ainda não falava nada, apenas balbuciava. O choro era constante. A cada estímulo, como uma pergunta ou uma simples fala, a pequena só apontava para algo e chorava. As comparações eram inevitáveis. O primeiro filho de Ana Lúcia e Carlos começou a falar com dois anos. Na cabeça dos pais Letícia era surda e muda, mas nada confirmado. Foi preciso buscar ajuda.
“Como não tínhamos conhecimento algum, procuramos uma fonoaudióloga para que nos desse uma direção. As terapias eram muito cansativas e a fono não conseguia nenhum aproveitamento ou até mesmo um possível parecer sobre o que acontecia com a Letícia. Então ela a encaminhou para uma equipe multidisciplinar, mas também não conseguiram um possível diagnóstico. Ela passou por exames e foi constatado que tinha perfeita audição”, conta a mãe.
A definição veio quando a garota tinha cinco anos. Letícia foi diagnosticada com o Transtorno de Espectro Autista (TEA). Os momentos de incertezas e dúvidas de Ana Lúcia e Carlos não são uma exclusividade. Isso se repete em outros lares de crianças que recebem o diagnóstico de TEA. Os primeiros questionamentos são justamente sobre o autismo em si, suas razões e consequências. Em seguida, como lidar e tratar. E, claro, as indefinições sobre o futuro da criança.
Mas se os primeiros passos na caminhada da descoberta são, por vezes, inseguros, com o tempo novos sentimentos começam a tomar conta: a coragem, a determinação e a superação, sem esquecer do amor, o ingrediente que acompanha toda a trajetória de altos e baixos da criança diagnosticada com autismo e de seus pais ou familiares.
Denominado Transtorno do Espectro Autista (TEA), o distúrbio atinge uma em cada 160 crianças, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. No entanto, seu diagnóstico é muito amplo, pois as pessoas dentro do espectro podem apresentar quadros diferentes umas das outras. Podem haver, por exemplo, manifestações comportamentais acompanhadas por déficits na comunicação e interação social, movimentos repetidos e sem função e um repertório restrito de interesses e atividades.
De acordo com uma cartilha da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental, para fazer esse diagnóstico o médico ou psicólogo compara o comportamento de uma criança com critérios estabelecidos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Quando o comportamento se enquadra nas descrições, acontece a definição do quadro de TEA.
Antes de se definir o autismo é preciso levar em conta que ele não é algo linear. Entre o autismo leve e o severo existem muitas ramificações. Não se trata, portanto, de ter um grau muito comprometido ou pouco comprometido. Justamente por isso o uso da palavra “espectro”, que indica os níveis diferentes da manifestação do transtorno.
As possíveis causas do autismo ainda são um enigma para a ciência. Uma das principais hipóteses relacionam o quadro ao fator genético e neurológico. O DSM aponta que até 15% dos casos de TEA podem estar associados a uma mutação em genes específicos associados ao transtorno.
Conforme explica a psicóloga Fernanda de Oliveira, a maioria das crianças com o transtorno apresentam problemas no desenvolvimento entre os 12 e os 24 meses e essas características podem ser detectadas antes dos 3 anos de idade. Esse foi o caso de Helena, que recebeu o diagnóstico logo aos 9 meses de idade.
Tudo começou quando seus pais, Leandro e Mariana, perceberam que a menina estava perdendo habilidades conquistadas, como por exemplo, bater palma e “dar tchau”. O médico sugeriu um mapeamento genético. Foram cinco etapas de exame e os sinais de alerta para autismo aumentavam. Com um pouco mais de dois anos saiu o resultado de um exame chamado sequenciamento do exoma, assim o diagnóstico foi concluído. “Já imaginávamos, mesmo assim não foi fácil, porque é inevitável não pensar no futuro e nos desafios que nossa doce Helena terá que enfrentar para se incluir na sociedade. A família abraçou a nossa causa e encontramos uma equipe multidisciplinar de terapeutas formidável”, revela Leandro.
Hoje em dia Helena já apresenta diversas evoluções. Começou a andar, se alimentar, brincar, se comunicar de forma alternativa e alcançou muitas outras conquistas graças às terapias especializadas. Isso tudo, segundo Leandro, foi possível por conta da intervenção precoce de um grupo de especialistas: fonoaudióloga, psicóloga, terapeuta ocupacional e uma pedagoga para adaptar o material escolar.
O TEA não é uma doença e, portanto, não há uma cura. Em alguns casos, no entanto, é necessário que a criança tenha um acompanhamento através de um tratamento multidisciplinar. Todas as especialidades buscam incentivar o indivíduo a realizar sozinho tarefas como se vestir, escovar os dentes e comer.
