por João Pedro PDA e Isaac Toledo
Segunda-feira. 5h30 da manhã. Para muitos homens, mulheres e jovens a semana acaba de começar. Levantam da cama, tomam café, um banho, se vestem e partem para mais um dia de trabalho.
Durante o dia, a correria de sempre. Terminar as tarefas inacabadas da semana anterior, finalizar serviços antes do almoço. Quando chega hora de comer, simplesmente engole a comida e volta o mais rápido possível para tentar terminar tudo antes do final do expediente.
Dezoito horas. Fim do expediente. Hora de voltar pra casa, ligar a televisão seja para ter uma companhia enquanto faz outras tarefas, para se informar, entreter… Porém, nesse dia, ao ligar o aparelho… Nenhuma imagem. Só chuvisco.
A pessoas começam a perguntar o que aconteceu, trocam mensagens via internet, vão até aos vizinhos para saber o que está acontecendo. O sinal analógico foi desligado e para ter acesso ao sinal digital precisam de uma antena UHF e um conversor, caso ainda tenham uma TV de tubo.
Aí começa aquela correria para saber onde comprar, como instalar e quanto isso tudo irá afetar o orçamento, muitas vezes comprometido com outras demandas. Pensando nisso, fomos até o centro de Bauru, São Paulo, para averiguar como estão os preparativos da população da cidade para o fim do sinal analógico.
Iniciou-se a procura pelo conversor digital externo. Ele é essencial para as pessoas que ainda possuem os aparelhos de TV mais antigos. Segundo dados obtidos pelo IBGE por meio da PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio) com relação à Tecnologia da Informação e Comunicação, 44,5% dos domicílios brasileiros possuíam esse tipo de aparelho em 2015. Foi a primeira vez em que os aparelhos mais novos, de tela fina, que dispensam o uso do conversor externo, foram a maioria (55,5%).
Foram consultados dez pontos de venda espalhados pela cidade. A variação de preços foi de 105%. O menor valor encontrado para a compra de um conversor foi de R$ 87,00 à vista. O maior, R$ 179,00. Para receber o sinal digital também é preciso uma antena externa UHF. Na apuração de preços, a variação é igualmente considerável (174%), indo de R$ 35,00 a R$ 96,00, dependendo do poder de alcance de cada modelo.
Na pior das hipóteses, a preparação para o fim do sinal analógico em Bauru (considerando a compra de um conversor mais uma antena externa) poderia resultar num gasto de R$ 275,00 reais. Tal valor corresponde a 29,74% do salário mínimo nacional, equivalente a R$ 937,00. Na melhor delas, o gasto seria de R$ 122,00. Famílias cadastradas em programas sociais do Governo Federal, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, podem requisitar gratuitamente um conversor e uma antena por meio da Seja Digital, instituição não-governamental responsável por operacionalizar a migração do sinal analógico para o digital.
Perguntou-se aos vendedores o prazo necessário para ter o aparelho e não ficar sem TV quando o desligamento do sinal analógico finalmente ocorrer na cidade. As repostas foram tão divergentes quanto os preços: desde “300 dias” até o prazo correto. Alguns, porém, não souberam precisar o dia. “Muda toda hora. Cada vez lançam um prazo diferente”, se explicavam os que não estavam seguros de suas respostas.
Eles têm razão. Atualmente, o prazo para o desligamento do sinal analógico em Bauru é dia 28 de março de 2018. Porém, a data já foi adiada duas vezes. O prazo inicialmente previsto pelo Governo Federal por meio do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) era 27 de setembro de 2017. Passou para 29 de novembro e agora para 2018.
“A TV brasileira entra hoje na era digital. Começa aqui, na cidade de São Paulo, um processo que em pouco tempo vai permitir um grande salto tecnológico, econômico, social e cultural no Brasil”. Com essas palavras, o ex-presidente Lula inaugurou, em dezembro de 2007, o início da transmissão do sinal digital de televisão. Dez anos depois, o discurso parece não ter chegado, de fato, à realidade.
A TV digital saiu do papel em 29 de Junho de 2006, por meio do Decreto nº 5280, um ano e meio antes do início das transmissões. O Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre – SBTVD-T deveria possibilitar três feitos: a transmissão digital em alta definição (HDTV) e em definição padrão (SDTV), a transmissão digital simultânea para recepção fixa, móvel e portátil e a interatividade, o mais problemático do trio.
A possibilidade de uma TV interativa foi alvo de resistência das emissoras por receio de que o mecanismo pudesse interferir no principal pilar de seu modelo de negócio: os comerciais. A análise é da jornalista Patrícia Maurício, autora do livro “Conflitos na TV digital brasileira”. Em entrevista à TV Brasil, ela explica que a veiculação de conteúdos adicionais por meio de um canal de interação poderia desprender a atenção do telespectador, de modo que este deixasse de assistir ao anúncio comercial. “Os anunciantes perceberiam isso. Assim, o preço dos anúncios, que é o que sustenta a TV comercial, tenderia a cair”, explica.
