Conheça o “drone do aborto” e como a tecnologia pode exercer influência sobre as liberdades individuais
Bárbara Christan e Ingrid Woigt
Sob o céu nublado, no dia 27 de junho de 2015, dois drones levando pílulas abortivas sobrevoaram a fronteira entre Alemanha e Polônia. O rio Oder, que divide os dois países, foi palco da ação de Rebecca Gomperts, médica e criadora da organização Women on Waves. O primeiro drone saiu às 11h03 de Frankfurt an der Oder, o lado alemão, e chegou a Slubice, na Polônia, com duas caixas dos remédios Misoprostol e Mifepristone. Entretanto, o segundo aeromodelo não conseguiu cruzar a fronteira, pois a polícia alemã confiscou os controles e iPads dos controladores. Em Slubice, duas mulheres esperavam pela chegada dos medicamentos. Foi a primeira vez que o drone do aborto voou.
Enquanto na Alemanha as pílulas podem ser compradas em qualquer farmácia por preços que variam de 50 a 150 euros, na Polônia elas circulam na clandestinidade, e podem chegar a custar mil euros. Polônia, Irlanda e Malta são os únicos países na Europa onde o aborto é proibido. Como o drone pesa menos de 5 kg, não é usado para fins comerciais, e tem voo assistido, não seria necessária autorização da lei alemã nem polonesa.
Ativismo
Neste ano, no mês de junho, outro drone carregado de pílulas abortivas atravessou a fronteira entre Irlanda e Irlanda do Norte, como forma de protesto simbólico. Em ambos os países, a prática do aborto só é permitida quando há risco de vida da gestante. O protesto foi a resposta dada ao tribunal que sentenciou uma mulher, da Irlanda do Norte, a 3 meses de prisão por ter induzido o aborto através de pílulas compradas pela Internet. A ação foi organizada por ativistas da Alliance for Choice, Rosa, Labour Alternative, The Abortion Rights Campaign, Youth Coalition for Sexual and Reproductive Rights e Women on Waves.
A organização não-governamental holandesa Women on Waves foi criada por Rebecca Gomperts em 1999. A ação da WoW é feita por meio de drones e navios para o envio de medicamentos abortivos a países onde a prática é proibida. A princípio, as ações eram realizadas em navios em alto mar, pois estando em águas internacionais, um navio é regido pelas leis do país onde fora registrado. Estando à bordo de um navio holandês, onde o aborto é legalizado, a WoW pode garantir a prática de forma segura.
A primeira viagem de navio foi em 2011, para a Irlanda. Depois viajou para a Polônia, Espanha e Portugal. A Espanha legalizou o aborto em 2010; em Portugal, mesmo com navios barrados antes de chegar ao porto, a ação chamou a atenção da mídia sobre os direitos reprodutivos das mulheres, e em 2007, a prática tornou-se legal.
A WoW foi criada com o intuito de prevenir gravidez indesejada, e tentar evitar a morte de mulheres decorrentes de práticas abortivas arriscadas e sem acompanhamento médico. Ao migrar para a plataforma digital, a instituição se tornou também Women on Web, sendo uma “comunidade/rede digital de mulheres que fizeram um aborto e de indivíduos e organizações que apoiam o direito ao aborto”.
Panorama global
Em outros países, sabe-se que a realidade é tão dura como no Brasil, onde o aborto clandestino e inseguro é a realidade de mulheres de baixa renda. Abaixo, veja mais sobre a legalidade do aborto em nove lugares.
Saúde Pública
A existência de organizações como a Women on Waves e a Women on Web contribui para o entendimento de que o aborto é uma questão de saúde pública global, muito mais do que uma discussão ética.
Todo ano, 56 milhões de abortos são realizados ao redor do planeta e, destes, cerca de 21,6 milhões são feitos de forma insegura – através de práticas perigosas, autoflagelantes. “Essa proporção é alarmantemente assustadora”, diz Letícia Zenevich, advogada e mestranda em Direitos Humanos, sobre os dados, que são resultado de uma pesquisa realizada pela Sciences Po – Instituto de Estudos Políticos de Paris.
No Brasil, o aborto é crime previsto no Código Penal, sendo somente autorizado em caso de estupro, gestação de feto anencéfalo, ou em ocorrência de risco de vida para a mulher.