Remédios para lidar com o transtorno só são prescritos na presença de agressividade e de outras condições paralelas, como depressão. Isso pode acontecer dependendo do “lugar” do espectro em que o indivíduo está. Em todos os casos, intervenções precoces demonstram grandes chances de melhora nos sinais do autismo.
Fernanda explica que o papel da Psicologia se inicia no diagnóstico, avaliando fontes e os métodos de coleta de informações quando se trabalha com crianças. Isso deve abranger entrevista com os pais, observação da criança em casa e na escola e, se possível, em mais ambientes em que esteja inserida, além da aplicação de testes e obtenção de dados com outros profissionais que a acompanham.
No caso de Helena, a psicóloga realiza a terapia ABA (Applied Behaviour Analysis, origem da sigla em inglês), um trabalho embasado cientificamente em Análise do Comportamento Aplicada. A intervenção foca nos comportamentos inadequados ou na inclusão de ações para ampliar o repertório comportamental. Alguns resultados já podem ser notados. “Helena não sabia comer sozinha e com a intervenção, a ajuda dos pais e da cuidadora na escola, fomos incluindo aos poucos um treino apenas de pegar a colher, primeiramente, depois levá-la até a boca, sendo um processo gradual. Agora a paciente está pegando o alimento sozinha do prato e comendo. Essa é uma das inúmeras conquistas de Helena e também uma das mais emocionantes. São casos como ela que fazem a nossa profissão valer a pena”, declara a psicóloga.
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A terapeuta ocupacional Lyana Sousa também auxilia no tratamento da Helena. Ela considera que para o desempenho ocupacional ocorrer de forma eficiente no cotidiano, seja em ambiente familiar, escolar ou social, a criança com autismo precisa ter suas habilidades sensoriais, cognitivas, musculoesqueléticas e comunicacionais ajustadas às suas experiências de vida. “Na prática utilizam-se métodos específicos da profissão, como o aperfeiçoamento, treino e adaptações das atividades de vida diária, como alimentação, vestuário, higiene pessoal, locomoção, comunicação funcional e brincadeiras”, afirma.
Junto com o acompanhamento de profissionais, o ambiente familiar também desempenha um papel fundamental nos cuidados com uma criança diagnosticada com autismo. A família é reconhecida como o primeiro e principal núcleo social de uma criança, onde ela busca apoio e estabelece seus laços de afetividade. No caso de uma criança com autismo, Fernanda destaca o papel da observação dos pais, cuja função é perceber os gostos, as aceitações e as dificuldades que vão aparecendo no dia a dia. “Os pais dão todo o suporte na terapia, pois poderão estimular o filho por mais tempo do que o profissional. É de extrema importância que pais e terapeutas trabalhem em conjunto. Os pais de uma criança com autismo têm que saber estimulá-la em todas as situações e ambientes, como, por exemplo, ter novas experiências, conhecer novas texturas, formas, cores e alimentos”, comenta.
Essa tarefa grande parte dos pais tiram de letra. Porém, ainda enfrentam situações discriminatórias e os estereótipos criados pela sociedade. Por essa razão surgiram algumas informações falsas a respeito do autismo que acabam reforçando os estigmas. Conheça alguns mitos sobre o TEA:
Os reflexos da circulação de informações falsas sobre o TEA chegaram até o cotidiano da Helena: “é triste dizer isso, mas teve colega que fingiu que não nos conhecia; a Helena nunca foi convidada para festinha de aniversário dos amigos, entre outras situações”, relata Leandro. Na vida do filho de Dalva Tabachi, a situação se repete e o preconceito também está presente. “A escola me chamou e disse que não tinha como ficar com ele. Uma vez no avião uma pessoa gritou ‘bota esse garoto para fora’. Quando ele descia no playground da minha casa algumas mães tiravam os filhos de perto. Foram tantas situações que até já esqueci”, recorda.
O garoto faz acompanhamento com uma terapeuta desde os três anos e com uma fonoaudióloga. Ele foi alfabetizado em casa sempre com a mesma professora e pra quem achou que ele teria alguma limitação, surpreende-se ao vê-lo tocar violão e tamborim. “Hoje lidar com o preconceito é bem mais fácil. Até porque as pessoas estão mais solidárias e eu muito bem preparada para quem ousar mexer com ele. Nada mais me incomoda, a gente acaba se acostumando e tudo passa a ser normal”, explica Dalva.
Apesar disso, a terapeuta ocupacional Lyana conta que não é incomum alguns relatos na prática clínica de pais ou familiares que são alvo de comentários, como: “será mesmo que aquela criança tem alguma coisa?” ou “que criança sem educação!”. “Essas experiências elucidam o preconceito existente entre as próprias crianças, profissionais da instituição escolar ou familiares. O objetivo com a criança e familiares é orientá-los sobre a garantia de seus direitos e de que falar sobre o assunto é sempre a melhor opção”, conta.