Outros pontos do decreto de 2006 seguem não resolvidos. Um deles é a criação de canais de TV cuja responsabilidade de operação seria da União. Alguns ainda não foram inteiramente implementados, tal como o Canal de Cidadania. Ele deveria servir para a “transmissão de programações das comunidades locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal”.
O projeto da TV Digital brasileira é muito semelhante ao Japonês. A escolha pelo modelo asiático foi devido às semelhanças de relevo (acidentado e irregular) entre a ilha nipônica e o continental Brasil. A decisão, no entanto, é criticada por alguns especialistas. As críticas vão para o fato de um modelo nacional de TV Digital ter sido descartado, comprometendo a ideia de inclusão digital via televisão.
O processo de digitalização do sinal de TV ocorreu após um avanço significativo na demanda por telefonia móvel. Isso fez o espectro eletromagnético (o ar por onde as ondas de rádio se propagam) se tornar um espaço cada vez mais disputado. O sinal analógico de TV ocupa a faixa de 700 megahetrz (radiofrequências de 698 MHz a 806 MHz). Nessa frequência, as ondas eletromagnéticas são longas, permitindo um raio de propagação bastante amplo, demandando menos antenas de transmissão. Uma vez desligado, o sinal de TV analógica dará lugar ao sinal de telefonia. Isso permitirá que regiões mais interioranas do país possuam melhores sinais de internet, o chamado 4G.
Tal como na concepção, a TV digital contabilizou problemas em sua concretização. Isso porque o processo de desligamento do sinal analógico – chamado de switch off – e consequente migração para o sinal digital não aconteceu a contento. De acordo com o decreto de 2006, o prazo final para o desligamento em definitivo do sinal analógico é dia 31 de dezembro de 2018. Porém… Em recente edição do Diário Oficial da União, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações estendeu em cinco anos o prazo original do desligamento das transmissões analógicas. A nova data é dia 31 de dezembro de 2023.
A primeira cidade onde o desligamento foi realizado foi Rio Verde (a 230 km de Goiânia), no estado de Goiás. A previsão inicial era que a chamada “cidade piloto” tivesse o sinal analógico desligado em novembro de 2015. Porém isso só ocorreu em março de 2016. O adiamento em Rio Verde se deu porque na primeira data, apenas 62% dos domicílios da cidade estavam aptos a receber o sinal digital. Uma portaria de 2016 do então Ministério da Comunicação estabeleceu uma regra para que o desligamento pudesse acontecer. Pelo menos 93% dos domicílios do município que acessem o serviço aberto de transmissão terrestre devem estar aptos à recepção da televisão digital.
Desde então, governo e emissoras se esforçam para tentar fazer a população se adaptar à recepção do sinal digital. Uma das iniciativas foi a criação do GIRED, Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV. Composto pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), pelas emissoras de TV aberta e por operadoras de telefonia, o grupo traça estratégias junto ao governo para auxiliar no processo migratório. Nem sempre surte efeito. Adiamentos dos prazos de migração se tornaram corriqueiros, tal como acaba de ocorrer no Rio de Janeiro.
Entre as estratégias está a criação de campanhas educativas sobre o funcionamento do sinal digital para a população, bem como os passos necessários para sua recepção. As campanhas devem ter início 360 dias antes do desligamento do sinal analógico na região. Entre suas outras atribuições, o GIRED deve averiguar, por meio de entidade especializada utilizando metodologia estatística baseada na Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar – PNAD, se o percentual mínimo para o desligamento foi atingido.
Em Bauru, a população parece estar bem informada sobre a mudança. Amélia Cândido, de 50 anos e moradora do Núcleo Gasparini, disse que só assiste televisão via canais abertos. Ela contou ter comprado o conversor três meses atrás. Bem diferente de Isabel Garcia, de 63 anos e moradora do Núcleo José Regino. Ela sabe que o sinal analógico irá acabar, mas não comprou o conversor ainda. “Brasileiro espera até o último minuto”, respondeu com bom humor.
Em 2016, o IBGE, em parceria com o MCTIC, lançou o suplemento “Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal”, uma extensão dos dados colhidos na PNAD de 2015. O relatório mostrou que 97,1% dos domicílios brasileiros tinham acesso à TV na época. O percentual equivale a 66,1 milhões de domicílios. Uma parcela consideravelmente maior do que os 57,8% de domicílios com acesso à internet, por exemplo.
Com relação ao sinal digital de TV aberta, 33 milhões de domicílios (49,9% do total com acesso à TV) não o recebiam. Desse montante, mais de um terço não tinha outra forma de recepção de sinal de TV aberta senão a analógica. Ou seja, 13 milhões de domicílios dependiam exclusivamente do sinal analógico aberto, sem antena parabólica ou TV por assinatura.
