Por Bárbara Alcântara
Andrea Dip é nome forte em duas áreas, talvez não tão próximas, mas que são unidas por um interesse em comum: o feminismo. É repórter especial e editora na Agência Pública, primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil. E é também vocalista da banda punk paulistana Charlotte Matou um Cara.
Como jornalista, grande parte do que escreve está ligado às pautas de defesa dos direitos das mulheres; seja em questões políticas, como a bancada evangélica atuante no Congresso contra os direitos das minorias, ou em questões sociais, como a prostituição de menores de idade em Fortaleza na época da Copa, como as agências publicitárias que fazem o filho trabalhar para a mãe como mini celebridades, ou então na denúncia de clínicas falsas de aborto.
A banda segue a mesma linha a partir do nome: inspirado em uma fala célebre de Charlotte Corday, condenada pelo assassinato de Jean-Paul Marat, “Matei um homem para salvar cem mil”. O uso do nome traz uma questão à tona, sobre o quanto as mulheres são e continuam sendo invisibilizadas no percurso da história. Quantas outras Charlottes não existiram, com papéis decisivos nos rumos da sociedade, mas nunca ouvimos falar?
Charlotte Corday, no logo da banda (Créditos: Guilherme Peters)
“A gente faz reportagem com dado, com número, com entrevista e às vezes esse grito fica preso, sabe? Eu acho que a banda é onde eu consigo fazer esse grito acontecer, literalmente”, desabafa Andrea, enquanto toma um café na varanda da redação da Agência Pública. É o que “Tiro, porrada e bomba”, uma das músicas mais emblemáticas da Charlotte, significa. A letra é baseada em uma história real, vivida por uma estudante do ensino médio que fez parte do movimento dos secundaristas, e quem ela havia entrevistado uma vez.
Formada em 2004, além de dar gritos raivosos como vocalista da Charlotte Matou um Cara, Andrea é também mãe e uma profissional séria, comprometida com o bom e velho jornalismo investigativo – tanto é que já ganhou entre 5 ou 6 prêmios com isso. A paixão pela área de direitos humanos veio de cedo.
Mais precisamente da adolescência, quando conheceu a banda Bikini Kill e todo o movimento riot grrrl estado unidense. “Desde novinha eu sempre tive como um norte essa coisa de que homens e mulheres deveriam ter os mesmos direitos”, ela relembra. “Eu comecei a escutar punk, a escutar Bikini Kill com 11, 12 anos – então eu já tinha essa vontade, um pouco do feminismo”.
Kathleen Hanna, vocalista da banda Bikini Kill (Créditos: Reprodução)
Naquela época, encontrar o material das bandas era bem diferente. Não tinha internet, com informação à vontade, então ela precisava se virar e comprar fitas k7 ou coletâneas que tinham as músicas que ela gostava. Era tudo mais difícil, e por isso o discurso acabou continuando raso. Mas todos aqueles gritos nas músicas que questionavam o status quo e reivindicavam melhores condições de vida acenderam uma chama, uma vontade de fazer algo para mudar a sociedade.
Apesar de ter recebido o diploma há 14 anos, ela diz que atua na área há mais tempo. “Em 2001, consegui meu primeiro estágio. Fui trabalhar na revista Caros Amigos porque eu queria fazer jornalismo em direitos humanos e no Brasil, na época, a referência disso era lá. Então na minha cabeça meu sonho era trabalhar na Caros Amigos”, conta dando risada. “Um dia eu bati na porta da redação sem conhecer ninguém e falei ‘quero fazer estágio aqui’”.
Quem a recebeu foi o finado Sérgio de Sousa, que era o editor da revista na época. Antes de fechar o estágio, ele deixou claro que dificilmente ela ganharia dinheiro, fosse com as horas trabalhadas, fosse para custear o deslocamento até lá. “Ele me disse que eu provavelmente pagaria para trabalhar e perguntou se eu teria como me sustentar. Eu respondi ‘sei lá, eu dou um jeito’ e, quando ele disse que sim, eu fiquei foi muito feliz”.
Créditos: PaposdeMulher
No mesmo ano em que virou estagiária, ela escreveu a sua primeira reportagem. “Eu falei que queria fazer uma reportagem sobre as crianças do MST. Como elas estudam, como são as escolas nos acampamentos e tal”, conta. “Fui muito ansiosa, mas acho que eles que foram mais doidos que eu e deixaram”. A matéria mudou a sua vida.
Ela foi até o acampamento, entrevistou muitas pessoas e escreveu toda a reportagem. Quando voltou para a redação com tudo finalizado, ela recebeu uma notícia inesperada, que foi primordial para sua construção como jornalista. “Eu cheguei para o ‘Serjão’ com a reportagem e ele falou ‘Tá, muito legal, tá muito certinha segundo o jornalismo, mas agora eu quero que você reescreva tudo em primeira pessoa’”, ela relembra em meio a risadas. “Isso fez toda uma revolução na minha cabeça. Eu acho que foi a primeira luz que eu tive dentro do jornalismo”.
Andrea vestindo a camiseta do MST em um dos shows da Charlotte Matou um Cara (Créditos: Andréia Assis)
Com o nascimento de seu filho no último ano da faculdade, as coisas se complicaram um pouco. “Eu tinha que sustentar o meu filho, não tinha muita opção. Então quando eu saí da Caros Amigos eu fui fazer coisas. Trabalhei em agência de comunicação, trabalhei na Record, trabalhei em um monte de lugares dos quais eu não me orgulho, mas eu tinha que trabalhar. É a vida”, lamenta.