A luta pelo acesso à justiça é a meta do trabalho da defensora pública de Rondônia, Flavia Albaine. Seus esforços têm como foco as pessoas sem condições de custear um advogado ou em situação de vulnerabilidade, atuando em processos judiciais de forma individual ou coletiva. Para ela, o principal desafio é enfrentar uma sociedade ainda inapta para lidar com a diversidade, o que acarreta consequências como o preconceito e a dificuldade de garantia dos direitos básicos. “Vários setores brasileiros ainda estão despreparados para a inclusão social, como a saúde, a educação, a estrutura urbana e o mercado de trabalho. O principal aspecto que necessita de melhoras, e com urgência, é a mentalidade das pessoas no sentido de nos conscientizarmos de que a deficiência não está no indivíduo, mas na sociedade que não consegue se adaptar para recebê-lo”, aponta Flávia.
Com o objetivo de promover a educação em direitos humanos a defensora fundou o projeto “Juntos pela Inclusão Social”. A página da iniciativa pode ser conhecida no Facebook.
Além dos esforços para garantia de direitos e de respeito no convívio social, é fundamental o papel da mídia na vida de uma pessoa com TEA. Tanto nos filmes, séries e no meio televisivo já existem alguns exemplos de representatividade. Conheça alguns:
Romeo, filho do apresentador da Record TV Marcos Mion, está dentro do grupo do Transtorno do Espectro Autista. O apresentador utiliza suas redes sociais para mostrar o cotidiano com seu filho, as atividades que ele gosta de realizar e os momentos em família. Mion escreveu ainda o livro “A Escova de Dentes Azul”, onde conta sobre a vida de Romeo e como a família aprende lições convivendo com o garoto.
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A série norte-americana mostra a rotina de Shaun Murphy, residente de cirurgia num hospital. O personagem vivido pelo ator Freddie Highmore é autista e teve uma infância difícil, com problemas emocionais, sociais e de linguagem. Após a faculdade ele consegue uma vaga como residente em um importante hospital com a ajuda do médico Aaron Glassman (Richard Schiff). Apesar das incertezas sobre seu trabalho como médico o jovem se revela um grande talento, com memória fotográfica e uma lógica de pensar diferente dos demais residentes.
Dakota Fanning interpreta Wendy Walcott no filme. A produção conta a história de uma mulher de 28 anos com autismo que é apaixonada pela escrita e fã de Star Trek. Ela foge de casa para se aventurar na tentativa de entregar um roteiro da série de ficção científica que escreveu para uma competição. A família de Wendy não acredita em sua capacidade, mas a personagem demonstra que o transtorno não é um obstáculo para a realização de seus sonhos.
Fernanda explica que as mídias são os locais onde os jovens, sejam aqueles que estão dentro do espectro ou não, se identificam, se descobrem e se reconhecem. “Acredito que essa representatividade, no caso do autismo, é pouco frequente, ainda que em algumas novelas, séries e desenhos tenham algum personagem que esteja no espectro. Sei que o autismo está ganhando cada vez mais espaço nas mídias e presumo que futuramente será mais frequente encontrar materiais sobre o TEA”, argumenta.
A apresentação de personagens com autismo e a discussão sobre o transtorno em grandes produções já são um primeiro passo na quebra dos preconceitos. Outra solução proposta por Fernanda é a discussão dessa temática nos ambientes em que a criança com autismo frequenta, como na escola. Podem ser oferecidas palestras sobre inclusão, bullying e outros temas recorrentes, dinâmicas entre os colegas, professores e outros profissionais. “A nossa sociedade ainda não está acostumada a conviver com quem é diferente, seja no caso de alguma deficiência ou característica física. A família, não só de quem tem um filho ou parente que tenha autismo ou outro transtorno, deve auxiliar a conscientizar a sociedade, procurando informações e disponibilizando-as”, complementa.
E está lembrado daqueles primeiros momentos de incerteza e dúvida vividos pelos pais de Letícia? Pois bem, hoje Ana Lúcia conta que a realidade é outra e tudo caminha para uma vida com mais autonomia para a jovem. Ela é muito habilidosa com artesanato, pratica atividades físicas regularmente, como natação e academia, e a mãe confessa que a filha ama aulas de zumba. “Nós, como família, temos um papel muito importante nessa linda e emocionante trajetória. É claro que terá aqueles dias que tudo parece não dar certo, mas temos que pedir forças para Deus, olhar para nossos filhos e acreditar neles. É importante também que nós, pais, tenhamos contato com outros pais, pois a troca de experiências ajuda e muito. O preconceito existe, mas podemos mudar essa situação plantando uma sementinha em todos os lugares que passamos”, comenta.