Mercado de trabalho rural registra redução nos postos de trabalho, aumento da informalidade e alta concentração de terras e renda.
Para Paulo Eurípedes dos Santos, 57, manter a renda da família exige trabalho duro. Produtor rural em Bauru e filho de agricultores, Paulo aprendera desde a infância a trabalhar na lavoura. É da criação de porcos, galinhas e vacas leiteiras e do cultivo de hortaliças em seu assentamento na região de Aimorés que consegue tirar os produtos para comercialização nas feiras. São seis dias de trabalho na semana. Sem possuir direitos trabalhistas garantidos, como acesso à aposentadoria, Paulo é mais um entre os milhares de produtores rurais no Brasil que sofrem com a desigualdade no campo.
Segundo prospectiva do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a população rural no país irá diminuir significativamente nos próximos anos. O órgão estima que em 2050 haverá aproximadamente 18 milhões de pessoas vivendo em áreas rurais, o que representaria 8% da população total. A projeção para o mercado de trabalho rural também não é nada alentadora. Cerca de 8,2 milhões de ocupados rurais é o que se espera para a agropecuária daqui a três décadas. Número bem diferente dos 15,6 milhões de ocupados rurais registrados pelo IBGE em 1960 e do auge em 1985, quando o número de ocupados atingiu 23 milhões.
A relação de ocupados rurais por estabelecimentos também apresenta redução acentuada, evidência da alta concentração de terras por parte dos grandes proprietários. Ao longo das décadas, o número de estabelecimentos agrícolas tem se mantido em cinco milhões de unidades, mas a média de ocupados rurais por estabelecimento tem diminuído. Em 1985, cada estabelecimento rural contava com uma média de 4 ocupados. Trinta anos depois, a média caiu para 3,2 e em 2013 havia 2,7 ocupados por estabelecimento. Devido à contínua especialização e mecanização dos processos agrícolas e à redução dos postos de trabalho no meio rural, espera-se que em 2050 cada estabelecimento conte com menos de 2 ocupados, em média.
Entre os segmentos de trabalhadores que mais devem sentir as mudanças ocorridas no campo, estão os ocupados na agricultura familiar. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) realizada pelo IBGE, em 2014 havia 9,8 milhões de trabalhadores rurais inseridos neste modelo de agricultura. Em 2015, foram registrados cerca de 9 milhões, redução de aproximadamente 8% no contingente de agricultores familiares. Grosso modo, o Pnad considera três categorias que compõem a ocupação do meio rural brasileiro: agricultores familiares, empregadores e empregados. Com o avanço das grandes propriedades sobre as pequenas, maior concentração de riqueza e de renda, incremento da tecnologia nos processos de produção agrícola e elevação da capitalização do meio rural, inclusive com maior participação de capital externo, a expectativa é de que a agricultura familiar conte com menos trabalhadores no campo nos próximos anos.
Para o professor da Unesp Tupã e membro do Projeto Competências Digitais para Agricultura Familiar (Codaf), Ricardo Sant’Ana, a mecanização no campo não é o único fator que explica a redução dos trabalhadores na agricultura familiar. “Infelizmente, existe uma disputa por espaço entre o agronegócio e as pequenas propriedades. Para os grandes empreendimentos o interessante é que exista disponibilidade de mão de obra e terra a baixos custos e isso, em um primeiro momento, parece ser a solução para diversos problemas como o fim do suplício da vida no campo pelo pequeno produtor e até a melhoria em resultados de contas externas para o país, já que grande parte dos esforços são na direção da produção em grande escala, o que viabiliza a exportação. No entanto, tira-se com isso a autonomia do pequeno produtor, que de proprietário passa a ser funcionário. Dessa forma, a qualidade do alimento que chega à mesa no dia adia da população fica prejudicada, fortalecendo, inclusive, outro setor, o da indústria alimentícia, que passa a ter mais mercado”, comenta.