Apesar disso, são realizados 1 milhão de abortos todos os anos. Uma a cada cinco mulheres brasileiras se submete ao procedimento, que é, de acordo com o Ministério da Saúde, a quinta causa de morte materna. Numa recente pesquisa realizada pelo Ministério em todo o território nacional, veiculada pela revista Ciência & Saúde Coletiva, concluiu-se que 66% das mulheres brasileiras que abortam são católicas, 25% são protestantes ou evangélicas, 81% delas têm filhos, 64% são casadas e 84% delas tem entre 25 e 39 anos. Ou seja, a mulher que aborta no Brasil é virtualmente toda mulher: de todas as religiões, em várias faixas etárias.
As mulheres abortam. E elas morrem. De acordo com Mariana Chies Santiago, advogada e socióloga, “como todas as outras leis existentes, essas [que proíbem a prática do aborto] garantem punição, mas não o fim da atividade. As brasileiras abortam, e acontece que isso se dá em condições clandestinas e de risco”. E para José Henrique Torres, Juiz de Direito do Tribunal do Júri, professor de Direito Penal da PUC-Campinas e estudioso do abortamento no Brasil, “a criminalização está causando muito maior dano do que o próprio aborto”.
Tecnologia em prol de direitos
O que tem a discussão acerca da legalização do aborto a ver com ciência, tecnologia? O uso de drones que cruzam fronteiras levando pílulas abortivas é uma resposta. O termo “drone” designa um aparelho aeromodelo controlado via ondas de rádio. O conceito foi elaborado no contexto militar, no qual se projetavam aviões de guerra que poderiam voar sem pilotos. Foi apropriado pela indústria robótica e altamente incorporado no desenvolvimento de brinquedos.
Indo além da resposta mais óbvia, é interessante que se entenda a tecnologia, com todos os seus avanços e seus empregos inovadores e criativos atualmente, como uma aliada as causas humanitárias. A Woman on Waves, por exemplo, se apropriou da ideia de um aparelho capaz de vencer as barreiras territoriais e lhe atribuiu significado, alinhou a ciência do século XXI as demandas sociais dessa época. “O direito de escolha destas mulheres sobre seus corpos não é considerado, mas a tecnologia proporcionou condições para o exercício de suas liberdades individuais, liberdade sobre quem são, sobre o que querem para si”, diz Zenevich.
E não é preciso de engenharia avançada ou high-tec para se atribuir significado social ao uso da ciência. A Women on Web trabalha hoje com uma conhecida: a Internet. A organização tira dúvidas sobre aborto seguro via e-mail, em 11 línguas, e atende a pedidos de envio de remédios abortivos da Índia a países onde eles são ilegais – quando não existe contraindicação médica. Isso inclui o Brasil. Dos 8 mil pedidos de ajuda que a ONG diz receber por mês, mais de 1 mil são de brasileiras.
Segundo Rebecca Gomperts, a diretora, “muitas vezes os remédios não chegam. Não sabemos se é um problema dos correios ou da alfândega, se eles são roubados no meio do caminho ou quê. Até dois anos atrás, nossos pacotes chegavam sem problemas, mas agora não mais. Para ser honesta não acho que exista no mundo uma situação tão desesperadora como no Brasil. Está muito difícil ajudar essas mulheres”. No entanto, a médica diz que a equipe da WoW vai continuar usando os dispositivos dos quais dispõe para fazer o trabalho que vem fazendo. “É humanitário, é sobre liberdades individuais, e nós temos recursos, tecnológicos, financeiros e até legais. As pessoas devem usar a tecnologia em prol de direitos. Isso é positivo, não vamos parar”, falou em entrevista.
O maior impasse em relação à discussão sobre o aborto, no Brasil, se encontra no âmbito legal. Em 2015, foi aprovado um projeto de lei que criminaliza qualquer pessoa que induza ou oriente uma gestante ao aborto, criado pelo ex-deputado Eduardo Cunha. Além disso, o projeto dificulta o aborto legal, em casos de estupro – prevê que a mulher passe por exame de corpo de delito para comprovar a agressão sexual. Em 2016, Cunha e o deputado João Campos (PRB-GO) apresentaram uma PEC que determina que o direito à vida é inviolável “desde a concepção”, e ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados. A não-abertura dos políticos ao debate sobre a legalidade do ato é uma enorme barreira e retrocesso.
O uso de drones no envio de pílulas abortivas assegura que cada mulher tenha autonomia sobre seu próprio corpo e possa, de maneira segura, interromper a gravidez. Valores religiosos e morais não têm espaço em uma discussão que trata de vidas em risco, ou de sérios danos físicos, psicológicos, e emocionais causados por métodos perigosos. Como afirmado no texto, aliar a tecnologia dos drones com as demandas atuais é essencial para assegurar que mulheres exerçam sua liberdade individual e possam decidir seu próprio caminho, sem a interferência de terceiros – homens, especificamente.