A perseguição religiosa força fiéis a deixarem seu país de origem
Isabela Holl, Daniele Fernandes, Juliana Gonzalez, Nathalie Caroni
A fé Bahá’í, apesar de ser uma religião jovem que prega a igualdade e horizontalidade, sofre perseguições que criminalizam fiéis, ameaçados inclusive com a pena de morte. Para se protegerem dessa violência, muitos fogem para outros países. É o caso da família Nurani, bahá’ís de origem iraniana, refugiada no Brasil.
Muitas famílias estão fugindo de seus lares, perseguidos por questões religiosas, a maioria provinda do continente africano ou do Oriente Médio. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que o número de pessoas forçadas a sair de seu país de origem seja de 68,5 milhões de pessoas no mundo. No Brasil foram solicitados oficialmente 41.915 pedidos de refúgio nos primeiros sete meses de 2018.
Há um mês, no dia 13 de outubro, o representante da fé Bahá’í no Iêmen, Abdullah Yahia Al Ayolofi, foi preso por ser adepto à religião. Especialistas da ONU afirmaram estar receosos, pois algumas acusações poderiam levar à pena de morte.
O caso no Iêmen não é um fato isolado. Conheça Vida Nurani, de 23 anos, brasileira. Ela e seus 4 irmãos nasceram e cresceram em uma família de refugiados Bahá’ís do Irã, país onde minorias religiosas também são perseguidas pelo governo. Seus pais vieram para o Brasil por volta da década de 80 foragidos do governo autoritário que se instalou no país naquela época. Apesar de estarem no Brasil há mais de 40 anos, muitos dos costumes do país de origem permanecem nas tradições familiares.
A vinda da família para o Brasil
O pai de Vida, Ricardo*, nasceu no Irã e veio para o Brasil junto com seu irmão, alguns anos antes da Revolução Iraniana em 1979, quando os praticantes da fé Bahá’í começaram a ser perseguidos pelo próprio governo iraniano. Sua filha conta que ele veio motivado por um “espírito de serviço” que crescia entre os jovens Bahá’ís iranianos na época, saindo de seu país de origem em direção a países distantes, com o objetivo de difundir ainda mais a nova fé que surgia. Quando chegou ao Brasil, Ricardo morou por dois anos em Fortaleza e depois se mudou para Manaus.
Vida não soube explicar por que seu pai escolheu o Brasil para viver, tendo em vista que outros familiares já estavam instalados em outros países como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. A maioria dos refugiados Bahá’ís escolhem os Estados Unidos ou a Austrália, seja por motivos econômicos ou pela facilidade do idioma inglês. “Mas a questão de ir, principalmente na década de 80, para um país com uma pequena comunidade Bahá’í, significa que você é um pioneiro, era uma coisa muito forte”, ela explica.
Já a mãe de Vida, Renata*, teve uma trajetória diferente. Também proveniente de uma família Bahá’í do Irã, saiu do país a pedido de seus pais. O pai foi preso pelo governo muçulmano e morreu posteriormente na prisão. Jovens Bahá’ís estavam proibidos de frequentar as universidades iranianas. Ela, então, foi primeiro para a Argentina estudar, onde morou por dois anos com seus tios, e depois por oito anos no Peru com seu irmão. Em 1985, ao participar da Conferência Internacional Bahá’í, em Manaus, Renata conheceu seu futuro marido, um dos organizadores do evento. Três dias depois de se conhecerem decidiram ficar noivos, e em um mês já estavam casados, morando em Manaus e construindo uma nova família. Alguns anos após o nascimento de seu primeiro filho se mudaram para Boa Vista, em Roraima.
Parte da família de Vida que ficou no Irã também sofreu perseguição. Seus primos foram impedidos de fazer matrícula na universidade depois de aprovados no vestibular com excelentes notas e foram presos por dois anos. Libertos, permaneceram sob a ameaça de que a qualquer momento pudessem ser criminalizados por seguirem a fé Bahá’í.
Vida nunca foi para o Irã e não tem vontade de conhecer. “É cada história que eu escuto… Não tenho a mínima vontade de ir pra lá, é um país que eu só escuto histórias ruins”. No entanto, ela fez uma viagem para Israel com sua irmã gêmea para trabalharem como voluntárias nos Jardins Bahá’í, o centro da fé Bahá’í, onde estão todos os prédios administrativos e onde se encontra a Casa Universal de Justiça, órgão máximo da religião. Vida trancou um período de sua faculdade e trabalhou na parte da limpeza por um ano, enquanto sua irmã trabalhou com jardinagem. Ela conta que é comum jovens Bahá’í do mundo todo prestarem um ano de serviço neste centro em Israel pelo menos uma vez durante a juventude.