Pela proximidade ao consumidor e por ser baseada predominantemente na policultura, a produção familiar está menos sujeita a interferências externas no custo final dos alimentos, garantindo maior estabilidade dos preços e controle da inflação. A forte capacidade alimentar da agricultura familiar é um dos fatores que justificam a queda da inflação em dezembro de 2016. A taxa de inflação acumulada em 12 meses medida pelo IPCA, o índice de Preços ao Consumidor Amplo do IBGE, foi de 6,3%, ficando pela primeira vez no ano abaixo do limite do teto (6,5%). Ela caiu de 10,7% em dezembro de 2015 para 6,3% no homólogo de 2016. Em agosto, a inflação ainda registrava 9%. A partir daí cedeu 2,7 pontos percentuais até dezembro, redução de 30% em apenas quatro meses. O principal componente dessa redução foi a queda de preços dos alimentos e bebidas. Incluído no IPCA, o grupo “alimento e bebidas” tem um peso de 23% se comparado aos outros oito grupos de produtos e serviços considerados no cálculo da inflação, segundo série de relatórios sobre a estrutura de ponderação a partir de orçamentos familiares divulgados pelo IBGE em 2014.
O Censo Agropecuário de 2006, último elaborado pelo IBGE, apresenta números que elucidam a importância da agricultura familiar para a atividade agropecuária no país. Dos aproximadamente 5,1 milhões de estabelecimentos agropecuários, 84% são caracterizados pela ocupação familiar. Dos 143,3 bilhões de reais gerados pelo setor, 54,3 bilhões são provenientes da agricultura familiar. 80,2 milhões de hectares é a área ocupada por agricultores familiares, representando 24,3% das propriedades utilizadas na produção agropecuária. Os números também chamam a atenção para a alta concentração de posse de terras. Os aproximadamente 15% dos estabelecimentos não familiares concentram ¾ do total de terras.
A agricultura familiar se destaca pela produção nacional de boa parte da mandioca, feijão, um pouco mais da metade da carne suína, do leite, e aproximadamente metade da carne de aves e milho. O Secretário-Geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado de São Paulo (FETAESP), Roberto Santos, reforça a grande capacidade de abastecimento alimentar da agricultura familiar. “A agricultura familiar no Brasil é responsável por 52% dos alimentos que vão para a mesa dos brasileiros, segundo dados antigos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Podemos dizer que essa parcela se refere a grande variedade de culturas que são produzidas pelos agricultores familiares. Os grandes produtores visam a exportação, em sua maioria de grãos, cana-de-açúcar e, no estado de São Paulo, laranja. Já os agricultores familiares utilizam de suas propriedades para sua subsistência, de sua família, e venda de uma grande variedade de culturas nos mercados próximos, como produtos hortifrutigranjeiros, verduras, legumes, ovos, frutas, flores”, comenta.
Roberto Santos também critica as políticas de favorecimento aos grandes empreendedores agrícolas. “Os privilégios dos grandes produtores são financeiros, junto as instituições bancárias, com menores taxas de juros, maior crédito, maior agilidade para obtenção desse crédito, entre outros. Mesmo com incentivos governamentais para o pequeno produtor, ou mesmo as políticas de reforma agrária, há ainda muitas pessoas sem terra, sem moradia, sem condições de plantar”, complementa.
De acordo com o Censo Agropecuário, a região onde há maior concentração de posse de terras é o Centro-Oeste, seguido pelo Norte e Sudeste. Entre as unidades federais, a que apresenta maior concentração na questão de posse de terras é o Mato Grosso do Sul, seguido pelo Mato Grosso e pelo Tocantins. No ranking nacional, São Paulo é o décimo estado com maior concentração agrária. A unidade federal que apresenta menor concentração de posse de terras na produção agropecuária é o Sergipe.
Apesar das previsões de queda no contingente de trabalhadores na agricultura familiar, o ano de 2016 registrou aumento dos investimentos de crédito a este segmento do setor agropecuário. Segundo levantamento da Safra 2016/2017 realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), o crédito de custeio (aquele utilizado pelo produtor no primeiro semestre do ano safra em face das necessidades de adquirir insumos para o início do plantio) aos produtores de médio e pequeno porte aumentou em 13% se comparado a 2015. Em relação ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o valor disponibilizado até agosto era 3% superior ao crédito utilizado no mesmo período de 2015. Trata-se do maior valor registrado desde 2013, com um incremento de 37%. Os dados são do Sistema de Operações de Crédito Rural e do Proagro registrados pelo Banco Central do Brasil (Bacen).
Entre os segmentos do agronegócio, o setor primário é o que apresenta os menores salários. A média do rendimento de produtores que atuam na agricultura é de R$ 891,00, enquanto a dos que atuam na pecuária, R$ 998. A pesquisa, divulgada em 18 de janeiro, foi realizada pela Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq/USP e mostra dados referentes a 2015. De acordo com o levantamento, o setor primário é responsável por quase metade do contingente rural no agronegócio, com 9 milhões de trabalhadores. No total, 19 milhões de pessoas estão ocupadas no agronegócio, entre os segmentos da agropecuária, agroindústria, serviços e o de insumos. Os dados não incluem os trabalhadores que produzem exclusivamente para o próprio consumo.
