Na semana passada, Perninha atravessava o cruzamento da Aviador Gomes Ribeiro com a Almeida Brandão alternando tosses carregadas e espirros. Nessa semana, ninguém o viu, nem ouviu. Ele tem celular. Ganhou de presente, a gente sabe. Mas ninguém pediu seu número. Perninha é um homem que viveu e sofreu. Pai que tenta sempre dar de melhor pro seu filho pequeno, por mais complicada que seja a situação. Perninha olha carros num cruzamento de Bauru.
No último semestre, me acostumei com uma rotina: de um lado para o outro, o homem procura o melhor lugar entre as quatro esquinas para armar o seu escritório. No melhor ponto de sol para o horário, Perninha posiciona seu banquinho e antes de se sentar observa as ruas. Estamos perto de uma grande avenida da cidade, a Duque de Caxias, e estacionar por aqui pode ser difícil, então o trabalho do guardador de carros não se resume a olhar e esperar.
Perninha conhece as ruas do entorno. Sabe as vagas disponíveis e as garagens de cada casa. Algumas casas, como a minha, não usam a garagem, então o guardador sabe que ali, na frente do portão branco, quem estiver procurando vaga durante a correria do almoço pode estacionar seu carro.
O guardador de carros percebe. Se levanta com dificuldade, pelas dores na perna (um desafio que o caracteriza – Perninha foi atropelado quando moço). Acena para o carro que avança lentamente pela rua enquanto atropela as infinitas folhas caídas no chão. Mexe os braços para um lado e ajuda. Freio de mão puxado, os passageiros saem do carro e já entram no restaurante. Se tudo ocorrer bem durante o almoço, Perninha pode ganhar uns trocados.
Assim passam as horas e os dias, e a figura magra de Perninha faz cada vez mais parte do cotidiano de quem vive e passa pelo cruzamento. Perninha é visto por todos. Mas quem verdadeiramente enxerga o homem que passa os dias guardando carros no cruzamento?
Perninha não nasceu com apelido. Mas quem sabe seu nome? É pai. Mas qual o nome do seu filho? Arrasta uma das pernas e com dores se mantém firme na missão de guardar os carros estacionados em suas ruas, mas alguém já parou para falar com o Perninha? Ou alguém já parou e ouviu o Perninha?
Bem, hoje ele não está aqui. Nem esteve ontem e provavelmente não deve aparecer amanhã… Não tenho seu número de celular e duvido que tenham. Sem saber o que aconteceu com o homem, podemos tentar ver o guardador de carros pelos olhos de quem o enxerga trabalhar dia após dia debaixo de sol e chuva. Algumas pessoas doam conversas, pratos de comida e copos de água. Outros dividem cigarros e pensamentos, alguns conversam sobre futebol. Tem quem não se sinta bem com a presença do Perninha mas, no final das contas, será que alguém realmente o enxerga?
O Galo Azul é o posto ao lado do cruzamento em que Perninha trabalha e se mantém. Bastante movimentado por estar na Avenida Duque de Caxias, é sempre um lugar em que o Perninha costuma aparecer. Geralmente compra um refrigerante com os trocados do trabalho.
Chego na conveniência e pergunto se alguém havia visto o tal guardador de carros. “Ah, sim! O Perninha! Tá tudo certo! Ele tá trabalhando normalmente…” – é a resposta da atendente. Eu estranho, já que faz dias que não tenho sinal do Perninha. A atendente completa: “Nossa, faz tempo que ele olha carro aqui, hein? “
Enquanto continuo a conversar com a moça do caixa, digo que faz tempo que não o vejo. Ela pondera que os nossos horários não devem estar mais batendo… A hora do almoço é sempre a mesma, mas “esse tempo doido estraga os horários dos ônibus, deve estar corrido… Ele mora lá no Ipiranga, se não me engano. É longe! “
A atendente aponta para um dos funcionários do posto e indica: “Aquele ali de jaqueta vermelha é o que mais conhece o Perninha. Eles costumam conversar bastante! “.
Pago minhas compras e agradeço. Ao se despedir, a atendente reforça que eu deveria falar com o rapaz de jaqueta vermelha. Me dirijo até as bombas e cumprimento o homem, mas logo no começo da conversa um carro chega para ser abastecido. Tentamos conversar durante o atendimento, mas uma fila começou a se formar e então eu digo:
Meu querido, eu moro aqui do lado, eu dou uma passada aqui depois! – o homem acena com a cabeça e nos despedimos.
Logo em frente ao posto, o Restaurante Do Outro Lado é origem da maior parte dos carros que Perninha guarda. Inclusive, numa conversa passada, o próprio guardador de carros disse que “estacionava o banquinho” dele ali no restaurante. Sempre movimentado, o restaurante encerra o serviço do almoço às 14h, então espero o melhor horário e me dirijo até o balcão em que a dona trabalha como caixa.
Pergunto sobre o guardador de carros, lembrando que há tempos não o via – talvez até por isso estranhei a última conversa com a atendente da conveniência. Prontamente, a mulher responde que “a gente também não viu, acho que essa semana inteira ele não veio…”.
Enfim me deparo com alguém que também havia notado a ausência de Perninha, então continuo a conversa sobre o guardador, comento um pouco sobre o que sei, e a proprietária do restaurante se mostra bem atenciosa: “a gente fica preocupado quando ele deixa de aparecer, né?”.