Hoje Vida cursa Arquitetura e integra a Assembleia Espiritual Local Bahá’í na cidade de Bauru, onde estuda há cinco anos. Conta que Bauru sedia a maior comunidade Bahá’í do interior de SP. A jovem gosta de morar no Brasil e conta que nunca sofreu nenhum tipo de preconceito por ser Bahá’í. “Aqui as pessoas são muito mente aberta, e quando alguém não conhece, simplesmente aprende e escuta o que eu tenho pra falar”.
Já a irmã mais velha de Vida, Mariana*, teve a curiosidade de conhecer o país de origem de seus pais. À convite de sua tia, Mariana trancou um semestre da faculdade de Medicina em 2009, onde passou três meses na casa de parentes no Irã conhecendo melhor a cultura e a parte de sua família que permaneceu por lá. Passou um tempo em Teerã, capital do Irã, na casa de uma tia, e depois em Shiraz, uma cidade mais ao sul do país, a 14 horas de ônibus da capital, na casa de outra tia.
“Durante este período que passei no Irã me dediquei basicamente a conhecer melhor a cultura, aprendi um pouco mais sobre a língua, participei das atividades realizadas pela comunidade Bahá’í iraniana. A fé Bahá’í ainda sofre bastante perseguição política no Irã, então as reuniões são discretas. Meu cotidiano era basicamente de visitas às casas de amigos e familiares e conhecer alguns pontos bonitos das cidades que conheci”. Na viagem Mariana conheceu aquele que viria a ser seu marido, também seguidor da fé Bahá’í. Os dois se casaram e foram morar em Manaus.
Logo que chegou no Irã, Mariana, um aspecto muito forte da cultura muçulmana impactou Marina: a falta de igualdade entre homens e mulheres. Ela teve que usar o véu para esconder o corpo e seus cabelos: “Não importa sua crença, sua fé, seu país, se você é estrangeira ou iraniana, todas são obrigadas a utilizar esta vestimenta”, explica. Mariana conta que a própria lei não favorece a igualdade, com governantes que já tentaram proibir o ingresso de mulheres nas universidades. “Percebe-se que as mulheres iranianas têm menos direitos e são menos consideradas na sociedade. Pode-se dizer que não tanto como imaginamos que seja, essa restrição é velada, escondida e simulada como fazendo parte da cultura do país, muito sutil às vezes, mas existe”.
Vida percebe aspectos machistas na sua criação, já que seus pais mantiveram bastante os costumes iranianos na criação de seus filhos. “Eu fui criada na cultura iraniana sem perceber”. Ela cita exemplos na diferença de tratamento entre seu irmão e ela e suas irmãs, tanto na participação de tarefas domésticas quanto no julgamento de seu pai sobre suas roupas. “Minha mãe acabou se acostumando com esse tipo de pensamento, é cultura, eles entendem que no Brasil é diferente, e só o fato de que aqui a gente pode escolher o nosso namorado, já prova que é bem mais aberto”. Ela não consegue imaginar a realidade das mulheres que vivem no Irã sendo tratadas com inferioridade e que diz que pensa muito nessas questões se baseando na situação das mulheres da sua própria família.
História da perseguição no Irã
Marcos Alan Shaikhzadeh, professor da Universidade Federal da Paraíba, pesquisa o tema da perseguição à fé Bahá’í. Ele explica que a história da perseguição à religião começou antes mesmo de sua fundação.
Em 1844 surgiu um jovem chamado Báb vindo da cidade de Shiraz. Ele queria fundar uma nova religião e avisou que Deus enviaria posteriormente um mensageiro para completar sua missão. Desde então, a intolerância surge, pois uma interpretação do Islã afirma que Maomé é o único profeta e qualquer outra religião que surja posteriormente é uma heresia.
Marcos Alan explica que depois de 19 anos Baha’u’llah afirma ser o prometido por Báb e cria a religião Bahá’í. A partir de então o clero iraniano mais fanático passa a perseguir os membros da religião e o Estado passa a fazer vistas grossas para essa perseguição. Porém, a partir da Revolução Iraniana de 1979 o Estado se junta ao clero na perseguição. Mais de 200 bahá’ís sofrem pena de morte acusados de heresia, muitos têm as propriedades confiscadas e também são impedidos de cursarem faculdade. “A legislação do Irã legítima essa perseguição porque existe o crime de apostasia (renúncia de uma religião ou crença, abandono da fé) e de heresia. Esse crime é utilizado respaldado para as ações realizadas pelo governo contra os bahá’ís”, conta o pesquisador.