A distribuição geográfica desses 13 milhões de domicílios sem alternativas para a recepção do sinal digital também foi apresentada pelo IBGE. O maior percentual fica na região norte (25,4%), seguida da região Nordeste (22,0%) e Centro-Oeste (19,8%). Sul e Sudeste ficaram com os menores percentuais (18,9 e 17,8 respectivamente).
Os que em 2015 estavam aptos a receber o sinal digital de TV aberta correspondiam a 45,1% do total de domicílios com acesso à TV. Porém, apenas o Distrito Federal e mais três estados (São Paulo, Espírito Santo e Paraná) contabilizavam mais da metade de seus domicílios aptos a receber o sinal digital aberto. O estado com menos domicílios capazes de receber o sinal digital era o Tocantins, com 21,5%.
Mesmo com o avanço da Internet, a TV permanece como a principal mídia consumida pelos brasileiros. A Pesquisa Brasileira de Mídia (PMB) realizada em 2016, mostrou que 63% dos entrevistados têm na televisão a principal fonte de informação sobre o que acontece no Brasil e no mundo. Do total de 15050 pessoas ouvidas pelo IBOPE para a PMB, 77% disseram que assistem TV todos os dias da semana.
O relatório da PMB 2016 concluiu que “a TV é o meio de comunicação mais acessado pelos entrevistados, sendo mencionada pela quase totalidade da amostra”. O tempo médio de acesso “supera as três horas diárias”. Com relação à preferência do telespectador, “as emissoras da TV aberta são as mais assistidas”.
Os números são uma amostra dos problemas que o swich off poderá provocar em breve em uma parcela considerável dos lares brasileiros. “No caso do desligamento da transmissão analógica, deve-se focar na situação da população mais pobre, um segmento que nunca contratou ou não tem conseguido mais manter a TV paga e, ao mesmo tempo, também não tem condições acessar Internet banda larga”, alerta Daniel Fonsêca, jornalista e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, organização que trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil.
Ao jornal “O Estado de S. Paulo” no ano passado, Marcelo Zuffo, Professor do departamento de engenharia de sistemas eletrônicos da escola politécnica da USP, esboçou preocupação com relação ao fato de algumas cidades estarem efetuando o desligamento antes do percentual mínimo de lares aptos a receber o sinal digital estipulado pelo governo. “Sem dúvida, nos próximos dias, haverá pessoas sem TV sem saber o motivo”, disse o professor.
De um lado está o fato de muitos brasileiros não terem condições de investir nos itens necessários para a recepção do sinal digital. Do outro, a preocupação com a capacidade de muitos municípios – em especial os mais interioranos – de proverem a infraestrutura necessária para que o sinal das emissoras possam ser retransmitidos. “As duas questões são importantes. Não só a renda do cidadão como a renda do município, em questão de ter uma antena a ser a repetidora do sinal digital daquela região. Em muitas cidades do interior do país, quem faz esse investimento é a prefeitura”, ponderou Cristina de Luca, jornalista especializada em tecnologia e editora do Grupo IDG Brasil, em entrevista ao programa Ver TV, da TV Brasil.
Outra questão importante permeia o debate sobre a migração. Em certos casos, o investimento terá de partir das emissoras e retransmissoras, o que pode gerar um novo problema, igualmente atrelado aos custos do processo. “A maioria das emissoras não tem dinheiro para arcar com os custos dos equipamentos de transmissão digital”, alerta Fernando Gaio, editor chefe da Panorama Audiovisual, publicação dirigida aos profissionais de criação, produção e distribuição de conteúdos audiovisuais. O problema se agrava porque essas emissoras são, geralmente, de pequeno porte, afiliadas ou retransmissoras espalhadas pelo interior do país, explica Gaio.
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Dessa maneira, os telespectadores dessas cidades ficarão em situação bastante desfavorável e pouco poderão fazer para revertê-la. Daniel Fonsêca acredita que faltam medidas efetivas de defesa do interesse público no que concerne à comunicação. “O problema é que a população nunca foi educada com essa ideia de direito à comunicação, e o Estado não promoveu isso. Então não existe hoje no Brasil uma promotoria ou uma procuradoria específica da comunicação, tal como a da educação, da saúde, do idoso, por exemplo”, pondera o jornalista.
Fernando Gaio tem visão semelhante. Para ele, “a migração é manca”. As populações mais pobre de cidades pequenas não serão beneficiadas por essa evolução tecnológica. “As pessoas de mais baixa renda, mesmo recebendo os receptores gratuitamente ou comprando televisores novos, não experimentarão plenamente essa evolução porque muitas emissoras não estão dando conta de bancar sua operação digital”, avalia.
Os desafios da TV digital são grandes. Sua implementação poderia representar um importante avanço na inclusão social e digital brasileiras. Os variados interesses econômicos que a permeiam, porém, estão transformando-a em mais um fator denunciante da desigualdade brasileira.