No segmento primário da agricultura, destacam-se as atividades relacionadas ao grupo “outras lavouras” (cultivo de mandioca, banana, uva, cacau, sementes e mudas certificadas, fumo e de outras plantas e frutas de lavoura permanente não especificadas). São cerca de 2,9 milhões de trabalhadores ocupadas neste grupo. Na agricultura, também recebem destaque as atividades com grãos (16% do contingente) e café (12%). Aproximadamente 3,1 milhões de pessoas estão ocupadas no segmento primário da pecuária, com destaque para a bovinocultura, de corte e leite (65%).
Outro dado desalentador diz respeito ao nível educacional dos trabalhadores inseridos no agronegócio. De acordo com a pesquisa, 60% das pessoas ocupadas sequer chegaram ao Ensino Médio e apenas 8,5% têm Ensino Superior completo. A média do mercado de trabalho nacional em geral é de 17%. Na agropecuária, a projeção é ainda pior. Dos trabalhadores ocupados no setor primário, 80% interromperam os estudos no Ensino Fundamental.
Apesar de apresentar maior contingente de trabalhadores ocupados no agronegócio, o setor primário da agropecuária é marcado pelo elevado nível de informalidade. Considerando-se todos os segmentos do agronegócio, apenas 36% têm carteira assinada e 33% atuam por conta própria. Outros 15% são empregados sem carteira assinada e 4% como empregadores. Os demais 12% se distribuem entre as categorias de trabalhadores domésticos, familiares auxiliares ou militares. Os segmentos da indústria e dos insumos representam a maioria dos trabalhadores em situação formal de trabalho.
Os dados apresentados pelo Cepea sobre o alto nível de informalidade no mercado de trabalho rural podem ser corroborados pelo Pnad de 2015. De acordo com a pesquisa ligada ao IBGE, o número de trabalhadores empregados no meio rural sem carteira assinada teve alta de aproximadamente 2% em relação a 2014. Alta que representa cerca de 2,2 milhões de trabalhadores assalariados rurais em situação de trabalho ilegal, sem nenhuma das proteções garantidas pelo vínculo formal. Dados do Pnad sugerem também que São Paulo é o estado onde o nível de informalidade entre os assalariados rurais é menor.
O impacto disso na qualidade de vida destes trabalhadores é enorme, inclusive em termos de autoimagem, já que estes trabalhadores acabam por não se reconhecerem como cidadãos com plenos direitos como os demais trabalhadores. (Ricardo Sant’Ana, Unesp Tupã e Codaf)
Para o professor da Unesp Tupã, Ricardo Sant’Ana, há um componente cultural que explica a informalidade no mercado de trabalho rural. “Apesar dos esforços realizados nas últimas gestões, o trabalho informal ainda permeia todas as áreas e atividades no país. No setor rural, até por suas características físicas, distância com relação à atenção da sociedade, este problema se agrava. O impacto disso na qualidade de vida destes trabalhadores é enorme, inclusive em termos de autoimagem, já que estes trabalhadores acabam por não se reconhecerem como cidadãos com plenos direitos como os demais trabalhadores. Para a sociedade e para o próprio governo, isso também é um problema na medida em que reduz a arrecadação. As causas não ficam restritas apenas à distância em relação às instâncias fiscalizadoras. Existe um componente cultural muito forte que, em suma, pode ser sintetizado pela ausência de conhecimento necessário na atividade rural, cultura esta que vem desde suas origens baseada na escravidão e na produção de commodities. Os detentores do capital quando atuando no campo consideram o fator mão de obra como outro custo qualquer, não percebendo nele a característica humana e de conhecimento envolvidos”, explica.
Ainda de acordo com o Pnad 2015, é possível identificar outro fenômeno no mercado de trabalho rural: a redução de postos de trabalho. Entre 2014 e 2015, foi registrado o fechamento de aproximadamente 73 mil postos de trabalhos na categoria empregados e assalariados rurais. A relação anual de informações sociais do Ministério do Trabalho permite chegar a outros números sobre a situação dos postos de trabalho no meio rural. De acordo com o sistema Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) ligado à pasta, cerca de 13 mil postos de trabalho foram fechados no setor primário da agropecuária em dezembro de 2016. No acumulado do ano, o saldo foi negativo em 48 mil postos.