A comunidade Bahá’í tem uma postura de não violência, chamada de resiliência construtiva, explica. “Resiliência é você poder resistir diante de uma pressão demasiada. Construtiva no sentido de que se está resistindo e construindo coisas”, afirma. Então, mesmo com a perseguição, os membros da religião fazem projetos sociais, como oferecer educação às crianças. Por causa dessas atitudes a sociedade civil questiona o governo do motivo dessa perseguição, já que eles não têm uma postura violenta.
Princípios da Fé Bahá’í
Maria Vanda Santarcangelo é professora aposentada, adepta da religião Bahá’í e atualmente vive em Bauru. No dia 16 de outubro ela realizou em sua casa uma atividade ligada à religião: a Festa dos 19 Dias. Ela explica que o calendário Bahá’í é dividido em 19 dias de 19 meses. Cada mês possui um significado, naquela data era a “sabedoria”.
A festa dos 19 dias acontece em três etapas: oração, administração e celebração pelo alimento ou por uma apresentação cultural, como uma dança, por exemplo. A escolha da forma de celebração varia entre cada comunidade. Na casa de Maria Vanda foram feitas orações e depois debateram “assuntos úteis”, falaram de como ajudar o próximo e até ecologia entrou na pauta. Como celebração foi servido um lanche para todos.
Ela explica que a Bahá’í acredita que todas as religiões possuem os mesmos princípios básicos e que Deus é o mesmo para todos. Maria Vanda conta que a religião está sempre em evolução e de tempos em tempos Deus manda um mensageiro para transmitir novos ensinamentos, mensagens e leis sociais.
“É um estado evolutivo, cada manifestante fala sobre coisas para o povo daquela época consiga entender. No tempo de Jesus, por exemplo, eles aprendiam por parábolas. Os mensageiros são pessoas sábias, como Krishna, Moisés, Buda, Jesus ou Baha’u’llah, o fundador da fé, com suas leis e seus princípios”, afirma Maria Vanda. Assim, na Bahá’í não há intolerância religiosa, caracterizando-se como uma comunidade bastante aberta.
A religião é bastante horizontal entre as pessoas da comunidade, não há um “pastor” ou alguém considerado superior entre os membros. Cada assembleia possui nove bahá’ís eleitos para administrar as ações da comunidade. Maria Vanda explica que não há nenhuma espécie de “propaganda eleitoral” e qualquer membro pode ser eleito. Também não há distinção entre homens e mulheres nas assembleias locais e nacionais, a única característica imposta é ter mais de 21 anos. Porém, na Casa Universal de Justiça, em Israel, os administradores devem ser homens, o que no futuro pode mudar, acredita Maria Vanda.
Aos 23 anos, morando em Manaus, Maria Vanda conheceu seu futuro marido, quando ele ensinava a fé Bahá’í. Depois de se casar eles se mudaram para o Sudeste. “Por muitas vezes a fé Bahá’í se dá em forma de um bilhete ou alguém falou para alguém e acaba tocando as pessoas. Você tem que vivenciar e buscar a educação espiritual. Foi dessa forma que eu vim aprendendo, me fortalecendo, fiz minha família e estudei. Porque até então não tinha estudo, me tornei uma professora e agora estou aposentada”, conta.
Refugiados Bahá’ís
A Secretaria do Bem Estar Social de Bauru não possui dados sobre refugiados na cidade e nem sobre o país do qual se originaram. Afirmaram que muitos refugiados permanecem ilegais na cidade e não retornam após pedirem informações sobre a legalização. Principalmente não passam pela Polícia Federal – que não respondeu o porquê dos imigrantes terem receio de contato com os policiais.
A administração Bahá’í nacional afirmou que a maior parte das imigrações para o Brasil se deu após o início da Revolução Iraniana, entre os anos de 1986 e 1988. Após esse período, a saída do país de tornou mais complicada e muitos Bahá’ís têm seus passaportes confiscados pelo governo do Irã.
*Nomes fictícios criados pela reportagem pois a família desejou não se identificar, exceto Vida Nurani.