Muitas mulheres acabam se definindo ou colocando a maternidade como ponto decisivo em suas vidas e carreiras. Andrea não faz isso. “É claro que ter um filho e ser mãe solo também te dá uma bela noção de como é o mundo, como as coisas funcionam, e de como a gente é muito privada de direitos”. Ela admite a importância de seu filho em suas escolhas e na construção nítida do que era o feminismo. Mas não deixa de citar outros períodos de sua vida que desenvolveram o seu interesse pela luta pelos direitos das mulheres.
Todas as mulheres juntas logo após um show (Créditos: Andréia Assis)
A primeira lembrança é de quando ela fazia a matéria sobre o MST, para a Caros Amigos. “Eu lembro da gente sentada na casa dela, ela e o marido, e ela me contando histórias de luta, histórias de manifestações, porque ela era uma mulher muito ativa no movimento”. “O marido era agricultor, e cuidava da casa. Quem ia pra linha de frente do movimento era ela. Já tinha apanhado muito, já tinha sido presa”, relembra, emocionada.
Militar pelas mulheres foi destino: em 2011, Natália Viana e a Marina Amaral, que conheceu trabalhando na Caros Amigos, criaram a Agência Pública e convidaram Andrea para fazer parte da equipe de jornalismo. A Pública é focada em jornalismo investigativo, e dá abertura para que as pautas questionem o status quo – sem militar. Ela aceitou na época e está lá até então.
Começou a estudar mais o feminismo, as pensadoras, as correntes etc. E com as reportagens que teve a chance de produzir, cada vez mais percebia as vulnerabilidades de gênero. “Mesmo quando a gente tá falando de violência policial, de meninos que são assassinados pela polícia”, explica, “você vai sempre encontrar uma mãe que tá chorando por esse menino, e você sempre vai encontrar uma mãe que tá transformando essa dor em luta”.
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Perceber essa força, essa capacidade de usar o luto como estímulo para buscar alguma saída para os problemas, foi inspiração para que a jornalista entrasse no que ela mesma chama de “projeto megalomaníaco”. Em 2018, ela publicou um livro, chamado “Em Nome de Quem? A Bancada Evangélica e seu Projeto de Poder”, sobre a atuação da bancada evangélica no Congresso, e um documentário sobre a relação da mulher com a cidade, chamado “Sob constante ameaça”.
“Eu achei que tava tudo de boa, né? Além das matérias, além do filho e além da banda, por que não fazer um documentário e um livro?”, ela ri. “Crianças, não façam isso em casa, por favor! Custa caro”. Em ambos os processos de produção, ela seguiu uma linha parecida com a de seu dia-a-dia no trabalho.
“Geralmente marco uma entrevista com alguém que tem contato direto com aquele assunto, e pode me dar um outro olhar sobre as coisas, já me ilumina muito”, explica. “Depois é só ir seguindo a pesquisa. Investigar, entrevistar, conversar com as pessoas que tão envolvidas, ir nos lugares e não ficar fazendo entrevistas só por telefone”.
Exibindo o livro recém lançado (Créditos: Arquivo Pessoal)
Para o livro, Andrea começou as pesquisas em 2015, usando de base a matéria chamada “Os pastores do congresso” que já tinha feito para a Agência Pública. O problema é que o livro-reportagem só começou a ser produzido de fato depois do impeachment sofrido pela Dilma. Tudo mudou e ela precisou entrevistar novas fontes e assistir a mais cultos no Congresso.
Ela fez tudo correndo e sob uma ótima justificativa: “eu achei que seria importante fazer esse livro e soltar antes das eleições pras pessoas pensarem bem em quem elas vão eleger”. “A gente tem o Congresso mais conservador desde a ditadura militar e isso pode piorar. A gente tem que saber muito bem com que a gente tá lidando, prestar atenção”. Infelizmente, correr contra o tempo não foi o suficiente.
No caso do documentário, ela também se baseou em uma reportagem que fez para a Pública. Mas não na temática central e, sim, em uma entrevista específica que fez com uma mulher. “Deu um clique na minha cabeça, eu pensei: ‘Nossa, pode crer! A gente tem mapas diferentes da cidade, mulheres e homens’”. E então arregaçou as mangas e começou a pesquisar e desenhar esse mapa da cidade na visão feminina.
Seu trabalho não existe sem a sua música, e a sua música não existe sem o seu trabalho. Poder desabafar em cima de um palco sobre o que descobre, conversando com as fontes, e não pode dizer em uma reportagem é o que a mantém erguida. Mas as letras e a raiva não estariam lá se não tivesse acesso a tanta informação. Da mesma maneira que dá tapas na cara da sociedade, a Charlotte Matou um Cara é conhecida por cutucar as feridas da própria “cena underground”, com críticas e desabafos nas letras e também em anúncios em cima do palco.
Falar sobre assuntos polêmicos é importante, mas é também muito perigoso. E ela não tem dúvida alguma quanto a isso. Antes de terminar a entrevista, ela deixou um alerta: “até agora eu não fui ameaçada nem processada. É bom você publicar essa entrevista antes disso”. Felizmente, Andrea Dip ainda está viva (sofreu um acidente grave enquanto fazia turnê com a Charlotte em 2018, o que resultou em um período de hiato na banda) e, até o momento, não foi ameaçada de morte ou processada. Trabalho feito.
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Charlotte Matou um Cara – A Rua é um Campo de Batalha “Por onde ando/ Por onde passo/ É território do patriarcado/ Quer me impedir de ocupar/ As ruas da cidade/ Quer me dominar/ Mexe comigo que eu arranco o seu saco/ No ônibus na rua, no metrô ou no senado/ Mexe comigo que eu arranco o seu saco/ Não me olha/ Não me aborda/ Não fala comigo que eu vou reagir/ O corpo é meu, a rua é minha/ Vou ocupar, não vem me coagir/ A rua é um campo de batalha/ E eu vou armada até os dentes”
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