Só no Centro-Sul, 100 mil postos de trabalho foram extintos da agropecuária entre os períodos 2006/2007 a 2013/2014, segundo estudo publicado pelo Dieese. Para o pesquisador do Instituto de Economia Agrícola (IEA), órgão qualificado em análises econômicas e estatísticas vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Carlos Eduardo Fredo, o desemprego no setor agropecuário é consequência da contínua especialização e mecanização do processo agrícola. “Casos aqui em São Paulo podem ser expressos, por exemplo, pelo setor sucroalcooleiro e o processo de mecanização acelerado por conta dos marcos regulatórios instituídos a partir de 2002 para erradicar a queima da palha da cana de açúcar e, consequentemente, mitigar a emissão de gases de efeito estufa. Destaca-se principalmente o Protocolo Agroambiental de 2007 que, este, sim, acelerou a mecanização da colheita da cana de açúcar no Estado de São Paulo, hoje superior a 80% da área produtiva, e que foi decisiva para a eliminação do trabalho manual pelo uso das máquinas. Diga-se de passagem, com pouca atenção no processo de realocação e requalificação dos cortadores de cana de açúcar”, comenta. No interior de São Paulo, o mercado de trabalho geral registrou o fechamento de 97 mil vagas em 2016, de acordo com o CAGED.
A redução dos postos de trabalho está associada à crescente mecanização do processo agrícola. Em 1970, por exemplo, havia 160 mil tratores em operação no meio rural. Em 2013, eram quase 1,2 milhão. O Dieese estima que em 2050 o número de tratores possa atingir 1,7 milhão de unidades. Segundo estimativas da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA), o mercado de máquinas agrícolas em 2016 registrou a venda de 43 mil unidades.
“Plantar é cíclico. Você precisa vender bem, para investir novamente na terra para ter novamente o que vender” (Roberto dos Santos, FETAESP)
Para o Secretário-Geral da FETAESP, Roberto dos Santos, fatores como a elevada taxa de desemprego e o baixo crescimento econômico prejudicam o pequeno produtor rural. “A recessão, não só no Brasil, mas mundial, assim como para o homem da cidade, com a maior taxa de desemprego já vista, também afeta o pequeno produtor que não consegue honrar com seus pagamentos, devido as secas, ou excesso de chuvas, dependendo da região, a falta de assistência técnica governamental, a falta de instrução para acesso às políticas públicas governamentais e outros entraves. E no caso da crise, há um menor consumo da população, assim o pequeno agricultor não consegue vender sua produção a valores que desejava, perdendo seus produtos ou os entregando a preços irrisórios, não tendo lucro e, consequentemente, não conseguindo investir em sua propriedade. Plantar é cíclico. Você precisa vender bem, para investir novamente na terra para ter novamente o que vender”, conclui.
Bauru terminou o ano de 2016 com saldo negativo na criação de empregos nos setores agropecuário, extração vegetal e pesca. De acordo com o CAGED, no ano foram fechados 405 postos de trabalho, o pior resultado desde 2010, em que foi registrada a redução de 373 postos. Sobre a redução de empregos no setor (em 2015, o saldo foi positivo em 35 postos), o Secretário Municipal de Agricultura e Abastecimento de Bauru (Sagra), Chico Maia, destaca as políticas municipais voltadas ao pequeno produtor rural. “A Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento mantém um relacionamento próximo ao pequeno produtor rural do município de Bauru, apoiando, realizando e divulgando cursos de capacitação e eventos para discutir e sugerir novas ações do Governo em prol desse público. A Sagra presta serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). Também mantemos, no Departamento de Agricultura, localizado no Centro Rural de Tibiriçá, um Centro de Difusão de Tecnologia, onde são feitos experimentos, produção de mudas e oferecidos cursos aos produtores. A Divisão de Estradas Municipais é responsável pela conservação das estradas, facilitando o escoamento da produção. Já o Departamento de Abastecimento apoia os produtores na comercialização dos produtos”, explica.
Enquanto o setor agropecuário amarga projeções pessimistas para o futuro, seu Paulo Eurípedes, o produtor bauruense do início desta reportagem, continua espalhando simpatia entre os clientes que frequentam a feira no Bauru Shopping às segundas-feiras. “Aqui a gente tem um compromisso. Um compromisso que a gente adquire com nossos clientes e temos que cumprir”, comenta, ao se despedir de mais um dia de trabalho.