A conversa segue mansa até o momento em que comento sobre o fato de Perninha já estar trabalhando ali no cruzamento há muitos anos. Na hora, a moça comenta:
“Trabalha”, né? Porque ele só fica lá fora olhando os carros. Ele guarda o banquinho dele ali embaixo do balcão, uma vez por dia passa aqui para pegar uma marmitex e, quando junta dinheiro, troca os trocados aqui com a gente.
Perninha faz parte de uma parcela significativa da População Economicamente Ativa do país. No ano de 2017, o número de pessoas trabalhando por conta própria ou sem carteira superou as vagas formais em mais de um milhão, segundo dados divulgados pela Agência de Notícias do IBGE. Na informalidade, os trabalhadores não participam de nenhum sistema de previdência social público nem privado, e se enquadram em situação de vulnerabilidade social.
Não pude deixar de estranhar tamanha quebra de expectativa, mas continuo a conversa. Ainda pergunto se a mulher sabia o nome de Perninha, e ela diz que nunca soube, e também nem sabia como entrar em contato. Agradeço o tempo e atenção e saio. No caminho, vejo o banquinho do guardador de carros estacionado embaixo do balcão do restaurante.
Acordo num domingo de sol forte. Os raios de luz parecem ignorar a pouca resistência que a janela do meu quarto oferece ao lado de fora. Quando levanto, me ajeito nas roupas e encontro um céu azul, com os infinitos tons de verde das folhas da calçada de casa. A mesma vista de sempre, que sempre surpreende. Inclusive, alguma coisa ali parece estar mais costumeira que o normal.
Da janela, à esquerda, vejo a mesma figura magra e de boné que me acostumei a encontrar todos os dias ao chegar ou sair de casa. Num azul bem escuro, uma camiseta longa, para proteger do sol. O mesmo boné de sempre. Perninha me vê na janela e acena. Logo escovo os dentes e desço as escadas de casa, passo na cozinha e já abro a porta da rua.
Abro o cadeado e o homem percebe, já se levantando em minha direção. Sorrisos e acenos: “quanto tempo, hein, Perninha, tava de folga?”. Entrego um copo de água para ele, como de costume. O guardador de carros trabalha debaixo do sol e sempre agradece quando alguém lembra dele, independente da proporção do gesto.
Que folga que nada, tava cuidando das crianças… Minha mulher conseguiu um emprego, então dei uma segurada essa semana, cuidar das crias – Perninha responde sorrindo – Difícil ter descanso com dois meninos pequenos, hein! Toda hora, pulando de um lugar pro outro…
Conversamos por algum tempo, o guardador de carros conta mais sobre Guilherme, seu filho, e sobre Miguel, o afilhado – “O mais pequenininho não tá muito bem esses dias”. Miguel é filho da atual esposa de Perninha. A conversa continua e ele pergunta sobre o pessoal de casa. Até o dia em que deixou de aparecer por aqui, há tempos, nem todos os moradores haviam voltado das férias.
Comento que passei um tempo perguntando sobre ele pelas redondezas e ele sorri. Agradece a preocupação e me acalma, dizendo que nada demais havia acontecido. “O pessoal sente falta, é fogo. É lindo isso, faz mais de 10 anos aqui nesse cruzamento”. A conversa continua e Perninha comenta:
Se você perguntar em qualquer lugar sobre o Perninha, tem vários. Mas se falar que é o magrinho comunicativo, todo mundo vai saber que sou eu!
Enquanto fumamos um cigarro, nos voltamos mais para a história do guardador de carros. Perninha conta que nasceu em Garça, cidade bem perto de Bauru, e se mudou para cá em 1996. Conta, também, que a última vez que viu seu pai foi em 2001. Hoje o pai ainda mora em Garça, mas os dois não tem contato. Pergunto para o guardador de carros qual o nome dele, pedindo desculpas caso estivesse sendo folgado. O homem responde rápido, e já reforça:
Eu me chamo Ednaldo, mas meu nome é Perninha. Eu sou o Perninha…
Perninha pergunta se eu posso arranjar outro cigarro pra ele, disse que fumar com as crianças em casa é complicado, “e depois das seis a Dona Onça chega, né?”. Convido ele para passar em casa mais tarde, digo que vamos fazer um churrasco, assar umas carnes. O guardador de carros recusa o convite, o homem precisa ir para casa às 14h. O pai precisa levar os filhos, junto com a companheira, na UPA do Bela Vista, às 16h: “meu mais novo não tá muito bem”.
[…] mas fio, obrigado pela preocupação, hein! E manda um abração pra todo mundo! Essa semana eu dou uma passada lá!
Perninha tem carros para guardar, então nos despedimos. É almoço de domingo, movimento grande. Tão estranho foi notar a ausência do Perninha no cotidiano, e tão suave foi perceber que agora aquele mesmo banquinho que estava guardado no Restaurante do Outro Lado permanece naquela mesma calçada de sempre.
Chego em casa, coloco a senha do cadeado e abro a porta. A sala está cheia, as pessoas escutando música e conversando. O tipo de calma que o domingo parece gostar de trazer desde sempre. Me sento num banquinho e com pouco tempo de conversa, a sala fica em silêncio. Só o som que se escuta é o da música baixa na TV. Pra quebrar o silêncio, um amigo vira pra mim e pergunta, e eu sem desconfiar de nada escuto:
E aí, Samir, você viu o Perninha?
…